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Entrevista: 
Silvio Valle

'Se cedermos o nosso Patrimônio Genético Viral para terceiros produzirem a vacina, teremos que ter uma contrapartida'

Além das questões já debatidas atualmente, as discussões sobre a Zika também envolvem outros aspectos relacionados à Biossegurança que não têm sido abordadas. Nesta entrevista, Silvio Valle, pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e coordenador dos Cursos de Biossegurança da Escola, aborda três aspectos importantes relacionados à Biossegurança – a questão ocupacional, relacionada com a saúde do trabalhador; a questão ambiental, como o uso de mosquitos transgênicos como uma das estratégias de combate à epidemia e a questão patrimonial, como o envio do patrimônio genético viral para o exterior. O pesquisador alerta que todas essas questões sobre Biossegurança são importantes caso se confirme, do ponto de vista científico e de Vigilância em Saúde, que o vírus Zika é o causador da Síndrome Congênita da Microcefalia, Síndrome de Guillain-Barré e Artrogripose Múltipla Congênita, entre outras complicações neurológicas.
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 06/04/2016 11h42 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Na perspectiva da saúde do trabalhador, quais os riscos envolvidos no trabalho de pesquisadores e profissionais de saúde envolvidos com as pesquisas sobre o Vírus Zika ou com o atendimento a pessoas doentes? Quais são as medidas de Biossegurança que devem ser tomadas para evitar a contaminação desses profissionais?

Os riscos envolvidos com as pesquisas da Zika estão na classe de risco biológico 2, que é um risco médio, sendo necessários Procedimentos Padrões de Biossegurança. Sobre o trabalho dos pesquisadores, o alerta que precisamos fazer é que tanto para as pesquisas envolvendo o isolamento do vírus, quanto ao manejo dos pacientes com o vírus, precisamos acrescentar critérios adicionais de Biossegurança. O principal deles é alertar pesquisadoras que desejam engravidar ou já estão grávidas sobre os riscos de contrair o vírus de forma ocupacional, pois ele é transmitido pelo sangue. Os pesquisadores que estão tentando ter filhos também precisam saber que trabalhando com o vírus, se o contraírem ocupacionalmente, podem transmitir sexualmente o vírus para sua parceira, que não tem nada a ver diretamente com o trabalho de pesquisa. Esse é o incremento de Biossegurança que deve ser adotado em relação aos cuidados e informações que precisamos passar para esses profissionais que tem como projeto de vida atual ter filhos. No mais, recomendamos seguir as Precauções Universais de Biossegurança, como usar luvas, máscaras, gorros, ter cuidados com perfuro cortantes, com resíduos, não gerar aerossol. Sempre tendo em mente que o vírus pode ser transmitido pelo sangue e outros líquidos e secreções orgânicas, em especial, pelo esperma na relação sexual.

A questão principal é informar aos grupos mais vulneráveis, homens e mulheres que querem ter filhos neste momento, sobre os riscos. Se um laboratório não tem as condições de segurança biológica adequadas para se trabalhar com vírus e uma pesquisadora está grávida ou tentando engravidar, a recomendação é que ela se afaste momentaneamente da área de risco.

Outra atividade de pesquisa que requer cuidados especiais com o vírus Zika está relacionada às infecções experimentais com outros mosquitos que não sejam o Aedes aegypti, pois existem Procedimentos Insetários de Segurança Biológica para impedir a liberação acidental no meio ambiente de vetores que atualmente de forma natural ainda não transmitem o vírus Zika.

No caso dos profissionais de saúde que fazem atendimento ambulatorial, o principal cuidado é o uso de luvas e máscaras. Para o atendimento em hospitais de referência, que recebem pacientes com o diagnóstico de Zika confirmado, os profissionais de saúde têm que tomar cuidados também com os perfuro cortantes.

Sobre o fornecimento de material biológico (soro e Vírus) ao exterior, para o desenvolvimento de kits de diagnóstico e vacinas, o que prevê a legislação brasileira? E como você acha que deve funcionar esse tipo de parceria?

O fornecimento de soro para o exterior está previsto na legislação brasileira que regulamenta a questão do sangue e seus hemoderivados, a Lei 10.205/2001 e a Portaria 2.712/2013 do Ministério da Saúde. O fornecimento de soro e hemoderivados só é permitido em situações especiais, eles não podem ser enviados para o exterior sem critérios como solidariedade internacional, por exemplo. Outro critério importante é que para haver o fornecimento é necessária a autorização do Ministério da Saúde, desde que para a obtenção de derivados por meio de alta tecnologia não acessível no país. Tem que haver uma contrapartida no fornecimento desse soro e eu acho que isso deve ser colocado na pauta das discussões sobre o painel de soro do vírus Zika existente nas instituições públicas brasileiras. Um painel de soro é fundamental para a produção do reagente para diagnóstico confiável e a construção de um painel de soro envolve o trabalho de médicos, enfermeiros, técnicos de laboratório, pesquisadores, e isso tem um custo para o SUS, por isso deve haver uma contrapartida no envio desse material. Essa soroteca de pacientes comprovadamente com Zika é de fundamental importância para validar os kits para diagnóstico. Não adianta ter tecnologia para fazer o kit, se não tiver o painel de soro confiável e abrangente.

