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Cada vez mais desiguais

Desde os anos 1970, a desigualdade entre ricos e pobres no mundo só fez crescer. Enquanto oito bilionários detêm o mesmo que 3,6 bilhões de pessoas, novas pesquisas mostram que até onde se pensou que o abismo social havia diminuído – caso do Brasil – nenhuma política ou governo foi capaz de solucionar o problema
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 22/03/2017 10h50 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Prédios são erguidos no 'Porto Maravilha', a poucos metros do morro da Providência, no Rio de Janeiro Foto: Fábio Caffé

Nos últimos anos, alguns números vêm atravessando o caminho dos empresários, investidores e governantes mais poderosos do globo, justamente quando esses personagens acorrem aos Alpes prontos a reafirmar os avanços ‘indiscutíveis’ que a economia de mercado trouxe para a humanidade. Não que não tenha havido avanço. Houve, sim. Mas da desigualdade. Atualmente, os oito homens mais ricos do mundo detêm, juntos, US$ 426 bilhões. É o mesmo valor compartilhado por 3,6 bilhões de pessoas, que representam a metade mais pobre da população mundial. Em 2015, o número era ‘menos’ chocante: 62 bilionários precisavam somar suas fortunas para fazer frente a essa multidão. Mas foi naquele ano que o 1% mais rico passou a acumular o mesmo que os 99% restantes. Se a tendência se perpetuar, em 25 anos poderemos conhecer o primeiro trilionário. Esses e outros dados têm sido divulgados de maneira estratégica pela ONG britânica Oxfam no Fórum Econômico Mundial, que acontece em Davos na Suíça.

No outro quadrante do planeta, durante algum tempo noticiou-se tendência oposta. Depois de décadas marcando presença na lista das nações mais desiguais, o Brasil teria conseguido reduzir sua histórica concentração de renda neste início de século a partir de uma combinação virtuosa de crescimento econômico e políticas públicas. Contudo, uma bateria de estudos apoiados em números inéditos do Imposto de Renda veio atravessar esse samba. “A concentração no Brasil não tem paralelo no mundo”, rebate o economista Rodrigo Orair, do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Com base nas informações liberadas pela Receita Federal em 2016, ele e outros pesquisadores têm demonstrado que medidas como transferência de renda e valorização do salário mínimo não foram suficientes para diminuir o abismo entre pobres e ricos e. E isso por uma razão muito simples: a despeito de o andar de baixo ter ganhado alguma coisa, o 1% mais rico seguiu abocanhando cerca de 23% de toda a renda nacional.  E sendo pouco  – ou nada – tributado por isso.

Lá e cá os números gritam: estamos cada vez mais desiguais. Mas quem acompanha o noticiário sabe que da mesma forma abrupta com que esses números estampam as páginas dos jornais – quando estampam –, uma vez cumprido o ciclo midiático, eles somem. Sem explicação, contextualização ou massa crítica acumulada parecemos estar fadados a esquecer o assunto até que o mais novo estudo rompa o horizonte e nos surpreenda com uma lista ainda mais exígua de bilionários. Nessa reportagem, além dos números, você vai conhecer algumas análises que, de olho na história, ajudam a refletir sobre o sentido da desigualdade no mundo em que vivemos.

Dos ‘anos dourados’ ao fundo do poço

Ao divulgar o relatório este ano, a Oxfam usou a sugestiva imagem de um carrinho de golfe. Com oito assentos, o veículo comporta os homens mais ricos do mundo. Já para embarcar metade da população mundial seriam necessários nada menos do que 450 milhões de carrinhos. A desigualdade neste caso é gritante. Mas um primeiro passo para entender a desigualdade no mundo é perceber o quanto ela é fundante. O modo de produção capitalista pressupõe uma relação desigual entre o dono da fábrica e quem nela trabalha. Não faz parte desse script superar essa assimetria. Quando se fala em avanço da desigualdade, portanto, não se parte de uma situação de igualdade. Mas de um fosso social menos profundo.  

