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Entrevista: 
Áquilas Mendes

‘Tem gente que já defende sacrifício dentro do SUS’

Áquilas Mendes não tem dúvida de que é preciso defender um caminho alternativo ao ajuste fiscal em curso. Mas o economista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) sabe também que não existem respostas fáceis nem saídas imediatas à crise que estamos vivendo.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2015 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Áquilas Mendes não tem dúvida de que é preciso defender um caminho alternativo ao ajuste fiscal em curso. Mas o economista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) sabe também que não existem respostas fáceis nem saídas imediatas à crise que estamos vivendo. Sem fugir de polêmicas, nesta entrevista ele desmente os números apresentados pelo Ministério da Saúde, prega a importância de se lutar cada vez mais pelas políticas sociais mas sem deixar de reconhecer os limites reformistas desse movimento e se diz contra a recriação da CPMF,  alegando que o movimento sanitário não pode defender algo que aumente ainda mais a conta que os trabalhadores estão pagando pela crise.

O ajuste fiscal em curso no Brasil é necessário?

É importante começar reforçando que o ajuste fiscal é sobretudo um ajuste na disputa da riqueza. É um ajuste de classe muito claro. Vamos simplificar dizendo que ele atende a um bloco do poder, o rentismo. É um ajuste justificado pelo argumento pela crise, no mundo e aqui no Brasil, com queda de arrecadação. Só que a discussão que eu quero trazer em primeiro lugar é sobre a natureza do ajuste. Que um ajuste fiscal é necessário numa crise, não tenha dúvida. Só que a natureza do ajuste que está sendo oficial é corte de gastos, redução de despesas, porque parte-se do pressuposto de que a razão da crise foi uma elevação dos gastos do Estado. O discurso é: foi descontrolado, existe uma rigidez orçamentária, então nós temos que arrumar esses gastos porque há um descalabro nas contas e elas estão assim porque houve um excesso de gastos. Esse corte de gastos públicos são pensados ao mesmo tempo com medidas para ampliar o bolo do orçamento que possa cada vez mais manter a grande política defendida pelo setor rentista, que é sobretudo a ideia dos recursos do Estado via superávit primário. Com a queda da arrecadação, o superávit primário caiu bastante em relação ao PIB. O setor rentista está preocupado porque ele precisa usar os títulos do governo. Como se apropria desse capital do Estado, com a queda do superávit primário, ele pensa: “não vão me pagar”. Ele estava se mantendo muito bem com o superávit primário na casa dos 3% do PIB, porque isso significava manter cortes, mas ir pagando os juros. Agora a preocupação deles é que, caindo as finanças, vai cair a situação inclusive do pagamento. Está sendo um ajuste sobretudo para reduzir o direito, no fundo, do trabalho. Porque você está cortando as políticas do Estado – sejam elas de infraestrutura, energia ou sociais. Nós sabemos que o Estado ajuda também a reprodução da força de trabalho por meio das suas políticas públicas, sociais. Então, para o capital é importante. Só que, no mundo contemporâneo, o capital consegue se valorizar muito mais sem estender muitas políticas sociais.

O que se precisa deixar claro é que: o ajuste é importante? É. Mas qual deve ser a natureza do ajuste? Um ajuste fiscal seria, por exemplo, acabar com a DRU [Desvinculação de Receitas da União]. Num momento de crise, você precisaria fazer um ajuste para fomentar o gasto social, ampliar. Criar tributação com as grandes fortunas, por exemplo, seria um ajuste para você ter mais recursos para ampliar gastos sociais. E eu estou falando dentro do capitalismo. Num momento de crise, você deve fazer política para manter melhor a situação do trabalho. Ou seja, se tiver melhor política social, saúde, educação, o trabalhador não vai precisar gastar do seu justamente na crise. Na crise, o Estado deveria ampliar também o gasto com infraestrutura e energia porque melhora o mercado interno dentro do capitalismo e nós voltaríamos a um política que é chamada em economia de anticíclica, que é o Estado gastar mais. Ao contrário do que eles fazem, que é cortar o gasto do Estado. Subindo o gasto público, você fomenta o mercado, porque vai construir mais aeroportos, construir o gasto social na educação e na saúde. Com isso, o trabalhador vai poupar, não vai gastar o dinheiro dele com saúde e educação, vai poder ter mercado de trabalho, constrói-se habitação, ele vai poder se empregar. Então, você faria um ajuste que montaria um crescimento interno para segurar a crise.Essa é uma visão bastante keynesiana.

