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Associações de vítimas da Covid-19 buscam acesso à saúde, direito à memória e reparação

Motivações que pautam as associações criadas vão desde a articulação com ideais da década de 1970, pela democratização e fortalecimento do SUS, até a solidariedade, mas também incluem prestação de serviços ao setor público e privado
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 10/03/2022 13h37 - Atualizado em 01/07/2022 09h40
Ação em memória das vítimas da Covid-19 na Praça dos Três Poderes realizada em 8 de outubro de 2021, mês de entrega do relatório da CPI da Covid-19 Foto: Pedro França / Agência Senado

Em janeiro de 2021, Italira Falceta, de 81 anos, precisou passar por uma cirurgia. Não teve tempo de se vacinar, contraiu Covid-19 no hospital e, mesmo após uma melhora, precisaria retornar à Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), mas não havia vaga. A indignação pela morte da mãe motivou a assistente social Paola Falceta a se mobilizar. No começo, seu foco era a denúncia, mas um amigo advogado que passou dez dias entubado, Gustavo Bernardes, a convenceu a ir além do aspecto jurídico e buscar mais direitos. “O Gustavo já tinha experiência com os movimentos da Aids e LGBTQIA+ e me perguntou se eu gostaria de formar uma associação. No primeiro momento, eu disse que não, que achava que era muito trabalho, que não era o que eu gostaria de fazer, queria fazer uma ação popular, alguma coisa nesse sentido”, relembra. Mas depois ela mudou de ideia.

Atuante no movimento da Reforma Sanitária nas décadas de 1970 e 80 e atualmente pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, Sônia Fleury vê nos movimentos formados por vítimas ou portadores de determinadas doenças um papel importante para a garantia de direitos no regime de “inseguridade social” em que vivemos, agravado pela pandemia e pelo que ela considera uma recusa do governo em cumprir seu dever. “Esse é um novo momento em que todas as forças democráticas estarão juntas novamente para evitar a continuidade do desmonte do sistema de proteção social no país”, diz.

Uma nova atuação
A morte de Italira ocorreu em 2 de março de 2021 e, no dia 8 de abril, foi criada a Avico. Lançando a ideia nas redes sociais, os dois amigos reuniram 17 pessoas interessadas em participar, entre elas profissionais liberais e pesquisadores da área de direitos humanos. Em janeiro de 2022, a associação contava com 50 voluntários e tinha reunido 1,5 mil depoimentos de parentes de vítimas e pessoas que tiveram sequelas da doença. A assistente social conta que recebe pelo menos 20 mensagens por dia pelas redes sociais com diversas dúvidas e pedidos de ajuda. Os pedidos de orientação estão relacionados às formas de acesso a políticas sociais de saúde, assistência social e previdência. Falceta explica que hoje a principal função é orientar, pois no momento a associação ainda não conta com assessoria direta de um escritório de advocacia. Apesar disso, eles ajudam a encaminhar as demandas à Defensoria Pública e ao Ministério Público. “O que eu escuto nas falas das vítimas é que se não fosse o SUS [Sistema Único de Saúde], muitos deles não estariam vivos e que, infelizmente, por não termos deixado o SUS trabalhar, a vacina não estava disponível antes para evitar os efeitos longos da doença e morte de parentes. Essas pessoas, ainda que não tenham todo conhecimento sobre a política de saúde pública, têm um reconhecimento enorme da importância do Sistema”, diz.

Os voluntários se organizaram também para criar um Grupo de Apoio aos Enlutados, formado por assistentes sociais, antropólogos, psicólogos e estudantes de psicologia. Esse trabalho começou a funcionar em maio de 2021 e hoje presta apoio a cerca de 70 pessoas, num ciclo que se renova a cada oito semanas, com outras vítimas. O trabalho está sendo acompanhado pela Rede Covid-19 Humanidades, do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), formada principalmente por antropólogos que estão coletando depoimentos dos integrantes para transformar em livro e documentário.