“É preciso deixar claro dois movimentos aparentemente contraditórios. O primeiro: é possível haver melhor distribuição de renda e melhores condições de vida sob o capitalismo, e isso realmente ocorreu em alguns países durante algum tempo. O segundo: não há nenhuma tendência do capitalismo a melhorar nem a distribuição de renda nem as condições de vida da população. Ao contrário, tende a piorá-las, uma vez que seu impulso fundamental e sua lógica central é a do crescimento do lucro”, explica a historiadora Virgínia Fontes, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Segundo ela, o que determina para onde se move o pêndulo entre esses dois polos é a pressão que a maioria das pessoas, os trabalhadores, são capazes de exercer sobre a minoria de donos de fábrica. E vice-versa.

Até o início do século 20, em todo o mundo a alíquota máxima do Imposto de Renda não passava de 10%. No cabo de guerra da política, as elites levavam sempre a melhor na sua resistência contra a tributação. “Foi preciso o caos político e econômico para que rapidamente essas elites concordassem em elevar as alíquotas do imposto para níveis superiores a 50%, chegando a ultrapassar 90% nos Estados Unidos e na Inglaterra”, diz Rodrigo Orair. Nada disso brotou da terra ou caiu do céu. Foram necessárias duas guerras mundiais, com várias revoluções e intensas lutas sindicais no meio, para que os trabalhadores acumulassem força suficiente para puxar a corda – que esticou a ponto de assustar o outro lado.

“O medo que se tinha ao final da Segunda Guerra foi que acontecesse o mesmo que ocorreu em praticamente todos os países que participaram da Primeira Guerra Mundial que, ao provocar uma miséria enorme, desencadeou a revolução alemã, a revolução russa, a revolução na Hungria, a revolução no norte da Itália, movimentos grevistas fortíssimos na Inglaterra... O mundo todo estava convulsionado porque os trabalhadores começaram a desertar em massa e a transformar uma guerra capitalista em revolução. A política de Bem-Estar Social foi pautada por esse temor de que, se nada fosse feito, poderia haver uma nova onda de levantes”, contextualiza a socióloga Lúcia Bruno, professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

Assim, os países industrializados convergiram para a adoção de um pacote de medidas que, juntas, contribuí-ram para a redução drástica da desigualdade ao longo de várias décadas, período que ficou conhecido como os ‘30 anos de ouro’. Nessa cartilha, os tributos deveriam ser progressivos, ou seja: quanto mais rica a pessoa, maiores taxas lhe cabiam. Esse dinheiro iria compor o fundo público que, por sua vez, financiava políticas universais, como um sistema de saúde e uma rede de ensino públicos que qualquer um poderia – e deveria – usar. Por fim, houve a aprovação de uma série de leis trabalhistas que asseguravam salário mínimo, jornada máxima, férias remuneradas etc., e, com isso, tentavam equilibrar a balança desigual entre os interesses dos empregadores e dos empregados. “Então você tem um contexto muito específico que passa também por um dinamismo econômico e um novo paradigma tecnológico, em que prevalecia a ideia de um crescimento puxado pela indústria e pelo consumo”, acrescenta Rodrigo.

Isso começa a se reverter em meados da década de 1970, com uma crise econômica que faz emergir um conjunto de ideais que lançam o pêndulo no sentido do crescimento do lucro, de onde ele não saiu até hoje. “É a fase da globalização, da liberalização de mercados e da reorientação do papel distributivo da política fiscal. Criou-se um consenso de que não era função da tributação promover redução da desigualdade a partir do seguinte raciocínio: você tem que eliminar a progressividade dos impostos, fazer uma alíquota linear para todo mundo, sem essa lógica de que o rico deve pagar mais”, diz Rodrigo, fazendo referência ao neoliberalismo, paradigma econômico que afetou quase todos os países do mundo mais cedo ou mais tarde. “Normalmente, aquilo que os economistas neoliberais defendem como solução para a crise são ajustes estruturais da economia. Entre outras coisas, essas medidas bombardeiam os rendimentos do trabalho na expectativa de que haja uma concentração de capitais, e que esses capitais se transformem em investimentos”, afirma, por sua vez, o sociólogo Ruy Braga, professor da USP.