A opção entre esses dois modelos de ajuste está no contexto da disputa entre o capital financeiro e o capital produtivo? O ajuste em curso beneficia o capital financeiro?

Beneficia o capital financeiro que está ligado ao capital produtivo. Por isso a coisa é bem complicada mesmo. A saída seria investir em política de crescimento, em política social? Na visão marxista, não temos ilusões: o capital produtivo também está amarrado ao capital financeiro. A saída é denunciar o modo de produção capitalista cada vez mais, porque não tem saída nesse quadro. Agora, os keynesianos vão dizer o seguinte: como você faz uma política anticíclica nesse quadro? Porque não é com a crise. Esse quadro é do movimento do capital. Não é simples assim. Não adianta, por exemplo, só tributar o capital financeiro. Vamos conseguir? Temos correlação de forças para isso? Agora, na luta, nós temos que ir pautando algumas bandeiras. É claro que a gente não vai defender ajuste. Quando a gente fala de ajuste, é um ajuste que vá tributar o capital financeiro, que acabe com a DRU — porque aí você está ajustando as contas.  São bandeiras de construção, agora, eu não tenho a ilusão de que isso vá ser feito facilmente. Porque na lógica do capitalismo, a tendência é cada vez mais isso aprofundar. Isso são medidas paliativas. Para enfrentar isso, é denunciar. E onde eu encontro maior espaço para denúncia? Nas políticas de direitos sociais, porque elas estão sendo tão enfrentadas que defendê-las tornou-se um grande avanço. Isso é reformista, mas é o que há. Você defender o SUS hoje. Vamos ter clareza também de que o SUS hoje está muito complicado, não é só problema de recursos. Não se trata de ficar fazendo reforminha na gestão do Estado. O debate é muito mais intenso, na luta contra o capital.

No caso específico do Brasil, pode-se dizer que houve excesso de gastos?

Ao longo dos últimos 18 anos, não houve excesso de gastos, porque por superávit primário nós tivemos excesso de receita. Então o problema não foi o gasto público. Na verdade, tivemos superávit, só que primário, para pagar juros. Há uma política de pagamento de juros, que se associa muito bem à lógica do capital de dominância financeira, apropriando-se do fundo público. Aí quando vem o ajuste, diz-se para cortar os gastos públicos. Primeiro, não teve excesso de gastos, pelo contrário: nós tivemos superávit primário. Precisamos começar a deixar claras as coisas. Se você olhar a dívida brasileira, que é interna, entre 2002 e 2012, ela caiu, justamente no governo Lula. Mas caiu pelo governo Lula? Não, caiu porque teve um crescimento econômico no país. Mas foi o governo Lula que plantou esse crescimento econômico? Não foi. O crescimento se deu pelos produtos primários. Havia um cenário internacional benigno para países que exportam matéria prima. Teve um boom. O Brasil só cresceu com esse cenário internacional. Não fizemos um crescimento por políticas de indução interna que, inclusive, se somam às políticas sociais. A dívida interna volta a crescer porque agora, com a crise, nem superávit nós temos. Agora, veja como é contraditório o processo. O governo Lula dele teve a oportunidade de fazer uma mudança, mas não mudou porque o cenário internacional do capitalismo está nessa valorização da plataforma financeira. Então, hoje os marxistas se somariam aos keynesianos dizendo o seguinte: vamos gastar mais com o social, vamos mudar a lógica da política econômica, baixar a taxa de juros. Mas, como marxista, eu diria a você: isso não é uma coisa tão simples como os keynesianos acham que é. Porque aí há uma disputa política, uma correlação de forças, de classe. Então, falar em gasto social é reformista mas hoje isso é até ser radical, devido à lógica cada vez mais de se colocar saúde e educação como plataformas do capital financeiro. Mas eu não tenho ilusões. Porque, mesmo quando eu tributo o capital financeiro, também estou reconhecendo o capital financeiro. Eu tenho que mostrar a fragilidade dessas propostas, mas vamos para a luta política. Vamos lutar por mais recursos para o SUS. Não está fácil o cenário. Não me espanta que comece a crescer a defesa e aceitação do copagamento, que se fale cada vez mais em cobrar mensalidades em universidades e instituições públicas, mudar a carreira e criar formas de flexibilizar a jornada de trabalho. Tem gente na área do SUS que está defendendo aqui que poderia ter copagamento, que devemos reconhecer que não há muito recurso, então a gente poderia, de repente, fazer um sacrifício... Tem gente que já defende sacrifício dentro do SUS.

