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Entrevista: 
Rafael Dias

‘Essa lei é uma afronta aos direitos civis e aos direitos políticos’

Rafael Dias é advogado e pesquisador da Organização Não Governamental Justiça Global. Nesta entrevista, defende que o Brasil não precisa de uma legislação para crime de terrorismo e diz que o objetivo dessa lei é coibir as manifestações.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 15/02/2014 09h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Existe uma definição jurídica de terrorismo?

Não existe uma definição fechada de terrorismo, tanto que em cada legislação você tem uma forma diferente de tipificá-lo. Mas é antes de tudo uma definição política, mais do que jurídica. O que se discute é que essa lei que está tramitando no Senado revive um projeto autoritário, que faz parte da história do Brasil, que estava no AI 5. Ela suprime alguns direitos constitucionais, como o direito à livre manifestação. Do meu ponto de vista, ela traz excessos do Estado contra o cidadão e contra as manifestações políticas que desde 2013 estão em curso.

Deputados e senadores que apoiam a criação da lei garantem que o texto não inibirá o direito de manifestação. Mas a aplicação prática dessa lei pode atacar esse direito?

A lei de segurança nacional, que é da época da ditadura mas ainda vigora hoje, pode ser usada para atingir movimentos sociais. De acordo como for entendida e aplicada, ela pode atingir os direitos. A gente ainda não fez uma justiça de transição no Brasil, existem ainda várias práticas e resquícios do período da ditadura civil-militar. Essa legislação, no contexto atual, tem uma relação com o evento copa do mundo e com uma certa ação do Estado para coibir manifestações nesse período. É nesse bojo que ela aparece, inclusive depois da comoção da trágica morte do cinegrafista. As condições políticas para a emergência da lei apontam um certo cerceamento e não só das manifestações – alguns órgãos de imprensa já chamam essa lei que tramita de novo AI 5 porque ela se configura como uma lei de exceção. Ela dá poder  em demasia à estrutura e órgãos do Estado de fazer vigilantismo e impede o devido direito do cidadão e da população civil em geral. Por isso ela é um risco. Mesmo que na letra da lei isso pretensamente esteja garantido, ela pode ser interpretada e aplicada de modo a violar esses direitos.

Um argumento que tem sido utilizado é que os “vândalos” são presos e não podem ser mantidos presos por falta de uma lei que tipifique o crime que eles cometeram. Isso é verdade?

Não.  Não é necessário uma lei desse tipo para tipificar a violência que tem ocorrido nas manifestações, tanto por parte da polícia – que muitas vezes não é investigada devidamente – como a violência que vitimou o cinegrafista da band. A lei brasileira é severa. O direito penal brasileiro já dispõe sobre o que acontece nas manifestações, não é necessário uma lei antiterrorismo, ou o crime de terrorismo. Você tipificar o que acontece como terrorismo é uma afronta à democracia. Me parece que essa lei é inadequada, é uma afronta aos direitos civis e aos direitos políticos e é inadequada para tipificar o que acontece nas manifestações hoje.

 As penas previstas no PLS 499/2013 para o crime de terrorismo são maiores dos que a da legislação da ditadura. O que isso significa?

Isso diz de um endurecimento penal. E outra coisa que é importante é que existe uma seletividade no sistema de justiça. Então, serão tipificados como terroristas os movimentos sociais, os manifestantes... A gente vê uma criminalização da juventude negra. Enfim, existem grupos de pessoas que vão ser selecionados para essa tipificação. A gente vive num Estado democrático de direito, mas ainda vigora no país uma legislação de exceção, a gente não fez a justiça de transição. E essa nova lei vai reforçar isso. Ela vem no contexto também da copa do mundo e jogos olímpicos. Isso não aconteceu só no Brasil. A Fifa e também a coordenação dos jogos olímpicos têm como praxe impor esse tipo de legislação aos países. Na África do Sul houve também um tipo de legislação voltada para segurança especial para esse período.

Muitos países têm uma legislação contra terrorismo. Independentemente desse contexto da Copa do Mundo e Olimpíadas, o Brasil precisa de uma lei nesse sentido?

Não, esse tipo de legislação só faz ampliar leis antidemocráticas. Ela foi usada em muitos países, inclusive Estados Unidos, para ampliar o poder do Estado em relação aos cidadãos e isso implica uma relação de poder desigual em que o Estado pode ter prerrogativas que são perigosas.

O PLS 499/2013 fala de terrorismo contra coisas, como escolas, centrais elétricas, hospitais e estádios esportivos, considerados serviços essenciais. Isso faz sentido?

Isso seria uma tentativa de tipificar ações contra a segurança interna do país e também práticas de sabotagem. Na lei, isso faria sentido em relação à segurança interna. Só que a aplicação dessa lei e o que isso configuraria não está claro. O artigo 2º, por exemplo, fala em “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado”. Qualquer movimento social ou grupo político pode ser encarado como ação de terrorismo. Infundir terror ou pânico: como você vai medir isso? Então, parece que essa lei, como eu já disse antes, tem muitos problemas. Existem críticas até de parlamentares que fazem parte do governo, embora um setor mais autoritário entenda que esse era o momento oportuno de apresentar a lei, quando ela estava engavetada. Eu acho que tem muitos interesses econômicos e políticos em jogo que envolvem a copa do mundo e os megaeventos esportivos. É uma forma de calar as manifestações e calar políticas por direito e reivindicações. Eu acho que é uma medida desesperada para tentar exercer um poder do Estado indevido.

O que o Brasil ganha com uma legislação sobre terrorismo?

Não ganha nada. No nosso país, não existe risco de terrorismo por questões políticas externas. Essa lei está voltada para questões políticas internas e vai ser utilizada contra o seu próprio povo. É uma lei, como eu já disse, exagerada e inadequada.