Do ponto de vista da riqueza e da renda, os anos 1980 são o momento-chave para entender os números da desigualdade. A década é marcada por uma reestruturação nas empresas. “Começa na indústria, com o incremento da robotização, e evolui para a informatização das corporações, que transborda para o setor de serviços, onde se percebe nitidamente a eliminação daquilo que a gente poderia chamar de camadas intermediárias de trabalhadores. Postos de controle, análise, concepção e gerência foram substituídos por sistemas de informação”, completa Ruy Braga. Ao mesmo tempo em que diminuiu o número de pessoas com salários médios, a conta bancária dos funcionários no topo da hierarquia das empresas foi às alturas. Isso porque esses executivos foram transformados em ‘sócios’. Ou seja, parte substancial da sua remuneração passou a ser em bônus, ações ou outros ativos financeiros das empresas. Segundo o relatório da Oxfam, as empresas que atuam no Reino Unido transferem 70% dos lucros diretamente aos acionistas, quando em 1970 esse valor era de 10%, pois o restante era reinvestido na própria empresa. “Os rendimentos dos executivos aumentam na exata medida em que se mostram capazes de reduzir os custos das empresas, maximizando os lucros destinados aos acionistas. Como eles fazem isso? Cortando na força de trabalho, qualificada ou não. É uma bola de neve. E é uma lógica que ultrapassa qualquer país, qualquer política social”, explica Lúcia Bruno.

O arco do fenômeno da crescente polarização dos rendimentos se completa quando entra em cena a base do mercado de trabalho, que inchou. Esses postos são destinados a pessoas com pouca qualificação que, por isso mesmo, podem ser facilmente substituídas. “A cadeia produtiva é complexa. Alguns elos operam com trabalhos muito simples, que qualquer um pode fazer”, diz a socióloga, completando: “O capital precisa cada vez menos de um grande número de trabalhadores muito qualificados. O raciocínio é o seguinte: eu preciso de 10%, então não vou formar 100%. Se essa mão de obra potencialmente existente não vai ser necessária, por que investir na educação de todo mundo? Você qualifica uma elite e, para o restante, dá escola. Mas só porque a escola cumpre outra função fundamental, que é disciplinar e controlar essa juventude e essa infância pobre”.

Esse inchaço da base do mercado de trabalho está diretamente relacionado à globalização. “Quando a gente fala em mercado de trabalho, normalmente pensa em escala nacional: mercado brasileiro, argentino, indiano, francês. Mas com a globalização, houve a formatação de um mercado global de trabalho em que houve a entrada de uma quantidade praticamente incalculável de trabalhadores e isso pressionou para baixo os salários no mundo todo”, diz Ruy. As empresas passaram a instalar ou contratar fábricas em países periféricos onde os impostos são menores, a legislação ambiental frágil, os salários e encargos trabalhistas mais baixos do que nos países centrais. Por seu turno, os governos nesses países oferecem isenções fiscais, flexibilizam leis existentes, acenam, enfim, com uma série de vantagens no afã de atrair investimentos. “A gente entrou numa espécie de corrida até o fundo do poço em que os Estados competem entre si e, assim, vão deprimindo as suas rendas nacionais. As forças sociais do trabalho estão totalmente na defensiva e os setores empresariais, as grandes corporações, os monopólios e oligopólios internacionais partem para a ofensiva porque acumulam muito poder econômico. Isso compra políticos, compra políticas e assim por diante”, analisa o professor da USP.

O relatório da Oxfam compila alguns números que retratam vários ângulos da gritante assimetria de renda hoje. Uma visão do topo para o centro: o diretor executivo da maior empresa de informática da Índia ganha 416 vezes mais que um funcionário médio da mesma empresa. Uma visão do topo para a base: um diretor-executivo de qualquer empresa do índice FTSE-100 (que acompanha os altos e baixos da bolsa de valores de Londres através das ações de 100 companhias) ganha em um ano o mesmo que 10 mil trabalhadores de fábricas de vestuário localizadas em Bangladesh. Uma visão panorâmica do mundo: a renda dos 10% mais pobres aumentou cerca de US$ 65 entre 1988 e 2011, enquanto a dos 1% mais ricos aumentou US$ 11.800, ou 182 vezes mais. Um retrato do país mais importante do capitalismo global: nos últimos 30 anos, a renda dos 50% mais pobres – 117 milhões de adultos – permaneceu inalterada, enquanto a do 1% mais rico aumentou 300% nos Estados Unidos.