Roque de Sá/Agência SenadoOito meses após a criação da Avico, o Ministério Público Federal ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP)  em que cobra da União reparação no valor de R$ 100 mil para pessoas que perderam parentes vítimas da Covid-19 e R$ 50 mil para quem ficou com sequelas da doença. Além da indenização, a ACP também exige que o governo elabore uma política pública para buscar e mapear os pacientes da chamada “covid longa” ou que tiveram sequelas decorrentes do agravamento da doença e que estabeleça protocolos ou diretrizes terapêuticas para essa população. Exige ainda uma indenização coletiva, “não inferior a R$ 1 bilhão”, para o Fundo Federal de Direitos Difusos, com destinação específica para o desenvolvimento científico relacionado a doenças infectocontagiosas no prazo de um ano após a decisão judicial.

A elaboração da ação ocorreu em parceria entre Ministério Público Federal do Distrito Federal e a Avico. A Associação recebeu o contato da procuradora Luciana Loureiro após a morte de dois servidores e, a partir daí, foi feito um levantamento de cerca de 150 casos de pessoas que morreram entre janeiro e maio em decorrência do atraso da vacina, como foi o caso da mãe de Falceta. “E desse primeiro trabalho em conjunto nasceu uma parceria com o MPF e a gente passou a subsidiá-los com várias outras informações que desencadearam no ajuizamento da ação civil pública”, relembra a assistente social, que trabalhou em unidades do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul por 14 anos.

Dias após o anúncio de que a Ação Civil havia sido protocolada, em 15 de dezembro, os contatos começaram a se multiplicar. E o grande volume de trabalho fez a Associação pensar em novas formas de atuação. “Agora que estamos pensando em uma estratégia para profissionalizar algumas áreas porque, com quase dez meses de fundação, a gente viu a necessidade de várias coisas. Crescemos muito, fomos chamados nos mais diferentes espaços, tanto no legislativo quanto no executivo e nos conselhos de controle social”, relata Falceta.

E a Avico não é a única organização da sociedade civil voltada para a defesa dos atingidos pela pandemia no Brasil. Criada semanas depois, ainda em abril de 2021, a Vida e Justiça - Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19 tem uma forte atuação parlamentar, o que permitiu apoio para protocolar projetos. A associação tem forte participação de entidades acadêmicas ligadas à saúde, como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), organizações que estiveram presentes também na mobilização social que marcou o movimento da Reforma Sanitária na década de 1970, levando à criação do SUS. O objetivo da entidade é garantir a memória das vítimas de Covid-19 e oferecer auxílio político e jurídico para que essa mobilização aconteça. Já foram criados 13 núcleos em território nacional, que contam com a estrutura jurídica oferecida pelo mandato do deputado federal Pedro Uczai (PT-SC).

A elaboração de um plano nacional para combate a pandemias e endemias, a criação de um dia nacional em homenagem à memória das vítimas e de uma semana em apoio e defesa dos direitos das vítimas de Covid-19 estão entre as demandas apresentadas à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid. O documento pede ainda a valorização do testemunho pessoal para alimentar as investigações sobre as responsabilidades dos governos pelas mortes e sequelas provocadas pela doença. “Você vê que a CPI fez um trabalho importantíssimo, mas até agora aquelas denúncias todas não foram apuradas. Então, é necessário manter essa movimentação viva. É um sofrimento tão grande! É necessário a gente dar vazão para a construção de políticas públicas com uma proteção social robusta para as vítimas e os afetados”, avalia a presidente do Cebes e da Associação Vida e Justiça, Lúcia Souto. Para custear essas políticas públicas, foram protocolados, a partir do deputado Pedro Uczai (PT-SC), seis projetos de lei que propõem a taxação de grandes fortunas. Segundo Souto, o Brasil deveria seguir o exemplo da Argentina e usar a taxação para criar um fundo de proteção a todas as vítimas e afetados pela pandemia. A taxação no país vizinho foi aprovada em dezembro de 2020 e o imposto foi aplicado no ano passado em fortunas superiores a 200 milhões de pesos, cerca de dois milhões de dólares. Pesquisa realizada pela Oxfam e divulgada em maio de 2021 indica que 84% dos brasileiros apoia a taxação de super-ricos para financiar a conta da crise deixada pelo novo coronavírus. De acordo com relatório da mesma organização, divulgado em janeiro deste ano, desde a chegada da pandemia, em março de 2020, o Brasil ganhou dez novos bilionários, que formam um grupo de 55 pessoas. Os 20 maiores bilionários do país concentram US$ 121 bilhões, maior do que a soma da renda de 60% da população brasileira.

