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Observatório na Mídia

21/07/2016 09h24 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Análise

por: Camila Borges - professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz

SUS e doenças "psicossomáticas" na fala do ministro interino: deslegitimação da demanda dos usuários e da prática clínica

Sob a chamada 'Para ministro da Saúde, pacientes imaginam doenças', o Jornal Estado de São Paulo publicou no dia 16/07 declarações do Ministro da Saúde Interino, Ricardo Barros, em evento na sede da Associação Médica Brasileira (AMB). O ataque foi direto aos serviços de atenção básica, pois o Interino localiza neste nível de atenção uma frequência – “maioria” – de usuários apresentando demandas construídas por uma “cultura do brasileiro” de só se sentir atendido quando recebe medicamentos ou pedido de exames. Segundo ele, 50% dos exames realizados não são retirados pelos pacientes e 80% dão resultado normal. A partir disso, o Interino tira duas conclusões: primeiro, tendo resultado normal, o exame comprovaria haver sido solicitado “sem necessidade” e acaba gerando gastos também sem necessidade; segundo, a maior parte desses casos seriam de usuários que “imaginam” estar doentes. Em nota do Ministério da Saúde, essa última conclusão é pretensamente corrigida: afirma que o jornal teria chamado de “imaginação” o que o Interino trouxe como doenças psicossomáticas e que o mesmo defendeu uma prática médica mais “acolhedora e resolutiva” através da realização de exames físicos, anamnese e conversa com o usuário.

Ora, torna-se cortina de fumaça essa grita em torno da polêmica “imaginação x psicossomatização”. A troca dos termos não exime o Interino dos efeitos de seu discurso, quais sejam: imediatamente, deslegitimar tanto a demanda dos usuários quanto a prática clínica; e no conjunto de seu pensamento político, esvaziar o SUS sob uma ideologia de endeusamento do mercado.

Vamos acompanhar o pensamento político do Interino. Primeiro, suponhamos que ele tenha apenas se esquecido de que há uma série de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas estabelecidos na atenção básica que preveem a realização rotineira de exames, cujo resultado normal é aguardado como indicativo de estabilidade ou melhora de um quadro clínico.

Sigamos ainda supondo que a maioria da população brasileira usuária da rede básica do SUS sofra “apenas” de doenças psicossomáticas – o que jogaria por terra qualquer estudo epidemiológico sério, bem como as promessas do Interino à AMB. Para concluir tal diagnóstico seriam necessários tanto exames diferenciais – que ele alega estarem gerando gastos desnecessários – quanto as práticas clínicas afirmadas pelo Interino: apalpar, fazer anamnese, conversar. Do que deve decorrer, no mínimo, um Projeto Terapêutico Singular a ser construído por equipe multidisciplinar – sim, na atenção básica.

Seguindo essa linha, um suposto alinhamento do Interino com adoção de uma prática mais “acolhedora e resolutiva”, que valoriza a clínica, encontraria respaldo em outra parte de suas declarações: ele solicita que médicos contribuam para mudar a cultura de que não há consulta sem exame e façam uma investigação mais criteriosa, conversando com o paciente antes de prescrições. Ora, qualquer profissional da saúde consequente investe rotineiramente nessas duas solicitações – o que nos colocaria em um ponto consensual e pacífico. No entanto, a despeito de tantos supostos, engana-se quem pensa que essas declarações aparentemente respeitosas à clínica indicam aposta do Interino na construção de práticas pautadas na integralidade da atenção. Para atender tais solicitações, é preciso recuperar as dimensões do diálogo, do vínculo e da continuidade da atenção em saúde –características de uma atenção básica ampla e resolutiva que, para começo de conversa, está muito além do ato médico.