O caso brasileiro

Se nas economias dos países desenvolvidos a crescente desigualdade salarial tem sido o maior impulsionador da concentração de renda no topo, o caso brasileiro é um pouco diferente. Um dos poucos dados positivos do relatório da Oxfam diz respeito ao Brasil. Por aqui, os salários dos 10% mais pobres aumentaram mais que os pagos aos 10% mais ricos no período entre 2001 e 2012, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) feita pelo IBGE. Isso aconteceu graças à adoção de uma política de aumento do salário mínimo acima da inflação implantada entre 2003 e 2016 pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Sob esse ponto de vista, a concentração de renda no país diminuiu. O Coeficiente de Gini, indicador que mede a desigualdade entre indivíduos, revelou melhora: em 1995 o índice brasileiro era de 0,601 e, em 2014, tinha caído para 0,518.

Acontece que esse não é o único jeito de medir a concentração de renda. “É possível estimar as desigualdades, basicamente, a partir de duas fontes de informação. A primeira são as chamadas pesquisas domiciliares. O IBGE sorteia domicílios, que visita ou telefona para aplicar um questionário. Os problemas: é difícil sortear uma família muito rica e, mesmo que seja sorteada, essa família tende a subestimar a renda, até porque o grosso desses rendimentos não vem de um salário, mas de dividendos, de aplicações financeiras. Por isso, os rendimentos do capital tendem a ser subdeclarados nas pesquisas domiciliares. A outra maneira de mensurar a desigualdade é olhar o Imposto de Renda declarado pelas pessoas físicas. A vantagem é que eu capto bem a renda dos 7 milhões de adultos no topo, que são os 5% mais ricos do país, e consigo ir além, olhando para o 1% e até para o meio milésimo –  0,0005%”, explica Rodrigo.

As informações do Imposto de Renda não eram divulgadas pela Receita Federal desde 1997. Com os números referentes a vários anos liberados pelo órgão em 2016 em mãos, os pesquisadores puderam finalmente medir a concentração de renda ao longo do período em que as pesquisas domiciliares captaram queda na desigualdade. E o resultado mostra que o país ocupa há muito tempo uma posição sem paralelo no resto do mundo. “De todos os países que têm dados disponíveis, nenhum apresenta tamanha concentração de renda quanto o Brasil”, sentencia Rodrigo, que junto com o colega Sérgio Gobetti, chegou aos seguintes resultados: o meio milésimo da população – 70 mil brasileiros – abocanha 8,5% da renda nacional. Na Colômbia, esse estrato fica com 5,4%, na África do Sul e no Uruguai com 3,3%, em escala decrescente até a Dinamarca, onde o número é de 1,3%.

Os dados tributários trouxeram outra surpresa: diferente do que se pensava, os anos 2000 não foram o momento da nossa história em que a desigualdade mais diminuiu. A descoberta é de Pedro Herculano, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que analisou a mais longa série histórica de declarações do IR, que vai de 1926 a 2013. O período em que fomos menos desiguais foi entre 1942 e 1963, quando o 1% mais rico chegou a abocanhar ‘apenas’ 17% da renda total. Isso foi uma exceção, já que ao longo desses anos o centésimo mais rico deteve entre 20% e 25% de todos os rendimentos brasileiros fatia que, desde 2006, está na casa dos 23%.