Por que a crise finalmente chega ao Brasil?

Primeiro porque o famoso crescimento do governo Lula se deu numa base completamente insustentável. Na hora que houve o primeiro choque externo, pá. Porque, na realidade, nós não tínhamos segurança interna. Estávamos crescendo enquanto vendíamos para o cenário internacional. O país não expandiu, não cresceu nos seus gastos sociais. Foi um crescimento econômico, mas frágil do ponto de vista de desenvolvimento. Temos que diferenciar crescimento de desenvolvimento. Não houve projeto de desenvolvimento. Ele nunca se propôs a debater disso, nem ele nem os governos anteriores, é um debate que o Brasil já deixou há muito tempo. Dentro do capitalismo, nunca houve essa preocupação, e políticas sociais fazem parte disso. Então, o fundo era falso. Se houve crescimento de receitas, o governo podia pagar os juros da dívida e manter o rentismo lá. Agora a crise veio e as receitas caem porque a economia não está crescendo. Há muito tempo há um debate na economia sobre a desindustrialização. Desde 2007 as indústrias brasileiras têm um déficit comercial. A política econômica — esse tripé formado pela alta taxa de juros, superávit primário e câmbio flutuante — prejudicou muito as empresas. É melhor importar do que exportar. Nossa moeda estava equiparada, agora com a crise e a moeda caindo – isso poderia ser uma boa para poder exportar, só que as empresas não têm nem como fazer exportação porque elas já vêm de uma base deficitária e estão sem investimento. A desvalorização da moeda pode ser boa – não é bom para o sujeito de classe média alta que gosta de ir para Miami mas, para o país, uma moeda desvalorizada é bom porque eu exporto em real e recebo em dólar, dá mais recurso para reinvestir. Mas o que aconteceu é que agora elas não estão em situação de exportar porque não investiram. Então, como dizem os economistas keynesianos, que são até de esquerda, a economia vem numa reprimarização desde lá. Na crise, as pessoas não pagam, as empresas não têm recursos, não pagam impostos, caem as finanças do Estado. Naquele momento em que crescia a economia, não estavam caindo as finanças do Estado. Um parêntese: é interessante lembrar que havia um cenário na saúde que defendia que o investimento deveria ser de 10% da Receita Corrente Bruta para financiar a saúde. Falava-se isso apostando que as receitas sempre iriam crescer. Foi uma frágil proposta.

Voltando: agora a coisa piorou mais ainda porque não crescem as receitas. O capital financeiro diz: ‘não cresce mas eu preciso da minha parte’. Então, o ajuste está cortando despesas, chegou a cortar quase R$ 90 bilhões, mas os juros da dívida vão fechar em 2015 quase na casa dos R$ 300 bilhões. Esses cortes não adiantaram nada. Esse ajuste é enxugar gelo, não dá para fazer um ajuste intensificando o corte de despesas que já eram cortadas por aquela política econômica.

Mas podemos mesmo dizer que é enxugar gelo? Porque o resultado da receita menos despesa ainda não é deficitária. Assim, o ajuste não é eficiente para os objetivos das classes que ele quer favorecer?

É enxugar gelo para nós que temos uma visão crítica. Para o objetivo do ajuste, ele está adequado. Os economistas marxistas e keynesianos estão dizendo que é enxugar gelo. Seguramente você não vai ouvir isso do Levy e sua turma. Para eles está adiantando, porque o objetivo não é melhorar a situação do país.

