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A Reforma Sanitária acabou?

Militantes da Reforma Sanitária fazem avaliação do ontem e de hoje da saúde pública brasileira.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 05/09/2013 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Responder a esta indagação foi o desafio da professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (EBAPE-FGV) e coordenadora do Programa de Estudos da Esfera Pública (PEEP), Sonia Fleury, e do professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Nelson Rodrigues dos Santos, o Nelsão, na mesa ‘8ª Conferência Nacional de Saúde e o SUS: a Reforma Sanitária acabou?', promovida pela Escola Nacional Saúde Púbica (ENSP/Fiocruz) na Semana Sergio Arouca, que aconteceu do dia 3 a 6 de setembro.

Como mediador, o pesquisador da ENSP Ary Carvalho de Miranda apontou os dois pesquisadores como fontes primárias da história da saúde pública brasileira e lembrou também que este movimento de que ambos fizeram parte foi fundamental para o surgimento de uma sociedade democrática naquela época. "Tiveram papel fundamental para a construção de um novo modelo de saúde do Brasil, que foi o Sistema Único de Saúde", lembrou.

Durante a abertura, foi lembrada também a implantação da Comissão da Verdade da Reforma Sanitária que terá a Abrasco, o Cebes, o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict) e ENSP como parceiros. O intuito desta Comissão é investigar as violações dos direitos humanos contra trabalhadores da saúde. O período do levantamento das informações será entre 1964 e 1985. De acordo com o site da Abrasco, a próxima reunião do grupo está marcada para outubro, durante o 2º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão em Saúde, em Belo Horizonte, de 1º a 3 de outubro.

Momento histórico

A retomada do projeto idealizado da Reforma Sanitária foi defendida pelo professor Nelson dos Santos. Para ele, é preciso a volta do compromisso, realização e militância daquele "momento histórico", que hoje é lembrado por ele como anos dourados, mas que não tem tido continuidade. "Em plena ditadura, apontávamos para o bem-estar social. Precisamos de uma mobilização dos direitos da saúde e seguridade social como a que começou em 1975", avisa Nelsão.

O professor pontuou também os momentos mais marcantes do desmonte do projeto da Reforma Sanitária ao longo destas quase três décadas. "Desde o início o presidente da época, José Sarney, não cumpriu o prazo de cinco meses para mandar o projeto para votação. Tivemos que nos mobilizar através de um simpósio de saúde durante três dias inteiros para fazermos uma espécie de cola da lei orgânica 8080/90", disse, e ainda acrescentou: "Sofremos mais ataques com a incorporação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), além do subfinanciamento do SUS, a desvinculação das receitas da união (DRU), em 1995, a criação da Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF), em 1996, e a Emenda Constitucional 29. Estes últimos pareceram avanços, mas não foram. O primeiro limitou os recursos que poderiam ser maiores e o segundo estrangulou os municípios", analisa.

Saúde nos dias de hoje

Sonia Fleury também fez uma avaliação sobre os trabalhadores da saúde que acreditaram na Reforma Sanitária, mas que hoje em dia se dedicam a administrar um Estado que não foi o modelo que planejaram. Ela analisa como erro do movimento achar que era possível institucionalizar o SUS na forma em que o Estado se apresenta e apontou outro problema: "A maior parte das pessoas que ajudou a construir a Reforma passou a assumir posteriormente cargos de gestão. Por conta disso, ficamos longe das pessoas e, com o tempo, perdemos a sensibilidade de nos emocionarmos com o sofrimento da população. Começamos a banalizar o mal e administrar essa realidade", avalia.

Sonia lembrou também que o Estado assumiu a privatização como forma de financiamento das ações de saúde. "A Organizações Social (OS), a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), as parcerias público-privadas são exemplos disso. E aqui na Fiocruz temos a Fiotec que é um palanque de flexibilização do Governo", destacou.

Nelsão acrescenta ainda que atualmente a atuação da saúde brasileira tem se dado na média e alta complexidade, que acarretam desperdícios e diagnósticos tardios. Junto a isso, ele criticou o grande apoio dado às operadoras de plano de saúde. "Focamos em salvar vidas e não deixar morrer, mas esquecemos da atenção básica. E o que é mais escandaloso é o Tesouro cobrindo a rentabilidade: 30% da verba do Ministério da Saúde é para financiar planos privados. Ou seja, estamos vivendo um momento em que o sistema médico empresarial está cada vez se reproduzindo e satisfeito", denunciou.

Nelsão disse que estas ações representam o que ele chama de ‘rumo anti-SUS', em que o projeto original está cada vez mais distante. Segundo ele, um novo sistema tem sido construído num formato em que as classes médias e sindicais são cobertas por planos de saúde e o SUS fica apenas para a classe mais pobre. "Precisamos reconhecer esta dura realidade para tomar o rumo e voltar à retomada do SUS que pensamos, que idealizamos", disse, e completou: "As políticas públicas e de cidadania passaram a ser políticas de consumidores financiadas pelo poder público".

Pesquisa

O professor da Unicamp aproveitou para criticar o modelo de pesquisa que tem sido desenvolvido atualmente no campo da saúde. "Estamos vivendo um momento de desideologização da Reforma Sanitária das academias, por conta das agências de fomento como o Capes e o CNPq. Hoje em nossas pesquisas temos que levar em conta o componente que é empreendedor, o individualismo", lembrou.

Para Sonia Fleury, a academia está com uma produção mercadológica e produtivista. "Estamos abando com o mercado editorial brasileiro. Mas essa lógica não é particular nossa, é no mundo inteiro. Mas ainda é possível abrir brechas de compromissos sociais que não estão nessa lógica", explicou a professora da FGV.

Manifestações atuais

"Aceitem a visão de um militante velho, mas que ainda tem sensibilidade", disse o professor Nelsão, que logo emendou: "Inconscientes ou não, as lutas de junho e julho trouxeram princípios de coletividade. Não à toa, elas vieram à tona pelo transporte público e logo depois vieram a saúde, educação e segurança pública. Devemos levar em conta estes questionamentos para mudar o rumo das políticas de Estado, voltar ao plano que idealizamos", aconselhou.

Lembrando que a Reforma Sanitária surgiu no contexto da ditadura, movida pelo desejo de mudança, Sonia Fleury disse que as manifestações de hoje têm um outro formato e um outro sujeito, mais polifônico. "Ver as pautas das manifestações é muito animador. Quando vemos um cartaz dizendo ‘Quero a saúde padrão Fifa', vemos que as pessoas estão pedindo direitos, estão exigindo a responsabilização. As pessoas foram às ruas nestes últimos meses lutando novamente por uma democracia", opinou.

Sonia ainda ressaltou a validade e a atualidade de questões e expressões que têm sido tratadas como anacrônicas "Esquerda e direita existem! O processo de acumulação de capital existe! A luta de classes está aí!", afirmou.