A remessa do vírus Zika está previsto na legislação brasileira de acesso à Biodiversidade, a Lei 13.123/2015, que todo o material biológico, exceto o humano, preciso que a instituição esteja cadastrada, para que o material seja remetido para o exterior. A legislação define com clareza os conceitos de Remessa e Envio, que são: Remessa de Amostra, que é a transferência de patrimônio genético para instituição localizada fora do país com a finalidade de acesso, na qual a responsabilidade sobre a amostra é transferida para a destinatária; e Envio de Amostra, que é a amostra que contenha patrimônio genético para a prestação de serviços no exterior como parte de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico na qual a responsabilidade sobre a amostra é de quem realiza o acesso no Brasil.

Essa legislação também prevê contrapartidas. Hoje, o material não pode ser remetido/enviado porque o governo não regulamentou a lei, o que é um impedimento em cooperações internacionais para o desenvolvimento da vacina. Na corrida para fazer a vacina contra o vírus Zika, temos concretamente uns cinco laboratórios internacionais que possuem a plataforma para fazer a vacina, mas eles estão produzindo os protótipos de vacina com amostras de vírus africanos e asiáticos, sendo que o ideal seria fazer a vacina com o vírus isolado no Brasil, que, provavelmente, é diferente dos vírus atualmente utilizados. Então, um importante limitador para os laboratórios que já tem a plataforma fazerem a vacina é ter o vírus. No Brasil, gastamos recursos do SUS para isolar o vírus, cultivar em células, preservar, conservar em laboratório, padronizar e sequenciar. Já temos uma quantidade de vírus isolada no Brasil bem razoável e esse material é um Patrimônio Genético Nacional.

No Brasil, temos instituições como a Fiocruz e o Instituto Butantan, com capacidade técnica para produzir a vacina. Disso não temos a menor dúvida. Só que a capacidade financeira para o desenvolvimento da vacina até sua comercialização é muito maior das grandes empresas transnacionais de biotecnologia. Elas possuem mais capacidade de investimento, de testes, de mercado, e com maior escala de produção. Perdemos em capacidade de investimento, não em capacidade cientifica, pois detemos conhecimento científico e amostras do vírus muito bem certificadas.

Qual a importância de uma contrapartida no caso do desenvolvimento de uma vacina? Existe alguma perspectiva de regulamentação da Lei 13.123/2015?

Uma bem negociada contrapartida pode evitar situações como a da vacina da Dengue, que foi desenvolvida por um laboratório francês, com os vírus isolados em países em que ocorre a Dengue. Hoje, ela está liberada pela Anvisa para comercialização no Brasil. A prescrição da vacina são três doses, com custo aproximado de R$ 80 por dose, sendo R$ 240 por pessoa, somente considerando o preço da vacina. Se vacinarmos 5% da população, o custo é R$ 10 milhões para o SUS. É um custo muito alto para uma vacina que tem 60% de eficácia e que só imuniza crianças acima de cinco anos e pessoas abaixo de 60 anos.

Não somos contra os laboratórios privados internacionais desenvolverem a vacina. Só que, no caso específico do Brasil, devemos fornecer o vírus Zika para fazer a vacina, mas termos uma contrapartida, porque de fato estamos enviando um Patrimônio Genético Nacional. Seria oportuno que o Termo de Transferência de Material fosse devidamente analisado pelo Núcleo de inovação Tecnológica [NIT].

Minha expectativa é que o governo regulamente essa lei o mais rápido possível e que comece os acordos de cooperação com os laboratórios estrangeiros para o fornecimento do material biológico nacional, com cláusulas de contrapartida para podermos ter a vacina o mais rápido possível e com preços acessíveis ao orçamento do SUS. Não basta uma vacina com bom potencial de imunização e poucos efeitos adversos, é preciso que a vacina possua custos compatíveis com o orçamento do SUS, para atendimento à população de forma universal.

Os kits sorológicos de diagnóstico aprovados pela Anvisa para uso, principalmente, dos laboratórios particulares são confiáveis?