O governo Dilma fez desoneração fiscal para muitas empresas, atingindo principalmente os impostos e contribuições que financiam a seguridade social. Isso traz dois elementos: um é que você acabou de dizer que desde 2007 a indústria estava mal; e o outro é que agora, por conta do ajuste, reduziu-se essa desoneração. Teve desoneração e renúncia fiscal excessiva? Se a alternativa era o caminho keynesiano do crescimento, agora era hora de retirar a desoneração? Deveria se reduzir ainda mais?

Não tenha dúvida de que desoneração tributária, no fundo, é uma política fiscal. Numa política fiscal, se você quiser fomentar o mercado interno, tem que baixar o tributo. A política fiscal tem dois mecanismos: tributo (receita) e gasto público. A política monetária tem dois mecanismos: taxa de juros e emissão de moeda. E a política cambial, tem a taxa de câmbio. A política que vem sendo adotada desde o governo Fernando Henrique, e que não mudou, tem sido a chamada política restritiva, contracionista. Se o diagnóstico é que o problema é a inflação, nós vamos segurar tudo. A ideia não é crescer, é estabilizar a moeda. As políticas restritivas ou monetárias anti-inflacionárias porque se combinam. Eu subo tributos, a turma paga tanto tributo que não dá para movimentar; sem movimentar tanto, também não vai aumentar a inflação. E eu reduzo o gasto público. A política monetária restritiva o que é? Eu subo taxa de juros, é bom para quem vem de fora, aqui dentro, a taxa está tão alta que o empresário não pega empréstimo, então segura a inflação também. E reduz emissão de moeda, tira do mercado, porque aí não movimenta muito a economia. Se o Estado imprimir moeda, tem mais movimentação e a inflação pode aumentar. Então, a política restritiva, esse tripé que foi adotado, se comportou assim. A taxa de câmbio, eu valorizo. No cenário de uma crise, eu teria que fazer o contrário, uma política anticíclica e expansionista, em que o comportamento é totalmente inverso. No cenário do governo Lula, o que mais se manteve hegemônico foi essa política, só que em 2010, Lula falou: ‘pessoal, vamos lá, comprem carro que eu vou baixar o IPI’. É uma desoneração. Vai reduzir um tributo. Só que a lógica dele ainda foi a seguinte: vamos crescer pelo consumo, não pelo investimento do Estado. Então, moçada, vamos comprar carro. Mas também ele vai comprar e vai se endividar, usa o crédito consignado... Está tudo atrelado a essa lógica do capital financeiro. A Dilma no primeiro período reduziu um pouco a taxa de juros. Mas o capital financeiro disse: ‘peraí, não dá’. Porque já havia sinais da crise. Dilma recuou. Ela tentou reduzir tributos, com as desonerações, mas não aumentou o gasto público. Então, foi complicado. Além do mais, fez as desonerações sobretudo em cima das contribuições sociais que incidem na previdência. Reduziu tributo do empresariado, mas às custas de grande parte do que financia a política social. Não foi uma política expansionista, foram arranjozinhos, retalhos. É claro que numa política expansionista eu vou reduzir muito a taxa de juros porque, a taxa estando lá embaixo, todo mundo vai contrair empréstimo, vai movimentar. E emissão de moeda? Vou subir, colocar mais moeda no mercado, vai circular mais, movimentar a economia, crescer o mercado interno. Mas em nenhum momento foi isso. A primeira coisa que o capital financeiro diz é: ‘olha a inflação!’. Aí todo mundo — o Estadão, o Globo — começa a gritar: ‘A inflação está subindo, dona Maria!’. Porque com a política assim, com o combate à inflação, mantém-se a taxa de juros alta. A inflação não está estourando, ela chegou a 6,5%, agora dizem que está quase 8%, mas isso não é ainda a questão. Só que o capital financeiro não vai deixar que a inflação estoure. Eles vão acirrar mais ainda. Esse ajuste vai ser pior ainda do que ele está. Vão cortar mais gasto. Sobre a taxa de câmbio, o caminho seria desvalorizar moeda, não é isso? Aí falam: está adotando uma política expansionista porque desvalorizou. Não existe uma política orquestrada para desvalorizar o real, foi por causa da crise financeira... E o que mais foi adotado foi a desoneração. O ajuste foi para o lado do capital. Agora, veja o que é uma proposta de uma CPMF para todos. Vai todo mundo pagar por esse negócio? Tudo bem, é um imposto sobre movimentação financeira e quem mais movimenta paga mais. Mas vai todo mundo pagar.

