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Entrevista: 
Pilar Belmonte

“São pessoas atravessadas por questões morais e religiosas, que carregam preconceitos revestidos de conceitos científicos”

O ano é 2017. No Brasil, um juiz federal do Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho, acata parcialmente o pedido liminar numa ação popular que orienta os profissionais de psicologia a ofertar terapias de reversão sexual, na contramão da Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que proíbe essa prática, conhecida como ‘cura gay’. Na interpretação de muitos profissionais, militantes e movimentos sociais da área, a decisão liminar retoma a perigosa possibilidade de tratar a homossexualidade como doença e reforça preconceitos. Nesta entrevista, a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) e psicóloga Pilar Belmonte critica a tentativa de resgate da patologização da homossexualidade, um conceito excluído pela Organização Mundial da Saúde desde 1990. Sob o título História da homossexualidade: ciência e contraciência no RJ (1970 a 2000), a tese de doutorado de Pilar, defendida em 2009, já historicizava a prática, mostrando que vem de longa data a influência que um grupo de psicólogos autodeclarados “cristãos” tem tentado exercer sobre o legislativo e o judiciário. Liderado por Rozangela Alves Justino, trata-se do mesmo grupo que moveu a ação parcialmente aceita pelo juiz no dia 15 de setembro deste ano. Em seu blog, a psicóloga se identifica como missionária e realça, sem qualquer fundamento científico, em um de seus textos, que a mudança de comportamento gay é mais fácil de ser mudada que a orientação sexual. Rozangela, desde junho de 2016, ocupa um cargo no gabinete do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) na Câmara, que é ligado ao pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 22/09/2017 13h03 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

A tentativa de recuperar a chamada ‘cura gay’ passa por cima da recomendação da OMS, de 1990, e da Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP), de 1999. Quem são essas pessoas?

Quem está por trás de tudo isso é um grupo que se denomina psicólogos cristãos. No Rio de Janeiro, já em 2003 houve o PL 717/2003, que chegou a passar por duas comissões [Saúde e Comissão de Constituição e Justiça]. Quando ia passar pela Comissão de Direitos Humanos, o pessoal acordou e houve todo um movimento. Na ocasião, eles abriram a sessão rezando um Pai Nosso. O projeto ainda propõe o uso de verbas públicas para tratamentos de reversão sexual. Isso nunca foi uma reivindicação da categoria de psicólogos. É bom deixar claro. O que os psicólogos reivindicam é carga horária menor de trabalho e um salário base mínimo. O CFP nunca levantou esta bandeira de tratar a homossexualidade, ainda mais com verba pública. Como verificamos, a tentativa de tratar a homossexualidade como uma patologia não se encerrou em 2003. Na Câmara dos Deputados, há outro projeto de lei (4931/2016) em tramitação que busca permitir tal tipo de "tratamento" por parte de psicólogos sem que esses sejam punidos [o PL foi apresentado por Ezequiel Teixeira, do PTN-RJ, ex-secretário de Assistência Social e Direitos Humanos no governo de Luiz Fernando Pezão (PMDB) no Rio de Janeiro, que acabou demitido após comparar a homossexualidade à aids e ao câncer em uma entrevista na qual defendeu a ‘cura gay’].  São pessoas atravessadas por questões morais e religiosas, que carregam preconceitos revestidos de conceitos científicos.

Na sua avaliação, que interesses estão por trás da decisão do juiz?

O juiz mistura ‘alhos com bugalhos’. Ele erra ao dizer que a Resolução do CFP afeta a liberdade científica, inviabiliza a investigação acerca do tema sexualidade. Isso é uma grande mentira. A Revista latinoamericana Sexualidad, Salud y Sociedad, como o próprio nome já diz, tem como missão reunir artigos de antropólogos, psicólogos, entre outras categorias da Saúde, sobre estudos do tema da sexualidade. Eu mesma tenho um artigo na última edição, feito com Ana Venâncio, que retoma, a partir de jornais e revistas, tudo o que foi publicado sobre o assunto e como a religião se referia à homossexualidade. O juiz considera que há na sociedade uma inquietação em torno de práticas sexuais desviantes da norma estabelecida socioculturalmente. Mas que pesquisa ele fez? O que ele quer dizer ao afirmar que tem na sociedade uma inquietação? Isso já foi superado, já aceitamos, por exemplo, o beijo gay na televisão, ainda que tenhamos um enorme conservadorismo na sociedade. Por que ele diz que há uma inquietação em torno de práticas sexuais desviantes? Isso é fruto de uma visão preconceituosa.

Entidades e movimentos sociais repudiraram a decisão do juiz, alegando, entre outras coisas, que ela reintroduz a perspectiva patologizante da homossexualidade. Está presente aqui um debate sobre a classificação de doenças? Como isso é feito?

A homossexualidade como doença não faz parte do CID [Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, designada pela sigla CID — do inglês ‘International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems’] há muito tempo. No CID 10, o que se cuida, no que se trata de orientação sexual, é quando há uma insatisfação ou dificuldade de a pessoa se assumir. É muito comum recebermos no consultório um menino ou um homem, que foi criado como tal, chegou a se casar, ter filho, mas está vivendo um grande sofrimento porque se apaixonou por outro homem e não sabe como dizer isso para sua família. Isso, nós, psicólogos, sempre atendemos, pois temos como missão ajudar essa pessoa a se assumir, a construir o que a gente chama de resiliência, para que ela consiga enfrentar suas decisões sem dor e sofrimento. Quando a OMS, em 1990, recomenda retirar de qualquer documento a homossexualidade como doença [O CID 10, no código F66, trata dos transtornos psicológicos e comportamentais associados ao desenvolvimento sexual e realça que a orientação sexual por si não deve ser vista como um transtorno] e a Resolução 01/1999 do CFP, proibe a oferta de tratamento de reversão sexual, um pai, por exemplo, é impedido de colocar seu filho para ser tratado porque apresenta uma tendência gay. Por isso que propostas como o PL 4.931/2016 e a decisão do juiz do DF implicam risco de resgatar práticas já abolidas, em cenários obscuros.

Em um cenário de conservadorismo que tem se intensificado no Brasil, o que isso representa?

Apesar de ser um pequeno grupo de psicólogos, com apoio de um juiz de primeira instância, que tenta fazer valer o que eles defendem há anos, é necessária uma movimentação para derrubar propriamente essa decisão, pois isso permite reforçar preconceitos ainda presentes em nossa sociedade. Além de uma movimentação contrária a esta decisão e, até mesmo, contra projetos de lei apresentados, caberá agora ao CFP imprimir esforço quanto à fiscalização sobre esse grupo que ainda defende a ‘cura gay’. Pois a decisão do juiz não invalida a Resolução do CFP, que proíbe o tratamento de reversão sexual. Ele acata em parte a ação popular, que tem à frente a psicóloga Rozangela Alves Justino, que deveria ter sido punida pelo CFP, quando em 2009 ainda ofertava tratamento de reversão sexual. A fiscalização se torna imprescindível, pois esses profissionais que defendem tal prática poderão fazer oferta de tratamento de uma forma escamoteada. A decisão do juiz seria aceitável se dissesse que qualquer pessoa precisa ter seu sofrimento, sua ansiedade e sua angústia acolhidos, para que possam assumir a sua homossexualidade. Acho que o problema vai além, pois esse grupo, ainda que pequeno, encontra um juiz para acatar a proposta, mesmo que em parte.

Em repúdio à ‘cura gay’, leia também:

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