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Entrevista: 
Céli Pinto

'Uma democracia robusta precisa de alguma igualdade social'

A crise da democracia contemporânea é um dos principais temas sobre o qual tem se debruçado a teoria política nas primeiras décadas do século 21. Em meio à imensa desigualdade social produzida pelas políticas neoliberais adotadas desde a década de 1980 em todo o mundo, é cada vez maior o temor de uma escalada do autoritarismo. Mas o que caracteriza a crise da democracia? Quais os requisitos mínimos de um regime democrático e quais os indícios de seu mau funcionamento? Quais os parâmetros para avaliar se um regime é mais ou menos democrático do que outro? Essas são algumas das perguntas que a cientista política Céli Pinto, professora emérita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), procura responder nesta entrevista. Segundo ela, embora no Brasil a Constituição de 1988 tenha avançado na garantia de direitos sociais e na ampliação dos espaços de participação democrática — como os conselhos deliberativos para formulação de políticas públicas, por exemplo — a noção de que os direitos sociais previstos ali ‘não cabem no orçamento’ tornou-se hegemônica. Hegemonia que vem inclusive solapando os avanços democráticos obtidos após a promulgação da Carta Magna. A cientista política também fala do problema da sub-representação das mulheres, das populações negras e pardas e daquelas pertencentes aos estratos mais pobres nos espaços de decisão no país, outra grande limitação do regime democrático brasileiro. “É fundamental democratizar a democracia”, defende.
Redação - EPSJV/Fiocruz | 21/09/2022 15h08 - Atualizado em 29/09/2022 14h22

O que caracteriza uma democracia moderna e quais os critérios mínimos que precisam ser observados para que um sistema de governo seja considerado democrático?

Nós temos várias formas de definir a democracia, mas eu acho que há uma que é minimalista, mas ao mesmo tempo bastante razoável. A democracia é fundamentalmente um regime em que o conjunto da população adulta escolhe os seus representantes e os seus dirigentes dentro de um quadro de total liberdade de opinião, de igualdade de direitos políticos e civis, e de informação; em uma eleição limpa, correta, sem fraude. Em termos muito gerais, minimalistas, isto é uma democracia. Isso acontece com melhores condições em alguns lugares, com piores condições em outros, aí depende de pensar uma democracia de forma mais substantiva.

Pensando em um espectro que vai do regime mais democrático possível para o menos, quais os parâmetros que se pode utilizar?

Pensando bem teoricamente, a melhor democracia seria aquela que consegue equilibrar dois conceitos fundamentais: igualdade e liberdade. Uma democracia em que haja uma liberdade absoluta haverá também uma desigualdade absoluta, e esta democracia tende a não ser democrática. Ela tende a ser um regime autocrático, oligárquico. Ou seja, onde todas as liberdades são infinitas, quem vai ter liberdade são aqueles mais desiguais para cima. Agora, a igualdade também tem de ser um conceito em termos democráticos que não limite a existência da liberdade, mas não se pode haver uma desigualdade que impeça que as pessoas tenham o mínimo possível ou a possibilidade de viverem de forma adequada, de forma socialmente justa. Então, quando nós olharmos, assim, o espectro dos países democráticos . do mundo, nós vamos ver os países que sempre são exemplos: nos países escandinavos as pessoas não têm a liberdade que as classes dominantes e classes médias brasileiras têm, por exemplo. As pessoas têm muito mais obrigações sociais do que as classes médias e a burguesia brasileira têm.

Em que sentido?

No sentido de que elas pagam muito mais impostos, elas têm de ter uma responsabilidade social muito maior em relação ao cuidado com a cidade, com as leis, com o estado da comunidade em que elas vivem, da escola que frequentam, da universidade que frequentam. Se nós olharmos para esses países, todas as pessoas têm direitos muito parecidos, ou seja, o direito de ser um milionário, por exemplo, é muito mais restrito. Então é uma sociedade que é mais igual e menos livre, não no sentido de que as pessoas não possam ir e vir, não possam ter a opinião que bem entendam, que não possam fazer das suas vidas pessoais aquilo que elas acharem melhor. Mas há um equilíbrio entre liberdade e igualdade, e a democracia depende desse equilíbrio. Quando há muita liberdade nós estamos frente a um regime oligárquico, quando há só igualdade, nós estamos frente a uma ditadura, em que todos são iguais e ninguém pode expressar as suas diferenças, por exemplo. Então são duas questões bem importantes de serem mediadas. A democracia, em termos teóricos, é um acordo, é a tensão entre essas duas coisas.