Outra demanda da Associação Vida e Justiça é que, a exemplo do que fez o estado do Maranhão, que criou o ‘Auxílio Cuidar’, haja um programa nacional de apoio a crianças e adolescentes que ficaram órfãos na pandemia. O projeto, criado pelo governador Flávio Dino (PSB-MA), destinará R$ 500 mensais para crianças e adolescentes órfãos até que completem a maioridade e está promovendo uma busca dessas vítimas para que tenham seu direito assegurado. Em dezembro, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), em conjunto com o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), lançou um relatório em que calcula que 113 mil crianças e jovens menores de 18 anos ficaram órfãos em função da Covid-19 no Brasil. O número sobe para 130 mil quando se incluem aquelas que eram cuidadas pelos avós. Sobre esse tema, tramita no Congresso Nacional também outro PL, nº 1305/2021, proposto pelos deputados Rejane Dias (PT-PI) e Flávio Nogueira (PDT-PI), que prevê assistência financeira até esses órfãos completarem a maioridade. A primeira lei de amplitude nacional aprovada é nº 14.128, em 26 de março de 2021, fruto do PL 1826/2020 proposto por Reginaldo Lopes (PT/MG) e Fernanda Melchionna (PSOL/RS), que concede compensação financeira aos trabalhadores da saúde que ficaram incapacitados de continuarem exercendo seu trabalho ou a cônjuges ou dependentes em caso de morte dos profissionais de saúde. No entanto, para entrar em vigor a lei depende da publicação de um decreto que especifique a origem dos recursos para que as indenizações sejam pagas e a associação acompanha esse desdobramento.  

Integrante do Grupo de Trabalho de Saúde Mental da Abrasco e professor na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Deivisson Vianna acrescenta que a associação também tem promovido encontros dos familiares das vítimas com profissionais de saúde e pesquisadores. “A partir desses encontros, a proposta é que surjam estratégias de ajuda mútua, principalmente o acompanhamento de saúde mental dessas vítimas, e também ideias de pesquisa”, detalha. O professor atribui as iniciativas positivas de combate à pandemia aos profissionais de saúde, ao SUS e à pressão da sociedade civil. “As vitórias que tivemos, como por exemplo, a taxa de vacinação brasileira, foi um mérito do SUS, da pressão da sociedade por uma vacinação. Isso nunca foi o plano original do governo federal. Então, a gente atua politicamente via associações, intensificando a pressão parlamentar, a judicialização das ações… É isso que faz com que o número de vítimas não seja maior do que já é”, defende.

Integrantes da Avico e da Vida e Justiça se encontraram no dia 27 de janeiro na Assembleia de Convergência da Saúde, preparatória para o Fórum das Resistências, evento a ser realizado em abril, um mês antes do Fórum Social Mundial, com o objetivo de construir consensos e prioridades comuns de luta tanto na saúde como em outras áreas. A Assembleia contou com a presença de diversos movimentos sociais da área e representantes de conselhos de saúde. Na ocasião, Lúcia Souto apresentou a primeira versão do documento de convergência que será debatido e consolidado no Fórum das Resistências. Tendo como eixo principal a tese elaborada pelo Cebes sobre a conjuntura e perspectivas do período de 2021 a 2022, lançada em janeiro e resultado de consensos produzidos a partir de debates com outros movimentos e acadêmicos, o documento enfatiza a importância dos determinantes sociais da saúde para pensar novos rumos para o país. “Nós estamos cada vez mais com uma crescente desigualdade no Brasil e no mundo. Uma coisa absolutamente obscena, uma concentração de renda crítica. A concentração de renda e desemprego são determinações sociais que, na verdade, [significam] a exclusão da esmagadora maioria da população de qualquer projeto civilizatório”, diz a presidente do Cebes e da Associação Vida e Justiça.