Mas a CPMF é uma das principais defesas que o movimento sanitário faz para garantir recursos para a saúde...

Por isso que eu me alinho mais com o pessoal da Frente contra a Privatização da Saúde. Porque as entidades do movimento da Reforma Sanitária vão pela linha do Estado, da defesa do Estado, do reformismo. Então falam que a CPMF vai ajudar. Só que a CPMF tinha que ser para as grandes movimentações financeiras, não uma CPMF que vai tributar o trabalho. Porque a grande movimentação também vai encontrar formas [de burlar]. Ah, mas foi uma fonte boa para a saúde. Calma lá! Dado o fato de a saúde estar numa situação tão precária e ruim de recurso, não tenho dúvida de que a CPMF em 1997, quando começou, trouxe R$ 6,7 bilhões a mais para a saúde. Mas, também naquela época — a turma não lembra mais —, entrou por aqui e saiu por lá, porque o governo tirou da contribuição sobre lucro líquido (CSLL) e da COFINS. Então, na realidade, a CPMF não adiantou, o governo tirou parte daquelas outras fontes. Mas a gente não podia viver sem a CPMF. Nós defendemos a CPMF porque ela estava na saúde e cortar seria pior ainda. E ela é um tributo progressivo: quem movimenta mais vai pagar mais. Então, tem um quê interessante. Porém, ela acabou em 2007, fizemos de tudo mas não deu. Lá era um momento, o quadro agora é diferente. Nós defendemos hoje uma CPMF, mas para as grandes movimentações. E não adianta defender só a CPMF se ela não vier vinculada à seguridade social. Ninguém fala mais em seguridade social. O ministro Chioro e o governo defenderam a CPMF para a saúde e tal. Para mim, ele falou para queimar. Todo mundo quis fazer o “fica Chioro”, “volta Chioro”, dizendo que o SUS ia acabar.  O SUS está acabando já há muito tempo e ele ajudou, teve participação, por exemplo, na aprovação da entrada do capital estrangeiro. E ele queimou a CPMF. Num quadro de ajuste, de crise, você acha que o trabalhador, do jeito que está sendo lesado, vai defender uma coisa que vai lesá-lo mais ainda? E as instituições ficam defendendo isso! Caiu o Chioro. Levy passou a falar em CPMF e está todo mundo defendendo porque a grande sacada — uma jogada de mestre — foi falar em CPMF para segurar o rombo da previdência. E falaram: ‘nós vamos fazer 0,18% porque a outra parte vai para os estados. Vamos fazer CPMF partilhada’. Aí pegou os governadores. Eles estão com um rombo na previdência porque também estão na lógica da política de pagar juros. Então, o capital financeiro falou: ‘tem que melhorar esse negócio da previdência, porque é onde a gente quer, é o fundo público’. E faz previdência privada, entendeu? O grande negócio agora são os negócios com os fundos de pensão que os governos vão fazer. Na realidade, quando falou que era para a previdência, diminui a resistência. E as entidades estão aí gritando: ‘CPMF para a saúde!’. Queridos, já foi! Ninguém está nem mais falando disso. Agora é para a previdência. Esquece, porque não vai para a saúde. E esquece porque também não vai para a previdência. A CPMF vai entrar, a DRU vai continuar — e agora com 30% —, vai tirar o recurso para fazer continuar crescendo o superávit primário para o capital privado. Alguém está achando que isso aí vai para a previdência? O ajuste não pode ser pelo lado do trabalho. E a saúde tinha que falar isso. A população pode não entender toda a nossa discussão, mas tem muito claro que esse dinheiro não vai vir para a saúde. Então, a saúde tinha que se aliar com a sensação do trabalho. Quem pode valorizar o SUS? Porque na prática, a rigor, 150 milhões de brasileiros dependem do SUS. Eles podem comprar o planinho de R$ 60, mas vão lá. Todo mundo depende do SUS. Nós temos que pensar onde essas pessoas vão se sentir incluídas. Eu não posso dizer pra ele agora: ‘você vai pagar também, querido, faça sua parte’. Ele conseguiu agora com o Bolsa Família uma rendinha, põe lá no banco e vai ser taxado também? Ele recebe pelo banco o Bolsa Família e vai ter CPMF? A gente defende o SUS, mas esse melhorismo do SUS só vai nos levar a afundar mais. De repente temos que discutir num outro patamar, temos que ir para os movimentos. O ajuste ainda não pegou na população mas no ano que vem vai pegar. Para o ano que vem a insuficiência do Ministério da Saúde estará em R$ 16 bilhões. E os municípios já estão fechando coisas.

