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Aplausos e vaias deram o tom da mesa de abertura da 15a CNS

Taxação dos mais ricos e volta da CPMF foram algumas das propostas que aumentaram a temperatura durante a mesa que reuniu o ministro da Saúde, Marcelo Castro, a deputada federal Jandira Feghali, e o presidente da Fundação Perseu Abramo, Márcio Pochmann, e abriu a rodada de debates da conferência nesta quarta-feira (2)
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 03/12/2015 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

O debate sobre novas fontes de financiamento para o SUS mobilizou mãos e gargantas durante a mesa de abertura da 15a Conferência Nacional de Saúde nesta quarta-feira (2). Se dependesse dos delegados presentes no auditório do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, é possível afirmar que o governo não estaria em melhor situação que no Congresso Nacional, onde negocia maioria parlamentar para a aprovação da volta da CPMF. Uma saraivada de vaias foi acionada a qualquer menção às quatro letras da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras, que, segundo a proposta atual, taxaria 0,2% de todas as transações bancárias de pessoas e empresas e seria destinada à Previdência Social. Ao contrário, as propostas que fizeram menção à taxação de grandes fortunas e lucros bancários, à tributação progressiva no Imposto de Renda e extinção de subsídios e subvenções públicos a empresas privadas de saúde foram ovacionadas pelos delegados e delegadas.

Tanta empolgação com temas econômicos pode ser interpretada como um sinal dos tempos, em que o SUS tem mais dificuldades para se sustentar do que carência de propostas de organização. Elas estiveram presentes, contudo. Algumas delineadas, como a defesa da organização do Estado que faça jus aos desafios impostos pelo século 21, apresentada pelo presidente da Fundação Perseu Abramo, Márcio Pochmann, que também falou do que considera 'constrangimentos' a sua implantação. A regionalização e o cartão SUS, velhas conhecidas, voltaram na fala do ministro da Saúde, Marcelo Castro, que deu um panorama de programas da pasta. Já a deputada federal Jandira Feghali centrou sua fala no que considera 'ataques à democracia' e criticou projetos que descaracterizam o 'valor democrático' do SUS apresentados pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha.

'Ainda estamos olhando o Brasil pelo retrovisor'

Márcio Pochmann abriu a rodada de apresentações com uma caracterização de três desafios que o país enfrenta - e só tendem a se tornar mais complexos - na esfera da saúde. O economista, que presidiu durante parte do governo Lula o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), vinculado à extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, trouxe dados relativos ao envelhecimento da população, mudanças no mundo do trabalho e na organização das famílias. Esse conjunto de transformações, segundo ele, são alguns indicativos que sustentam a tese de que é preciso reorganizar o Estado brasileiro. 'São questões novas sobre a quais a saúde ainda não tem respostas concretas e implicam alterar o Estado pesado construído a partir de princípios do século 19, como a fragmentação e a competição entre áreas, inclusive na área social, que olha o indivíduo em partes e não na sua totalidade', afirmou.

Segundo ele, se em 1990 1/3 da população tinha até 14 anos, hoje a faixa etária corresponde a 20% dos brasileiros e em 20 anos, esse percentual vai cair para aproximadamente 12%. 'Isso significa não apenas mudanças na composição do gasto na saúde, mas uma transformação na orientação das políticas públicas brasileiras', comentou, citando como exemplo de escolhas políticas geradas pela transição demográfica a redução no orçamento da educação que já acontece em alguns estados brasileiros. Para Pochmann, os gestores deveriam fazer o contrário: apostar na qualidade da educação, com a adoção do ensino integral, por exemplo. E como um país que tem menos jovens é necessariamente um país com mais idosos, o economista anunciou que a geração nascida em 2000 deve viver até os 100 anos. 'Infelizmente o Brasil de hoje não está preparado para essa  mudança demográfica', disse. Hoje, a expectativa de vida está próxima dos 80, um grande salto se comparado ao ano de 1915, quando os brasileiros viviam até os 34 anos. Essas mudanças se somam à nova configuração familiar monoparental, com um adulto e uma criança. Isso porque, segundo ele, a tendência é que as mulheres tenham apenas um filho e bem mais tarde, já que poderão viver até os cem anos.