O que nós estamos vendo com o neoliberalismo, em vários países, é um aumento da desigualdade social. Há uma relação bastante grande  entre diminuição da democracia, inclusive dos valores democráticos, com aumento da desigualdade”

A Organização das Nações Unidas utiliza o chamado Índice de Gini para medir o grau de concentração de renda nos países. Existe um índice similar para medir o grau de democracia? No que ele se fundamenta?

Os índices de democracia são pouco razoáveis, porque é muito difícil comparar países em que existe uma maior igualdade social e países em que existe uma grande desigualdade social. Por exemplo, um país como o Brasil, que é um país rico, mas que tem uma grande desigualdade social, nunca vai ter uma democracia robusta, porque uma democracia robusta precisa de alguma igualdade social. O que nós estamos vendo com o neoliberalismo, em vários países, é um aumento da desigualdade social. Há uma relação bastante grande entre diminuição da democracia, inclusive dos valores democráticos, com aumento da desigualdade social. Porque aí teria mais possibilidade de ascensão de um líder carismático, populista, antidemocrático, que vai dizer que a democracia é um sistema que não atende aos interesses das pessoas. As grandes desigualdades sociais são muito propícias a regimes não democráticos. E quanto mais igualdade social mais possibilidade de regime democrático.

Quais são as principais formas de participação social no regime democrático com as quais contamos hoje? Em que medida esses aparelhos têm contribuído ou não para a ampliação da democracia no país, e quais os seus limites?

A Constituição de 1988 deu possibilidade de uma participação da população muito mais ampla do que o voto:  conselhos gestores, conferências nacionais, por exemplo. Houve ali uma preocupação de aumentar a participação popular nas tomadas de decisão. Foi muito importante isso. Uma outra forma de participação democrática que tem sido muito importante no mundo a partir da década de 1970, é a participação da sociedade civil nos movimentos sociais: os movimentos ambientalistas, feministas, LGBTQIA+, de imigrantes, de populações indígenas dos diversos países colonizados. Então há uma imensa quantidade de movimentos sociais que influenciam na democracia. Isso vem em ondas, algumas vezes se sente maior presença dos movimentos sociais, outras vezes menos. E depois nós temos os partidos políticos, que são fundamentais nas democracias. Não existe democracia sem partido político. Há uma campanha muito bem montada da grande mídia brasileira contra os partidos políticos. Óbvio que nós temos um sistema político-partidário no Brasil com muitos problemas, mas que não são suficientes para diminuir a importância dos partidos. Os movimentos sociais quando conseguem ter alguma de suas demandas atendidas é porque eles entraram via partidos políticos. Óbvio que os partidos políticos brasileiros são muito resistentes a assimilar as novas demandas da sociedade, são muito fechados, oligárquicos, construídos em cima de pequenos grupos de homens brancos, autodeclarados heterossexuais, de classe média, a grande maioria com nível superior. E obviamente que as direções partidárias no país limitam muito a possibilidade de as demandas dos movimentos sociais serem incorporadas pelos partidos. Mesmo os partidos chamados de esquerda, ou centro-esquerda, têm dificuldade nessa incorporação.

Quais os indícios de mau funcionamento de um regime democrático, e quais as instâncias previstas pelo nosso sistema para zelar pelo bom funcionamento da democracia no país?