Em nota enviada à nossa equipe de reportagem, o Ministério da Saúde diz que os investimentos federais têm sido crescentes e que os cortes não afetam o repasse para os estados e municípios. Além disso, reconhece que os recursos não são suficientes e defende a criação de novas fontes. Qual a sua avaliação sobre isso?

Não é verdade que o Ministério da Saúde tem assegurado investimento crescente. Tem que computar a inflação. Na hora que você põe a inflação, não é bem assim. E quando fala em crescente, ele parte sempre de 2003, que foi o primeiro ano do governo Lula. De lá para cá, vai crescendo, mesmo se colocar a inflação. Mas por que parte de 2003? E 2002? É claro, de 2003 cresce, mas o patamar em 2002 era maior. Agora, quando eu trago a conta para o percentual do PIB, não houve mudança. Não é verdade que o orçamento triplicou, porque isso é valor corrente. Tem que corrigir. Em 2004, com R$ 100 você fazia compras para um mês. Em 2014, não dava para uma semana. Não adianta apresentar um dado assim, tem que corrigir. Sobre criar novas fontes, o importante é saber que tem dinheiro no orçamento. O problema é a DRU, é essa política. Também não é verdade que os cortes não atingiram o repasse para estados e municípios. Porque o Ministério atrasou R$ 3,8 bilhões de 2014 para 2015, não fechou o orçamento de 2014. Eles só foram receber em março de 2015 o referente a dezembro de 2014. A coisa vai ficar pior para 2016: não vão ser só R$ 3,8 bi, já está em R$ 5,8 bilhões o atraso que vai ter no repasse. Sobretudo para média e alta complexidade. Está todo mundo desesperado. O orçamento empenhado foi de R$ 92 bilhões em 2014. O Ministério não fala isso. Estados e municípios tiveram que cortar alguns serviços porque todo mês eles têm conta para pagar. Eles foram se endividando, mas não podem se endividar muito também. Como já vinham com insuficiência orçamentária, vão ter que cortar serviços. E estão cortando urgência e emergência. Como é que vai segurar as UPAs? A situação está muito complicada. O valor da despesa projetada para 2015 é de R$ 105 bi. Só que a insuficiência para 2015 já chegou a R$ 5,8 bi. Se somar isso com os outros R$ 3,8 bi, já chega a quase R$ 10 bi. E assim vai. É um efeito em cascata. Aqui, em 2015, não vai ser possível manter o padrão do gasto 2014, vai continuar o atraso, não vai dar para cumprir as emendas parlamentares .Como elas agora são impositivas, vão tirar de outros gastos. E 2016 vai faltar mais ainda. Além disso, já anunciaram que acabou o Farmácia Popular; vai ter um corte de 50% na Funasa, estagnação de recursos para a atenção básica — que já vinha cortando e onde já tinha uma insuficiência. A Saúde da Família, na verdade, precisa aumentar os recursos dos incentivos. Então, o município vai parar porque 30% do Saúde da Família é de transferência federal, e ele precisa desse percentual. E está diminuindo o PAB [Piso da Atenção Básica] fixo, que estava defasado e não vai aumentar. O PAB fixo é um per capita que já está em R$ 23 há muito tempo, vai contar menos. E o incentivo, que é o PAB variável, não vai ter. Então, a situação é que vai começar a cortar inclusive do Saúde da Família.