Com um discurso menos engajado sobre políticas públicas e o SUS, a Associação Brasileira de Vítimas de Covid (Abravico) foi a primeira criada para representar pessoas atingidas pela doença. Sua fundação se deu ainda em 2020, em Dourados (MS), com o objetivo de ser uma articuladora para a prestação de serviços a vítimas de Covid-19 e população vulnerável. Em documento disponibilizado na página da associação, o fundador Mauro Quijada cita sua experiência como consultor e analista de licitação e profissional da saúde, apresenta os profissionais que integram a equipe e convida seus possíveis “clientes” a um café. A apresentação, diz um comunicado da página, foi levada à Câmara Municipal de Dourados em 4 de abril de 2021, quando a entidade se colocou à disposição para oferecer consultorias em segurança do trabalho para o setor público e privado, além de apoio jurídico, psicológico e fisioterapêutico.

Em 4 de fevereiro deste ano, a Abravico ingressou com uma Ação Civil Pública em que acusa o governo federal de negacionismo e de não tomar as medidas necessárias para contenção da pandemia e pede R$ 200 milhões de indenização por danos morais, sendo R$ 100 milhões para “órgãos e entidades com projetos destinados às pessoas atingidas pelo vírus”, R$ 10 milhões para a própria Abravico e o restante para familiares de mortos por Covid-19, profissionais da saúde e pessoas que ficaram com sequelas da doença. A Ação pede também auxílio para menores de 18 anos que ficaram órfãos da Covid-19. A perspectiva de Mauro Quijada é participar de chamadas públicas como Organização da Sociedade Civil (OSC) para ser contratado pelos governos para atuar junto aos grupos vulneráveis com ações tanto de prevenção quanto de tratamento pós-covid.

No dia 15 de fevereiro, integrantes da Abravico, assim como da Justiça e Vida, participaram da cerimônia de inauguração do memorial às vítimas da Covid-19 nas dependências do Senado Federal. O memorial é formado por uma estrutura de 27 prismas de mármore, que representam os 26 estados e o Distrito Federal, e foi determinado pela resolução 26 de 2021 do Senado Federal, a pedido da CPI da Covid.

Papel do Estado e movimentos em saúde
Arquivo COCMas por que seria possível cobrar do Estado a conta pelas mortes e sequelas da Covid-19? No Artigo 196, a Constituição de 1988 estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. E, na interpretação dos militantes à frente desses novos movimentos, o registro de mais de 650 mil mortes e a demora em iniciar negociações para a vacinação de adultos e a tomar medidas para contenção da doença e tratamento mostrariam que o governo federal descumpriu o que diz a Carta Magna. “Ainda que a gente tenha críticas ao judiciário, eu acredito nessas instituições e no poder que foi dado para nos representar a partir da Constituição Federal de 1988. Então, eu não sei de que maneira isso vai acontecer, mas tenho uma alta expectativa de que seja considerada procedente nossa Ação Civil Pública”, diz a presidente da Avico.

Embora marcado por um contexto sanitário e político diferente, nada disso é propriamente novidade para o campo da saúde pública. Afinal, foi também por meio da mobilização social, que envolvia setores diversos da sociedade civil organizada nas lutas pela redemocratização do país, que o direito universal à saúde conseguiu ser inscrito na Constituição Federal de 1988. Foi a partir da segunda metade da década de 1970, principalmente, que algumas ditaduras latino-americanas perderam força e a mobilização pela democratização e reformas sociais se intensificou. “O chamado movimento Popular de Saúde vem desde os anos 1970 com uma reivindicação pela construção do SUS de uma forma geral, articulado com um conjunto muito importante de associações e federações de associações de moradores”, relembra a pesquisadora da Fiocruz em Pernambuco Paulette Albuquerque.