Trabalhar com mudança de cultura requer tempo e escuta para o estabelecimento de laços de confiança entre usuário e profissional, o que é diametralmente oposto a um modelo racionalizador que não enfrenta problemas basais na organização das práticas de saúde, como a alta rotatividade dos profissionais – motivada por vínculos precários e instáveis, más condições de trabalho, diferenças salariais intra-equipe, etc – e a falta de autonomia para o profissional gerir seu tempo de trabalho e suas condutas clínicas. Autonomia que tem sido ferida pela mordaça da lógica gerencialista que tem por objetivo primeiro a produção de indicadores e metas propulsoras de financiamento – geralmente destinados a empresas terceirizadas de gestão da atenção básica – em detrimento da atenção às necessidades de saúde dos usuários.

Por óbvio, que tais dificuldades da atenção básica – e do SUS no geral – não podem ser resolvidas, mas tão somente acentuadas diante das repetidas propostas do Interino que se fundamentam na ideia geral de flexibilização e desregulamentação do mercado de serviços de saúde. O pensamento politico do Interino é voltado para o esvaziamento do SUS, pois busca formar mercado para sua outra “inédita” ideia: gerar clientela para planos de saúde baratos e pifiamente regulados, aptos para reduzir necessidades de saúde a um “combo” de procedimentos de melhor relação custo-benefício.

Portanto, no conjunto, os posicionamentos do Interino visam um esvaziamento do SUS, e neste caso em específico, mesmo que tenha direcionado suas reflexões ao adoecimento psicossomático, suas declarações também produzem o efeito de deslegitimar a demanda dos usuários e a prática clínica. Vejamos.

Fazer crer que uma doença psicossomática é algo que se conduz apenas no acolhimento e na conversa com o usuário – como faz o Interino – levaria a uma conduta pré-estabelecida de não averiguação do quadro de sofrimento enunciado pelo usuário. Análise de Canguilhem sobre a construção do normal e do patológico na saúde é categórica ao recolocar o peso da experiência do paciente na relação clínica, afirmando que “existe uma medicina porque há homens que se sentem enfermos e não que os homens se inteirem de suas enfermidades porque há médicos e através deles”. Ora, qualquer tecnologia médica – da “conversa” da anamnese à realização de um procedimento do quilate de uma ressonância nuclear magnética –, a despeito de que se suponha prática técnica, cientificamente fundada e supostamente neutra, passa por uma construção social de múltiplas determinações que encontra tanto seu momento inicial quanto seu momento final na demanda experienciada e verbalizada por aquele que adoece.

Noutros termos, está na experiência enunciada exclusivamente pelo paciente o fundamento de qualquer prática clínica. Do que se compreende que saúde e enfermidade são categorias que escapam às estratégias simplistas que o Ministério Interino tem defendido para racionalização do SUS. Tal simplismo pode ser facilmente nomeado pela ideologia do Estado Gerencialista, largamente associado às falências do capitalismo na atualidade em diversas sociedades.

Em que pese o alegado ineditismo e ousadia das propostas do Interino, por serem todas pautadas nesta ideologia, elas fazem apenas repetir os mesmos erros que já vinham sendo apontados no governo que lhe antecedeu, e do qual ele promete se diferenciar. Mas não consegue enunciar a diferença principal: a legitimidade do governo.

Por fim, vale lembrar que, apesar de o Interino referir-se apenas à prática médica, nada disso é problema estritamente médico. Portanto, caso queira mudar alguma cultura, o Interino deve buscar se relacionar fora dos muros da AMB e congêneres, bem como fora dos quintais empresariais.

Para ministro da saúde, pacientes imaginam doenças

O ministro da Saúde, Ricardo Barros, disse na sexta-feira (15) que a maioria dos pacientes que procuram atendimento em unidades de atenção básica da rede pública apenas "imagina" estar doente, mas não está. De acordo com o ministro, é "cultura do brasileiro" só achar que foi bem atendido quando passa por exames ou recebe prescrição de medicamentos, e esse suposto "hábito" estaria levando a gastos desnecessários no SUS (Sistema Único de Saúde). Entidades médicas criticaram a fala de Barros.