Em termos comparativos, hoje os Estados Unidos é considerado um país “muito” desigual porque 20% da renda nacional vai para o 1% mais rico. Para se ter uma ideia de como a desigualdade explodiu recentemente na terra do Tio Sam, o 1% ficava com 16,9% da riqueza nacional entre 1930 e 1935 (antes da instituição de alíquotas progressivas no Imposto de Renda), patamar que no ocaso dos ‘anos dourados’ (1970-1975) havia regredido para 9,2%. Nos países do norte da Europa, constantemente citadas como exemplos na educação pública, no transporte e em outros serviços prestados aos cidadãos, os patamares são bem mais baixos: Dinamarca (6,4%), Holanda (6,4%) e Suécia (7,1%) são bons exemplos.

A desigualdade persiste até os dias de hoje, a despeito de melhoras circunstanciais, porque sempre que o país tentou mudar de rota a elite reagiu. Contrariando explicações para nossa situação que remontam à colonização portuguesa, a análise dos dados tributários demonstra que a distância entre o Brasil e o resto do mundo – particularmente do mundo desenvolvido – pode ser creditada ao fato de que lá uma profunda reforma tributária foi feita. E aqui, justo no momento em que os mais ricos estavam pagando mais impostos, o país viveu uma ruptura institucional violenta: o golpe empresarial-militar de 1964.

Entre 1946 e 1947, o Brasil adotou alíquotas mais progressivas de Imposto de Renda, saltando de 20% para 50%. Quando João Goulart assumiu a Presidência, chegou a implantar a maior alíquota da história brasileira: 65%. “O golpe de 1964 assinalou um ponto de inflexão na trajetória da desigualdade. A fração do 1% mais rico interrompeu a tendência de queda e pulou de 17–19% para mais de 25% [da renda total] em apenas cinco anos. A alíquota máxima do IR voltou a ser 50%”, escreve Pedro Herculano. 
O caso brasileiro é notável porque mesmo quando o país resolveu pautar a redução das desigualdades sociais e regionais durante a redemocratização, prevendo na Constituição ‘Cidadã’ de 1988 um conjunto de políticas universais inspiradas no Estado de Bem-Estar Social dos países desenvolvidos, ficou faltando um alicerce básico: tributar mais os ricos e menos os pobres. Ao contrário, de lá para cá se multiplicaram as ‘jabuticabas’ do sistema tributário brasileiro, que induzem a concentração de riqueza no topo. A despeito de sistemática campanha que faz parecer que todos pagam muitos impostos, os mais ricos têm o grosso dos seus rendimentos isentos. Em outras palavras, comem o pato e depois saem à francesa, deixando o prejuízo para o garçom.

Hoje o Brasil, junto com a Estônia, é o único lugar do mundo que não tributa dividendos distribuídos aos acionistas. Esses valores chegaram, em 2013, a R$ 287 bilhões. Os cálculos feitos por Rodrigo e Sérgio mostram que o mecanismo faz com que os 70 mil brasileiros que ganham acima de R$ 1,3 milhão por ano paguem proporcionalmente uma alíquota de IR de 7% – quando, em tese, deveriam pagar 27,5%. Isso acontece porque a partir de uma renda anual de R$ 360 mil, as alíquotas começam a cair, pois a principal fonte de renda deixa de ser o salário e passa a ser os rendimentos isentos, principalmente lucros e dividendos, e aplicações financeiras, cujas alíquotas são mais baixas que a dos rendimentos do trabalho.

“Quando fez a reforma nos Estados Unidos nos anos 1980, Ronald Reagan tentou isentar os dividendos, mas houve grandes resistências. A reforma que ele queria passar era mais radical do que a que acabou sendo aprovada. No Brasil, conseguimos chegar muito perto do que o Reagan gostaria. E acabou passando batido”, conta Rodrigo. A comparação é com as reformas brasileiras, a primeira delas feita no governo José Sarney, que reduziu as alíquotas (de 50% para 25%) e a progressividade. Em 1995, o governo de Fernando Henrique Cardoso aprovou a isenção dos dividendos, colocando uma pá de cal no papel distributivo da política tributária.

