Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Observatório na Mídia

24/03/2017 07h21 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Análise

por: Ialê Falleiros - professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz

Pactuando o fim do SUS

A entrevista “Público-privado: uma parceria sem começo nem fim”, realizada pelo site Região e Redes – caminhos da universalização da saúde no Brasil, veicula o ideário do Instituto Coalizão Saúde (ICOS), através de seu vice-presidente Giovanni Guido Cerri. Apresentado pelo site como uma nova voz na discussão da saúde no Brasil surgida em 2015 por iniciativa de setores da indústria, hospitais, organizações e federações, o ICOS é divulgado como entidade portadora de um dos futuros possíveis para o Sistema Único de Saúde (SUS), inscrito num projeto de incremento das relações público-privadas para orientar a reforma do sistema de saúde brasileiro.

A  problematização deste projeto se faz necessária por parte dos grupos interessados na rearticulação das forças publicizantes no nosso tecido social. Nesse sentido, cabe decompor e analisar os principais ingredientes da receita do ICOS:

- A melhora no acesso à saúde depende da união de setores com interesses divergentes em torno de uma agenda construtiva, como operadoras de saúde, hospitais, indústria?;

- As parcerias entre o SUS e as indústrias e hospitais são promotoras de melhoria de eficiência, redução de custos e melhoria na destinação de recursos, em especial nas áreas de gestão e qualificação de recursos humanos?;

- É preciso caminhar para a fusão do SUS com o setor privado, no interesse comum de atender adequadamente a população?;

- O ônus (e o bônus) da atenção à saúde da população idosa deve ser negociado entre os setores público e privado?

Uma dada concepção de saúde se apresenta – aquela centrada na doença. Ao longo dos últimos 30 anos, as tensões entre o projeto de construção de uma saúde voltada à transformação das condições de vida e aquele que visa articular a saúde pública aos interesses do mercado vêm adquirindo novas roupagens. Enquanto a crise econômica e gerencial, propagada ao longo dos anos 1980 e primeira metade dos anos 1990, favoreceu a vinculação da noção de qualidade da assistência à saúde a parâmetros empresariais, a cultura da colaboração, difundida desde a segunda metade dos anos 1990 e na primeira década de 2000, contribuiu para a substituição da noção de “saúde” como direito de todos e dever do Estado pela de serviço não-exclusivo do Estado, a ser prestada em parceria por entes públicos e privados.

Estes pontos traduzem a proposta de reformulação dos valores caros ao próprio SUS enquanto projeto civilizatório, para lembrarmos a célebre expressão de Arouca. O cenário considerado pelo ICOS estaria demarcado pelo fim das polarizações entre Estado e mercado e pela aceitação de que é necessário ampliar o investimento público no mercado da saúde, abrindo cada vez mais espaço para o último e potencializar as atividades lucrativas dos grupos empresariais nacionais e internacionais envolvidos nas ações estatais.
O consenso acerca da inexorável complementaridade público-privada no provimento à saúde se produz em meio ao diagnóstico comum de crise econômica, necessidade de controle de gastos na área e também das demandas por melhoria na qualidade do atendimento.
As noções de qualidade, eficiência e relação custo-benefício vão se tornando variáveis fundamentais na competição pelos recursos públicos e pela administração da assistência à saúde, pelo trabalho de difusão de valores e ideias relacionados à capacidade de gestão do setor privado como parâmetro a ser seguido pelos serviços de saúde, sejam eles privados, públicos ou geridos mediante parcerias público-privadas.

Por meio da cultura da colaboração e da integração, os problemas ligados à saúde da população brasileira devem ser enfrentados por meio da união de esforços entre os consumidores/clientes, os trabalhadores da saúde, os empresários e as instituições estatais, com a expansão e sustentabilidade do mercado privado de serviços públicos não-estatais, em contraponto ao Estado de bem-estar social.

Por fim, o novo modelo proposto pelo ICOS visa reduzir a carga para o sistema público de saúde do tratamento das doenças crônicas relacionadas ao envelhecimento populacional. Aos poucos que possam pagar por intermediações e serviços privados, uma velhice saudável. À maioria das pessoas, o que for definido a partir da negociação público-privada regida pela lógica do custo-benefício.

Se a harmonia, o equilíbrio e o otimismo são a tônica do pensamento empresarial difusor da cultura da colaboração e da integração, esta não é minimamente capaz de superar antagonismos fundamentais presentes na sociedade brasileira quase 30 anos após a Constituição de 1988.
A perspectiva de integração público-privada promove o enfraquecimento das lutas por um sistema público de saúde universal e regulado pelo controle social, bem como do ideário mais amplo do movimento sanitário de democratização da saúde via intersetorialidade e mudança da cultura médica e tecnológica centrada nos interesses empresariais. Trata-se de um projeto de desmonte do SUS.

Público-privado: uma parceria sem começo nem fim

"Uma das soluções para melhorar o acesso à saúde e torná-lo sustentável para o enfrentamento da inevitável inversão da pirâmide etária populacional brasileira daqui a 30 anos pode ser o incremento das relações público-privada no Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2015, setores da indústria, hospitais, organizações e federações criaram o Instituto Coalizão Saúde (ICOS) que, além de ser uma nova voz na discussão da saúde no Brasil, traz uma agenda que contempla temas como financiamento, gestão, planejamento regional, entre outros. Região e Redes ouviu Giovanni Guido Cerri, professor da Universidade de São Paulo (USP), ex-secretário estadual de Saúde e vice-presidente do ICOS para fomentar o debate sobre as propostas e planos que podem reorientar as políticas de saúde no país nos próximos anos".

Portal Região e Redes
Acesse a matéria na íntegra