Já as transformações no mundo do trabalho se relacionam à ascensão da chamada 'economia do conhecimento', com a tendência de que os países tenham a maior parte das ocupações geradas no setor terciário da economia e com mudanças negativas que pegam carona nas possibilidades geradas pelas novas tecnologias. Segundo Pochmann, quase 4/5 dos empregos do país estão no comércio e serviços, que, diferente de uma ocupação tipicamente industrial, como o metalúrgico que precisa estar na fábrica para produzir o automóvel, pode ser realizada também fora do 'expediente', de casa através da comunicação por telefone, e-mail, whatsapp, teleconferência, etc. 'Isso implica em doenças que não são os acidentes tradicionais de trabalho, caiu do andaime, perdeu dedo. É o burnout, o karoche, um crescimento de doenças neurológicas e do uso de drogas pela classe trabalhadora brasileira', pontuou.

Por essas razões, Márcio Pochmann afirmou que 'ainda estamos olhando o Brasil pelo retrovisor'. Ele defende que olhar para frente significa uma reconfiguração 'matricial, articulada e integrada não competitiva e cooperativa do Estado brasileiro', embora essa enumeração de qualidades não tenha sido acompanhada de mais detalhes de como seria esse novo modelo.

O economista falou dos 'constrangimentos' a essas transformações, que são de duas ordens. Uma, mais estrutural, se remete à organização do capitalismo no mundo.  Ao mesmo tempo em que o centro dinâmico do capitalismo se move dos Estados Unidos para a Ásia, sobretudo a China, o economista identifica 'uma crescente conformação de corporações transacionais que organizam a produção e distribuição da riqueza mundial'. Segundo ele, não mais do que 500 empresas respondem por 2/3 da riqueza no mundo e são responsáveis por 70% de todas as trocas comerciais globais. 'Essas empresas passam a ser mais importantes do que países. Em 2014, o Brasil era considerado a 7a economia mundial, mas se somarmos o faturamento das cinco maiores empresas do mundo, juntas elas tem mais do que o PIB nacional. As 70 maiores empresas têm um capital maior do que o PIB de 130 países juntos', informou. O resultado de tanta concentração é que a política se torna satélite da economia. 'Essas grandes corporações financiam processos eleitorais. A política está cada vez mais associada ao poder econômico, as empresas dominam o orçamento público contra a participação e o interesse popular. Há um movimento crescente de tornar a política irrelevante, não importa em quem se vote, se direita ou esquerda, já que farão exatamente a mesma política econômica', disse.

Crise no Brasil

O outro 'constrangimento' pode ser observado a olho nu a cada nova ação do Ministério Público e da Polícia Federal, mas se refere a um fenômeno de mais fôlego: o esgotamento da Nova República. A exemplo de outros intelectuais que têm espaço na cena pública, como Vladimir Safatle e Marcos Nobre, Pochmann acredita que o ciclo que se iniciou em 1985 com a democratização conhece agora o seu fim, com uma convulsão que tem como saldo a degradação e o descrédito da política. 'O que conseguimos construir, especialmente o SUS, foi feito pela política com P maiúsculo, que precisa ser resgatada. Não é possível continuarmos o esvaziamento da política'.

O problema da corrupção foi analisado indiretamente, através da recuperação da década de 1950, considerada o ponto zero dos grandes negócios entre Estado e empreiteiras. 'As origens dessa relação simbiótica estão no governo Juscelino Kubitschek com a demanda pública por construção civil que impulsionou a constituição das grandes empreiteiras nacionais e o incentivo à entrada de multinacionais no país, a exemplo das montadoras de automóveis'. Segundo ele, no governo militar esse 'congraçamento' só cresceu e nada mudou com a democracia. 'Em 1985, quando se inicia a Nova República, o governo federal tinha cinco orçamentos diferentes e só um passava pelo Congresso. Hoje, temos um único orçamento que passa pelo Congresso, mas o Estado precisaria ter feito reformas que não foram realizadas para colocar em xeque essa relação inapropriada'.

Além do desvio de recursos públicos, outra mazela decorrente da relação entre empresas e poder público seria o favorecimento explícito às classes proprietárias que existe no país. 'O Estado, que é forte para cobrar impostos dos pobres, é uma mãe para os ricos no Brasil', criticou, afirmando que se na ditadura, 22% do PIB vinha de impostos e tributos, hoje esse patamar é de 35%, um 'aumento feito em cima dos pobres'. Pochmann propôs a revisão do Imposto de Renda, com tributação progressiva, e o fim das deduções fiscais para saúde e educação privadas, que somam um rombo de R$ 52 bilhões nas contas públicas.