Uma questão fundamental é que as instituições funcionem de acordo com aquilo que está prescrito na Constituição para elas fazerem. Obviamente que há uma ilusão de que essas instituições em si resolvam a questão da democracia. Nós temos boas instituições no Brasil, temos os três poderes bem instituídos, temos o Ministério Público que é uma instituição importante, temos um Judiciário com duas ‘jabuticabas’ maravilhosas: uma está vindo abaixo que é a Justiça do Trabalho; outra que é muito combatida, mas é muito importante, que é a Justiça Eleitoral. Agora, por outro lado, nós temos que pensar nas formas como as pessoas chegam a esses lugares. Há uma ilusão de parte da ciência política de que as instituições formam as pessoas que estão lá dentro. Eu vou te dizer duas instituições que formam as pessoas, e nenhuma das duas têm a ver com democracia, que são as academias militares e os seminários para padres. São as chamadas instituições totais por Erving Goffman, um sociólogo estadunidense que escreveu muito bem sobre isso. As outras instituições necessitam ser democraticamente montadas. Por exemplo, nada menos democrático do que uma lista partidária para candidatos a deputados. Nos Estados Unidos, e aqui do lado, na Argentina, os filiados dos partidos fazem uma primária para escolher os candidatos das listas partidárias. Aqui, as listas partidárias são feitas na calada da noite, não há nenhum processo democrático como os que existem em alguns países e são importantes para fazer com que as listas partidárias sejam feitas por ação efetiva pelo conjunto dos membros do partido. No Brasil, isso não existe. Nós temos também que o presidente da República nomeia todos os ministros do Supremo Tribunal Federal e o procurador-geral da República. Há uma concentração de poderes na mão das elites partidárias. Se você for ler com cuidado o regimento interno da Câmara dos Deputados, você vai entender perfeitamente por que há uma guerra para pertencer à mesa diretora, porque ali está o poder da Câmara, junto com o colégio de líderes. Se dizia muito ‘Ah, mas o Plenário está sempre vazio’. E sabe por quê? Porque lá não se decide nada, salvo algum projeto de lei muito polêmico. 90% [dos projetos] são decididos nas comissões, no colégio de líderes. Então nós temos uma democracia que tem uma concentração de poderes muito forte. Democratizar a democracia, como fala o Boaventura de Sousa Santos, é fazer com que mais gente participe da tomada de decisão, é trazer para dentro dos partidos os militantes partidários, é trazer para dentro da tomada de decisão mais deputados. 70% dos deputados no Brasil não têm poder nenhum. A democratização da democracia é fundamental. Mas o que nós estamos vendo na última década no Brasil é o contrário, é o afunilamento da tomada de decisão por algumas posições políticas. E isso precariza a democracia, faz com que lá pelas tantas o Judiciário tenha uma postura política muito maior do que ele deveria ter. Ele deveria ser uma corte de Justiça, e se torna uma corte política. As instituições estão embaralhadas no Brasil. Elas têm que se desembaralhar.

Essa ‘democratização da democracia’ é possível de ser feita nos moldes do nosso sistema democrático como ele é hoje? Seriam necessárias novas formas de participação ou elas já existem, só precisam ser colocadas em prática?

Todo cientista político no Brasil tem uma reforma política ideal na cabeça. Eu particularmente acho que reformas políticas não resolvem nada, embora nós possamos pensar em algumas melhorias. Não é por falta de arcabouço institucional que a democracia brasileira funciona melhor ou pior. A partir do ano da Constituição ela funcionou melhor ou pior com as mesmas instituições, de acordo com o acordo político que foi feito pelos diversos governantes. Eu acho importante enfatizar que há gargalos. A questão das listas partidárias é um grande gargalo na democracia brasileira; o Congresso Nacional para mim é descolado da realidade e das grandes lutas brasileiras. Eu entendo que não é uma grande reforma política que vai mudar a democracia brasileira. Acho que talvez algumas coisas poderiam ser melhoradas.

Por exemplo?

Eu acho a questão das listas partidárias fundamental. Eu inclusive sou a favor da lista partidária fechada. Fechada e democraticamente organizada. Eu acho que uma coisa que tem que ficar clara para a maioria das pessoas é que uma grande parte dos deputados que estão na Câmara de Deputados não estão lá pelos seus votos. Têm muitos deputados e deputadas que tiveram muito mais votos do que as pessoas que estão lá e não foram eleitas. Aí você vai dizer: ‘mas isso é uma injustiça’. Não, porque apesar de nós votarmos em pessoas, as pessoas vão ou não para o Legislativo pelo número de votos que o partido teve.  O Enéas Carneiro, quando foi eleito, levou um monte de gente atrás dele porque o partido teve um monte de votos. Em uma lista fechada, como existe, por exemplo, na Argentina e no Uruguai, você vota na lista. O partido faz uma lista e você vota na lista. Os eleitos serão os primeiros da lista que o partido organizou. A questão é como essa lista vai ser organizada. Essa lista deve ser organizada de uma forma democrática, por exemplo, uma lista que alterne homens e mulheres, em que a população negra e parda esteja representada. Agora, a lista fechada só é democrática se ela for democraticamente montada. Se for feita por cinco pessoas dentro de uma sala será pior a emenda que o soneto. Então essa é uma questão importante que tem que ser modificada. É impossível uma democracia como a brasileira que tem 513 deputados, e entre eles só 71 mulheres. E se for consultar o nível de escolaridade dos deputados brasileiros, quase 90% têm nível superior, enquanto na população geral apenas 14%. Então nós sabemos que quem está lá é uma elite que não tem nada a ver com a população. É um desequilíbrio.