Antes e depois da Constituição Cidadã e do SUS, outros movimentos surgiram com demandas específicas, mas associados ao fortalecimento do atendimento público à saúde. Sônia Fleury entende que esses movimentos são desdobramentos do movimento sanitário e trouxeram avanços, em especial os que nasceram com a epidemia de Aids (leia mais na edição nº 80 da Poli). “A mobilização de combate à Aids teve a particularidade de um grande envolvimento da sociedade civil e também de organismos internacionais. De tal forma que se criou um triângulo entre autoridades nacionais, participação das organizações internacionais e da sociedade civil. Foi um modelo de participação introduzido pela reforma e que avançou muito nesse sentido”, avalia.

A distribuição universal gratuita de medicamentos inicialmente importados e posteriormente produzidos no Brasil, em um acordo histórico de suspensão de patentes, talvez tenha sido a principal pauta do movimento de combate ao HIV/Aids no Brasil que entre outras atividades, formou o Grupo de Trabalho de Propriedade Intelectual (GTPI) para acompanhar, pressionar e sensibilizar autoridades. “A disputa na OMC [Organização Mundial do Comércio] revelou, mais do que tudo, aspectos importantes no que diz respeito aos preços dos medicamentos produzidos pelas grandes companhias farmacêuticas, e não somente os preços dos medicamentos para a Aids, colocando, como há muito tempo não se via, uma questão de saúde pública no centro do debate mundial”, escreveu a antropóloga Jane Galvão em artigo publicado em 2002. Mas, naquela época, no cenário de uma doença nova que também causava uma pandemia, a mobilização social articulou ainda a garantia de acesso à toda rede de assistência e outros direitos, como a gratuidade no transporte coletivo.

A experiência do movimento de combate à Aids mostra que a mobilização social ajudou inclusive a impulsionar descobertas científicas que salvaram e melhoraram as condições de vida das pessoas atingidas. “Eu acho que a gente precisa ainda aprofundar muito a ciência para conhecer a Covid-19 e, a partir daí, pensar se a Avico vai ter uma atuação imediata ou mais a longo prazo”, diz Paola Falceta, referindo-se, principalmente, ao maior ou menor controle do que hoje se chama de “Covid longa”. “Mas, pelo que eu conheço um pouco da história do mundo e da luta por direitos humanos, acredito que nós vamos ter, sim, muito trabalho pela frente”, vislumbra.

Um renascer da mobilização social?
Pesquisadora da Fiocruz Pernambuco, Paulette Albuquerque enxerga com esperança as mobilizações das quais tem participado. Seja nos cursos para agentes populares de saúde e trabalhos ao lado do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em Olinda, quanto na Frente pela Vida, da qual participa vinculada à Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (Aneps). “A sensação que a gente tinha era de um processo de desmobilização e de afastamento dos bairros,  que passa agora a voltar nos diversos eventos da saúde, nos conselhos, mas também nos outros eventos que os municípios promovem”, comenta. E completa: “A gente entende que a pandemia voltou a trazer a pauta do local, da associação de moradores, dos conselhos, dos movimentos de base. Tem-se buscado um envolvimento novamente de movimentos populares pungentes que estão se colocando na defesa do SUS de uma forma geral.

A sensação que dá é que estamos voltando para os anos 1970”, completou a pesquisadora, que ministra um curso rápido para a formação de agentes populares de saúde. “Essas formações passam primeiro por como identificar os problemas de saúde da comunidade e o da Covid-19. E a gente vai desde o processo de cuidar do indivíduo até como cuidar da saúde da comunidade como um todo”, conta. A parte final inclui a reivindicação de direitos, que varia de acordo com a comunidade. “Uns vão trabalhar com a questão da água e vão para as companhias de águas, outros vão pensar na questão do transporte, outros vão para o posto de saúde”.