Golpe no Brasil

Jandira Feghali falou sobre o que considera ameaças atuais à democracia. 'Temos um governo eleito, e por mais criticas e limitações, este governo precisa ser respeitado e mantido. Quem quer ganhar, que ganhe na urna', sentenciou, se referindo aos pedidos de impeachment da presidente Dilma Rousseff que estão na Câmara dos Deputados e foram bandeira das manifestações realizadas por movimentos de direita ao longo de 2015, caracterizadas pela deputada como 'manifestações fascistas'. Jandira falou ainda sobre o aumento do preconceito na esteira dessa onda conservadora, com a multiplicação de crimes
de racismo, homofobia, contra a mulher e contra religiões, principalmente as de matriz africana, citando uma série de incêndios provocados contra terreiros recentemente em Brasília.

Sobre o que chamou de 'valor democrático', Jandira falou que as ameaças de retrocessos também pairam sobre conquistas como a Conferência Nacional de Saúde, expressões da democracia participativa. Ela citou ainda o recorrente desrespeito às deliberações das conferências: 'A explosão democrática produziu não apenas o texto constitucional, mas leis posteriores que possibilitaram construir conselhos e conferências, que têm o papel de deliberar as diretrizes políticas e prioridades que o país precisa dar à saúde que devem, sim, ser respeitadas pelos gestores nos três níveis de governo'.

Projetos contra e a favor do SUS

Situando os princípios do SUS - universalidade, equidade, integralidade - como valores essencialmente democráticos, Jandira Feghali falou retrocessos que rondam o SUS e outros, como o subfinanciamento, que são problemas de longa data do Sistema. 'O que está escrito na Constituição não está ultrapassado, não podemos ter o SUS subfinanciado, assentado num tipo de atenção e deixar o resto para o mercado' falou, se dirigindo ao ministro Marcelo Castro, sentado na mesa. Na sequência, a deputada criticou outro político do PMDB, o presidente da Câmara dos Deputados:'Com a licença da má palavra, Eduardo Cunha tem um projeto que obriga todos os empregadores e pagarem planos de saúde. Sabemos o que isso significa', ironizou, fazendo referência à Proposta de Emenda Constitucional 451, de autoria do presidente da Câmara dos Deputados. Outro projeto de autoria de Cunha criticado por Jandira é a PEC 5069, que retira o direito das mulheres vítimas de violência sexual de tomar a pílula do dia seguinte, além de criminalizar os profissionais de saúde que receitarem o contraceptivo. 'Não podemos deixar que a quebra do Estado laico ou a indústria da cesárea possa interferir no direito sexual e reprodutivo das mulheres. O aborto legal já estava contido no Código Penal de 1940', lembrou.  

No rol dos projetos de lei que viabilizariam e estruturariam o SUS, Jandira citou a tributação das grandes fortunas e destina os recursos adicionais para a saúde, de sua autoria, a tributação social sobre o lucro dos bancos, a destinação de 25% dos royalties do pré-sal para a saúde, frisando que isso não deve ser uma forma de extinguir fontes de financiamento já existentes, a retirada da saúde da Lei de Responsabilidade Fiscal e a reversão da entrada do capital estrangeiro na saúde. A volta da CPMF também foi defendida pela parlamentar - e como ocorreria em outras ocasiões na Conferência, a simples menção à contribuição bastou para provocar divisão entre participantes, entre vaias e aplausos.

A deputada federal mencionou ainda a formação em saúde, que na sua avaliação continua voltada para o mercado privado e não para o 'compromisso como o povo' e reafirmou a importância da política como possibilidade de transformação. 'Não há solução no plano individual. Precisamos apostar em reformas estruturantes, como democratizar os meios de comunicação, para permitir pluralidade de ideias, por que hoje [os meios] fazem a criminalização da política. É claro que devemos espantar os corruptos da política, mas mais do que isso, precisamos garantir que a política seja instrumento de transformação no Brasil. Saída individual é o suicídio'.