Os kits aprovados pela Anvisa para comercialização no Brasil e que devem usados principalmente pelos laboratórios particulares têm um diferencial em relação aos kits já existentes hoje no mercado, que são usados nos laboratórios oficiais. Os kits usados por esses laboratórios detectam o vírus, mas o paciente tem que estar com o vírus circulando. Como o vírus deixa de circular sete dias após o aparecimento dos sinais e sintomas, não tem como diagnosticar a doença depois desse período. Já o kit sorológico faz o diagnóstico pela detecção dos anticorpos, que continuam presentes depois dos sete dias. Então, teoricamente, é possível fazer o diagnóstico de um paciente que não tem mais o vírus circulando.

O problema do kit sorológico é que ele não foi liberado pelas principais agências de vigilância sanitária do mundo. Recentemente, o FDA [Food and Drug Administration], órgão do governo americano responsável pela aprovação de alimentos e medicamentos autorizou que o CDC [Centers for Disease Control and Prevention, Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos], usasse o kit Zika MAC-ELISA, que não está liberado comercialmente nos Estados Unidos, apenas nos laboratórios oficiais americanos, porque é um kit que não dá segurança em seus resultados. Ele dá muito falso negativo/ positivo, até para quem foi imunizado com a vacina contra a Febre Amarela, que pode apresentar um resultado positivo para Zika com esse Kit. Nos Estados Unidos, esse kit sorológico só está liberado de forma emergencial para o CDC fazer pesquisa, não está liberado comercialmente porque não tem garantia da sua eficácia e confiabilidade. Então, nos colocamos na posição de uma grávida que vai a um laboratório particular saber se ela teve Zika ou não, aí apresentam para ela um laudo positivo para Zika. Quando existe a grande possibilidade de ser um falso positivo. Ela pagou por um teste, que não vai ser barato, e que lhe deu um resultado que tem uma grande chance de ser falso positivo e ainda pode lhe pode causar problemas emocionais e mais confusão na opinião pública. Existe uma questão ética que deve ser considerada.

O exame mais confiável é aquele feito quando o paciente ainda tem o vírus circulando, que, normalmente, é até sete dias após o aparecimento dos sintomas. É o exame feito nos laboratórios oficiais, que é confiável porque é feito identificando a partícula viral. Esse kit está prestes a ser comercializado no Brasil, produzido por Bio - Manguinhos/Fiocruz para ser distribuído pelo SUS.

Uma das estratégias levantadas como possibilidade para o combate à transmissão do vírus Zika é o uso de mosquitos Aedes aegypti transgênicos. Como funciona o mosquito transgênico? Esse uso é permitido no Brasil? Qual sua opinião sobre isso?

A tecnologia que cria o mosquito transgênico é a Engenharia Genética e o objetivo é criar em biofábricas mosquitos que tenham a característica de, quando soltos na natureza, tornar sua prole estéril, com o objetivo de controlar a proliferação do Aedes aegypti. Do ponto de vista da tecnologia em si, ela até pode ser eficaz, mas temos alguns questionamentos. O primeiro deles é que o único país do mundo que obteve um parecer favorável sobre a comercialização desse mosquito foi o Brasil. Esse parecer foi dado pela CTNBio [Comissão Técnica Nacional de Biossegurança] e, há dois anos, aguarda um parecer da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] para sua comercialização, que ainda não é feita. Eu acho que a Anvisa deveria se manifestar. Outra questão é que, do meu ponto de vista pessoal, precisaríamos de mais estudos sobre a liberação do mosquito transgênico antes dele ser liberado comercialmente, pois esse mosquito é transgênico para uma espécie específica, ele controla o Aedes aegypti, mas não controla o Aedes albopictus entre outros mosquitos que, eventualmente, podem entrar nessa cadeia e transmitir o vírus Zika. Por um processo chamado pressão seletiva, se eu acabo com o Aedes aegypti  por essa tecnologia, eu posso ter na natureza esse local ocupado pelo Aedes albopictus, que também transmite a dengue e a Zika. Então, seria um custo alto para o SUS [Sistema Único de Saúde] que, em médio prazo, não tem eficácia. Outro questionamento é que os únicos testes executados foram de avaliação entomológica [população de mosquitos], ainda precisamos de uma avaliação epidemiológica [controle da infecção pelo vírus da Dengue]. Pessoalmente, concordo com a Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva] que a questão de enfrentamento das arboviroses (Dengue, Zika e Chikungunya) está no saneamento básico. Controlar só o Aedes aegypti pode não resolver porque outro mosquito pode ocupar essa função de vetor. Atualmente o imbróglio regulatório não permite identificar se as liberações no meio ambiente são experimentais ou comerciais.