O mesmo otimismo da médica se reflete na criação da Frente pela Vida, criada em 2020 e que reúne inúmeras entidades acadêmicas da área da saúde, movimentos sociais, sindicatos, conselhos de saúde e entidades de classe. Em 2020, a Frente lançou o Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19 e desde então tem acompanhado e se posicionado crítica e propositivamente em relação às ações governamentais sobre a pandemia, cortes de orçamento na ciência e na saúde. Para Albuquerque, a reunião de tantas articulações se entendendo é importante para pautar a mídia, ações parlamentares e discussões locais. “É importante para o movimento do qual eu faço parte, o Mãos Solidárias, por exemplo, saber que existe uma Frente que está colocando um documento que é levado lá para a unidade de saúde, para a associação de moradores e que passa a ser discutido como uma pauta da sociedade como um todo”, celebra.

A presidente do Cebes e da Vida e Justiça, Lúcia Souto, entende a criação da Frente pela Vida como uma forma de atualização da Reforma Sanitária e reforça a pluralidade de entidades que a constituem. Para ela, a pandemia mostrou que é preciso superar a era do individualismo sentenciada pela ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher na década de 1980 e pensar soluções coletivas em um novo projeto civilizatório. Bastante atuante na Frente, Couto conta que está em fase de elaboração um documento para ser entregue aos candidatos à presidência da república nas eleições deste ano. “Tudo que nós vivemos até agora é tão grave, tão crítico, que impõe uma mobilização. Para nós, da Reforma Sanitária, da luta pelo direito universal à saúde, as conquistas vieram sempre com um processo amplo e participativo que a gente construiu na Constituição de 1988, a partir daquela ampla mobilização da 8ª [Conferência Nacional de Saúde]. Então, nós temos que colocar a força social e política na rua. Eu acho que muita gente vai aderir a essa proposta, porque realmente a saúde já chacoalhou a vida do mundo e do Brasil”, aposta.

Sônia Fleury, que é também coordenadora do Dicionário de Favelas da Fiocruz, vê nesse momento de grande mobilização uma oportunidade de ir além dos ideais da década de 1970. “Eu acho que os ideais da Reforma Sanitária devem ser revistos e que devemos tentar ir além da mera defesa do SUS. Nós ficamos muito prisioneiros de defender o SUS. Então, eu acho que é uma hora de resgate, mas por outro lado é de avançar para além do que o SUS pôde fazer até agora”, avalia. A socióloga coloca ênfase na necessidade de ampliar a participação social, especialmente para a inclusão de usuários do sistema. “É um momento para repensar o próprio modelo de conferências que de alguma forma vem se esgotando ao longo do tempo. A ideia de ser um espaço de diálogo, um espaço de construção da vontade política foi sendo substituída por mera votação, sem que haja diálogo político – um ponto muito importante da ideia original das conferências”, exemplifica.

“Eu acho que vamos ter que buscar essa luta integrada, como ocorreu no período da Reforma Sanitária porque os direitos devem ser conquistados permanentemente. A gente conquista agora e vai vir uma outra gestão que vai retirar”

Paola Falceta, presidente da Avico

E, se essa for mesmo uma prioridade, o cronômetro já começou a correr. Isso porque, em 7 de fevereiro, foi publicado no Diário Oficial da União o cronograma da 17ª Conferência Nacional de Saúde: a etapa municipal começa em novembro deste ano e a nacional acontece em julho de 2023. Os caminhos podem ser diversos, mas, para Paola Falceta, o presente precisa revisitar o passado. “Eu acho que vamos ter que buscar essa luta integrada, como ocorreu no período da Reforma Sanitária porque os direitos devem ser conquistados permanentemente. A gente conquista agora e vai vir uma outra gestão que vai retirar”, diz.
E vai ter fôlego para isso? “A gente está trabalhando para que [essas ações] tenham fôlego. Agora, a gente só acredita que esse fôlego existe em movimento, colocando novas tarefas e novas demandas para serem mobilizadas. Então, vamos ter que correr muito atrás desse processo para poder manter vivo o movimento no pós-pandemia”, finaliza Paulette Albuquerque.

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Com a certeza de que seriam principais atingidos, esses movimentos foram os primeiros a se articular e sair às ruas em prol de direitos