"A maioria das pessoas chega ao posto de saúde ou ao atendimento primário com efeitos psicossomáticos. Por que 50% dos exames laboratoriais não são retirados pelos interessados? Por que 80% dão resultado normal? Porque foram pedidos sem necessidade", disse o ministro, na manhã de ontem, em evento na sede da AMB (Associação Médica Brasileira), em São Paulo.

Barros disse que a população costuma associar uma boa consulta à solicitação de exames e defendeu que os médicos ajudem a mudar esse pensamento. "Se (o paciente) não sair ou com receita ou com pedido de exame, ele acha que não foi 'consultado'. Isso é uma cultura do povo, mas acho que todos nós temos de ajudar a mudar, porque isso não é compatível com os recursos que temos", declarou. "Não temos dinheiro para ficar fazendo exames e dando medicamentos que não são necessários só para satisfazer as pessoas, para elas acharem que saíram bem atendidas do postinho de saúde."

O ministro defendeu que os médicos façam uma investigação mais criteriosa do paciente, antes de solicitar exames ou prescrever remédios. "O médico tem de apalpar o cliente, fazer anamnese, tem de conversar com a pessoa", afirmou.
Críticas

Representantes de entidades médicas discordaram da afirmação de Barros de que a maioria da população procura postos de saúde sem estar, de fato, doente. "De maneira geral, qualquer unidade de saúde terá 70% dos exames com resultado normal. Isso acontece porque o paciente não é bem examinado, não é bem interrogado, e são solicitados os exames errados. Ou então, na rede pública, o exame demora tanto para ficar pronto que, até lá, o paciente já sarou e não vai retirar o resultado", diz Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica.

Ele afirma que a solicitação de exames desnecessários está relacionada a falhas na formação ou na postura do médico. "O paciente não tem culpa nisso. A maioria tem queixa real, que não é devidamente valorizada pelo médico", afirmou.

Presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Florentino Cardoso afirmou que o paciente nem tem o poder de escolher se quer fazer exames ou tomar remédios e é preciso avaliar melhor os dados informados pelo ministro antes de qualquer conclusão. "O julgamento do que o doente precisa é médico. Às vezes está lá que o doente não foi pegar (o resultado do exame), mas o doente ou o médico viram na internet. Precisamos saber quais lugares têm essa população de pacientes atendidos com exames normais ou que não foram buscá-lo. Porque, senão, fica algo jogado no ar." As informações são do jornal "O Estado de S. Paulo".
Outro lado

Em nota, o Ministério da Saúde contestou a reportagem. Leia abaixo a íntegra da nota:

"O Ministério da Saúde afirma que está equivocado o título da matéria "Para ministro, pacientes 'imaginam' doença", do jornal Estado de S. Paulo (16/07/2016)

Pelo contrário, informou que uma parcela dos pacientes vai ao posto de saúde, com doenças psicossomáticas. A palavra psicossomática está ligada a uma série de sintomas de diferentes contextos do paciente.

Tratam-se de agravos descritos, por exemplo, na Classificação Internacional de Doenças (CID). Há um erro do jornal, portanto, de classificar esse agravo como "imaginação". A expressão não foi utilizada pelo ministro. O Ministério da Saúde considera essa interpretação um desrespeito com a queixa do paciente, que deve ser acolhido corretamente pelo sistema de saúde.

Para esses e outros agravos, em reunião com entidades médicas nesta sexta-feira (15), o ministro Ricardo Barros defendeu uma atenção básica mais acolhedora e resolutiva. Assim, é necessário que os profissionais médicos façam exame físico (tocar o paciente), façam anamnese (entrevistar o paciente) e conversem com quem está sendo atendido.

Ainda, o ministro relatou que estudos preliminares indicam que até 50% dos exames laboratoriais não são retirados na rede pública e 80% dão resultado normal. Durante a reunião, o ministro solicitou ao representante dos laboratórios de análises clínicas que estava presente a confirmação desses números sobre os exames laboratoriais, e uma análise de seus fatores e desperdícios."

Estadão, 16/07/2016
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