Elogios ao SUS em fala genérica

'Juntos, de mãos dadas, construiremos um SUS mais forte, universal, integral, igualitário, equitativo e inclusivo'. 'O lema da Conferência é 'saúde de qualidade para todos'. Cabe a nós, povo brasileiro, que com nossa luta construímos o SUS, dar essa resposta'.  'Todos nós precisamos dar nossa parcela de contribuição para aprimorar, qualificar, melhorar cada vez mais as ações e serviços de saúde publica'. As frases do ministro da Saúde, Marcelo Castro, dão o tom genérico da sua participação na conferência. Um tanto estranho no ninho, já que não tem histórico no movimento da Reforma Sanitária, o 'ministro de Estado da ocasião' - como ele mesmo se definiu -, centrou sua fala em problemas históricos do SUS, como o binômio descentralização/regionalização e o cartão SUS.

'O SUS foi concebido descentralizada e hierarquizadamente para que as ações sejam compartilhadas pelos três entes - União, estados e municípios. Muito já avançamos, mas  muito mais precisamos avançar. Hoje falta coordenação, regionalização para que a gente possa resolver, como é o propósito de todo programa universal de saúde que existe em toda parte do mundo, 90% dos problemas na cidade e região onde a pessoa mora', afirmou, defendendo que haja 'distribuição de tarefas' entre os municípios, formando redes que ofereçam do simples ao mais complexo nível de atenção. O ministro não citou o COAP, mas afirmou que a regionalização é 'meta do governo'.

Outra promessa antiga - que continua sendo meta do governo - é a implementação do cartão SUS. 'Hoje, com a tecnologia que temos, uma pessoa é atendida pelo médico e ele escreve no papel. Estamos trabalhando para que todo brasileiro tenha o seu cartão, que tenha toda a vida médica do paciente: qual médico o consultou, quais exames e cirurgias fez, em quais hospitais. Tudo isso para facilitar e racionalizar e melhorar o atendimento. E tem mais uma questão, vai evitar fraudes', afirmou.

Marcelo Castro comemorou a aprovação popular ao Mais Médicos, programa mais bem avaliado do Ministério da Saúde, e afirmou que o governo vai implantar o Mais Especialidades, que tem entre suas metas a abertura de 12,4 mil vagas de residência médica até 2017. Ele elogiou a presidente Dilma Rousseff e o ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, pela 'forte luta' que travaram contra 'setores que naturalmente são contra o SUS'. Outros programas foram citados, como o combate à AIDS, o Programa Nacional de Imunizações, o Programa Nacional de Transplantes - maior do mundo -  e o Farmácia Popular, que quando citado foi vaiado por parte da plateia. Castro comemorou ainda a compra pelo Ministério da Saúde de um novo medicamento para a hepatite C, que será distribuído gratuitamente. Com 90% de efetividade na cura da doença, o tratamento foi adquirido pelo governo por 9,5 mil dólares. 'Fizemos uma negociação muito vantajosa. Os Estados Unidos, Europa, Canadá Austrália compram entre 50 e 90 mil dólares'. O ministro da Saúde citou também a compra de 80 equipamentos destinados ao tratamento radioterápico do câncer, que, segundo ele, vai ampliar em 30% o acesso a esse serviço.

Por fim, o ministro tratou do subfinanciamento do SUS e defendeu a volta da CPMF, causando uma saraivada de vaias da plateia. 'Estamos lutando de maneira franca a aberta, uma luta à luz do dia, no meio da arena, para levar mais recursos para o SUS. Para União, estados e municípios. O que está posto no Congresso que pode ser votado? CPMF. [vaias] Qual o defeito da CPMF? Quando foi concebida no governo FHC, foi só para a União. Isto não estava certo. A saúde pública é responsabilidade da União, estados e municípios. Como criar um imposto para atender só um deles? Isso deve ser compartilhado [muitas vaias]'. A essa altura, a presidente do Conselho Nacional de Saúde, Maria do Socorro - que defende a CPMF para a Seguridade Social - fugiu do protocolo e pediu cinco vezes para o ministro encerrar sua fala. Mas Castro ainda teve tempo de fazer um anúncio sobre o orçamento: 'Ontem conseguimos na Comissão de Orçamento, 100 bilhões. Nosso orçamento será praticamente sem déficits para o ano que vem'.