As mulheres têm imensa dificuldade de ter apoio dos partidos. Eles são muito oligárquicos, machistas, misóginos”

Em 2022, o Código Eleitoral de 1932, que foi o primeiro código que permitiu que as mulheres votassem e fossem votadas, completou 90 anos. Mas como você lembrou, permanece bastante baixo o percentual de mulheres nos espaços de poder.  O que determina esse cenário e em que medida essa falta de paridade é uma limitação do nosso regime democrático? Quais as medidas que devem ser adotadas para mudar esse quadro?

Esse quadro é extremamente complicado: apenas 16% das cidades do país são governadas por prefeitas; 15% das vereadoras são mulheres, 15% da Câmara dos Deputados e 10% do Senado. Isso tem sido discutido pelas feministas, pelas mulheres envolvidas com a questão da representação política das mulheres desde a década de 1970. É interessante que os movimentos feministas sempre foram muito políticos. Se nós pegarmos o primeiro movimento feminista no mundo, que foram os movimentos das sufragistas nos Estados Unidos e na Inglaterra, o que elas queriam era votar e serem votadas. O primeiro movimento aqui no Brasil foi também um movimento das sufragistas liderado por Bertha Lutz, que queria votar e serem votadas, como conseguimos no Código Eleitoral de 1932. A Constituição brasileira garante muitos direitos para as mulheres, e há toda uma presença política muito grande das mulheres que não se concretiza nas eleições, por várias razões. Há uma lei que garante 30% das mulheres nas listas partidárias, há uma lei que garante 30% do fundo partidário para as candidaturas de mulheres. Há uma série de normas, de leis, que foram lutas muito fortes. Entretanto o Brasil está no 144º lugar entre 192 países na representação de mulheres no Parlamento. Na América Latina ele só está na frente do Haiti. Nós temos uma situação extremamente desigual. Isso também acontece em relação aos negros e negras, embora eu não tenha esses dados, porque eu estudo a questão de mulheres no Parlamento. Mas quais são as causas? Primeiro, há uma dificuldade imensa das mulheres dentro dos seus partidos políticos.  Se a gente for entrevistar as mulheres dentro dos partidos, de todo o espectro ideológico, as mulheres sempre vão dizer que a posição delas é muito difícil, porque não basta estar numa lista. Os partidos escolhem quem eles vão eleger. Cada partido político sabe mais ou menos o número de deputados que vai conseguir colocar no Congresso Nacional, e ele que escolhe essas pessoas. As mulheres têm imensa dificuldade de ter apoio dos partidos. Eles são muito oligárquicos, machistas, misóginos. E tem um pensamento perverso que é incutido na sociedade que diz ‘ah, se coloca candidatas-laranjas nas chapas porque as mulheres não estão interessadas’. As mulheres não estão interessadas porque não dão espaço para elas. Uma pessoa que tem uma carreira como professora, como advogada, como médica, como líder de um movimento social em um bairro, em uma comunidade pobre, por que ela vai se candidatar se ela sabe que não vai ter nenhum tipo de apoio do partido? Então há uma falta de vontade política dos partidos políticos de trazerem as mulheres para dentro. Por outro lado, nossa sociedade é muito conservadora e machista. As mulheres, independentemente de sua classe social, da sua etnia, da sua raça, elas são ainda as gerentes da casa. Eu sempre dou um exemplo: supondo um homem de 40, 45 anos, com dois filhos, um de seis e outro de quatro, que é deputado federal e mora em uma cidade como Uruguaiana, muito longe de Porto Alegre. Ele sai de casa segunda-feira, pega o avião terça, vai pra Brasília, sexta-feira ele volta de Brasília, vai pra Uruguaiana, dá um beijo nos filhos, e volta pra Brasília na próxima semana. Põe uma mulher nessa posição. Se ela tem dois filhos ela não vai sair de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, ou de qualquer outra cidade, ou mesmo da capital, e passar seis dias fora da sua casa em Brasília sendo deputada. Então para um país que tem essa dimensão continental isso é uma questão importante. Mas isso se repete também no município, onde a mulher às vezes precisa atravessar a rua para ir até a Câmara Municipal. E ali também tem poucas mulheres. O mundo político é um dos últimos espaços de poder masculino, então é muito difícil. Uma possibilidade é fazer uma lei que se garanta cadeiras, que é como se fez no México, onde 50% das 513 cadeiras da Câmara de Deputados são ocupadas por mulheres. Isso é uma lei muito radical para a nossa tradição política, mas é possível. Existem vários países europeus que fazem isso. Não é 30% na lista partidária, mas 30% das cadeiras. Ou se faz listas alternativas de mulher e homem. Do contrário nós vamos levar muito tempo para conseguir chegar a uma paridade que no México se chegou nas últimas eleições. Na Argentina 40% da Câmara de Deputados são mulheres, no México é 50%.

Você citou brevemente a questão da sub-representação de pessoas pretas e pardas também, que são mais da metade da população brasileira, mas ainda permanecem pouco representadas na nossa democracia...

São pouquíssimo representadas. Até porque a população negra ainda tem um outro problema: ela está concentrada nas camadas mais pobres da população. Há um elitismo muito grande na escolha dos candidatos, além de todo o preconceito, de todo o racismo estrutural que nós temos no país. Então tem mais essa dificuldade para chegar a um partido, chegar a uma lista partidária, e se eleger.

O período da redemocratização no Brasil foi marcado por mobilizações sociais que ajudaram a configurar uma correlação de forças que acabou influenciando o debate constituinte no sentido de ampliar os espaços de participação democrática no país. Mais de 30 anos após a promulgação da ‘Constituição Cidadã’, no entanto, é possível constatar que muito do que ela propunha não saiu do papel. Quais os principais avanços que você considera que a Constituição de 1988 conseguiu implementar no sentido de ampliação da democracia na sociedade brasileira e quais os principais entraves para sua efetiva implementação?

Me parece que a Constituição brasileira é muito interessante, o problema são os ‘penduricalhos’ que fizeram ao longo desses 34 anos. Se nós começarmos a limpar a Constituição das emendas constitucionais - não digo todas, possivelmente algumas são importantes – nós temos uma constituição bastante boa. Ela é uma constituição que garante o SUS, que garante educação gratuita, que garante direitos sociais, direitos para as crianças, para idosos. A constituição brasileira é menosprezada. Mas se o SUS não estivesse na Constituição ele não existiria mais. O problema é a facilidade com que hoje está se fazendo emendas. Vinte anos atrás aprovar uma emenda constitucional era um momento grave no país, era um momento de reflexão; agora a gente dá uma piscada, liga a televisão e tem uma nova emenda constitucional aprovada. Então era uma constituição bastante robusta em termos democráticos, tem garantias muito importantes a serem preservadas. Acho que temos de depurar a nossa constituição, limpar um pouco essa quantidade imensa de emendas constitucionais que agora estão sendo feitas no atacado.

Um dos principais debates em curso atualmente na teoria política tem se dado em torno da crise das democracias liberais no início do século 21. O que caracteriza essa crise?

Se nós olharmos historicamente vamos ver que não houve democracia até aqui sem capitalismo. Houve muitos capitalismos sem democracia. Do século 19 para cá houve momentos em que o capitalismo não aguentou a democracia,  nos quais a democracia – ou seja, direitos iguais para todos, liberdade de expressão, liberdade de informação, a incerteza do resultado eleitoral, porque o resultado eleitoral sempre é uma incerteza – bateu de frente com os interesses do capitalismo. Nós temos atualmente um pensamento conservador de extrema direita que se expressa na Europa, que se expressa nos Estados Unidos e também na América Latina, no Brasil, que tem claro que para manter um regime neoliberal, que é classicamente promotor de desigualdade social, não se pode manter um regime democrático. Nós temos uma ‘direitização’ no mundo que me parece um achatamento da democracia, e que está muito em acordo com o mundo neoliberal do capitalismo. Nesse momento, a sensação é que há todo um pensamento no chamado Ocidente e suas franjas, de que há democracia demais. Tem teóricos da economia que dizem que o capitalismo não pode se desenvolver com democracia demais, ou seja, com distribuição de renda. Na minha perspectiva há um desafio muito grande a enfrentar, e esse desafio é a incapacidade do neoliberalismo, ou seja, da atual fase do capitalismo, de conviver com a democracia.

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