Alerta geral

A crise econômica mundial de 2008 mudou a percepção das pessoas sobre a desigualdade. Não que o fosso entre os ricos e o restante da população não estivesse se aprofundando há décadas. Ele só não era notícia. Ficou mais difícil desviar os olhos do buraco depois que vários governos mobilizaram bilhões de recursos públicos para salvar os bancos da quebradeira e, mesmo assim, os dividendos pagos a acionistas e altos executivos dessas instituições seguiram sua trajetória rumo à estratosfera. Movimentos como o Occupy Wall Street, com seu recado de que os 99% não aceitavam mais sustentar o 1%, foram os precursores de uma nova abordagem da desigualdade, que desembocou em relatórios como o da Oxfam e não deixou incólume nem mesmo entidades historicamente defensoras das políticas neoliberais.

Em 2012, pela primeira vez o Fórum Econômico Mundial deu destaque à desigualdade no seu relatório anual que lista os maiores “riscos” globais. Caracterizando a desigualdade de renda como a “semente da distopia”, o texto alertava que em todo o mundo as pessoas constatavam que seu padrão de vida caía ano após ano, e isso vinha minando a confiança “na habilidade de os governos reverterem essa tendência”. Em 2015, foi a vez de o Banco Mundial renovar o vocabulário. A instituição que, desde 1968, construiu um discurso em torno da erradicação da pobreza, acrescentou em seu relatório a necessidade de a economia promover “prosperidade compartilhada”. Nenhuma entidade foi mais longe do que o Fundo Monetário Internacional (FMI), que em junho do ano passado, publicou um relatório que dizia que “em vez de gerar crescimento, algumas políticas neoliberais aumentaram a desigualdade”. 

Segundo Rodrigo Orair, os organismos multilaterais precisaram rever seus posicionamentos à medida que a crise de 2008 foi sucedida por novos períodos recessivos e foi ficando claro que os instrumentos convencionais da cartilha neoliberal se mostraram incapazes de tirar os países e o mundo dessa situação. “Significa a reabertura do debate. Questões que antes eram proibidas voltaram a ser discutidas. Mesmo no mainstream da economia, mesmo no mainstream político – o que é ótimo”, avalia, citando propostas que ganham espaço como a do economista Thomas Piketty, que propõe um imposto global sobre fortunas.

Contudo, o ‘x’ da questão parece ser menos a desigualdade em si do que as consequências mais radicais advindas da sua percepção. “A desigualdade crescente pode desintegrar nossas sociedades”, diz o relatório da Oxfam de 2017; “A crescente desigualdade econômica é ruim para todos nós – ela mina o crescimento e a coesão social”, dizia a ONG em 2016. 

“É uma indicação de medo que eu traduziria assim: ‘a coisa pode explodir, melhor perder meio anel do que perder os dedos’. O registro dessas entidades é voltar a ter políticas de expansão do capital com adesão da massa popular, um passo do tipo keynesiano. Isso significa gastar alguma coisa com o povo. Mas, aparentemente, os políticos que ascenderam nos últimos tempos, com o Brexit na Grã-Bretanha e Donald Trump nos Estados Unidos, se opõem a isso”, analisa Virgínia Fontes. E continua: “Eles estão com medo da extrema direita porque ela não é controlável por eles. A extrema direita não é contra o capital, mas é contra alguns capitalistas. A campanha de Trump ia contra George Soros [investidor húngaro que vive nos Estados Unidos e é alvo de uma campanha de ‘expulsão’ por financiar movimentos de centro-esquerda]”.

Faceta política

O plebiscito que decidiu pela saída do Reino Unido da União Européia, conhecido como Brexit, foi justificado em parte pela expectativa que trabalhadores ingleses tinham de que empregos voltassem a ser criados no país. Ou que os empregos que lá existiam não tivessem de ser disputados com imigrantes. Uma das principais promessas do bilionário Donald Trump durante a campanha eleitoral à presidência foi trazer de volta aos Estados Unidos os empregos, deportar massivamente imigrantes (mesmo aqueles em situação legal) e construir um muro ao longo de toda a fronteira com o México. Com sua renda comprimida e estagnada, a classe trabalhadora dos países desenvolvidos aposta cada vez mais fichas em lideranças populistas de direita que sugerem que, com vontade política, é possível reverter em pouco tempo o que o capitalismo demorou os últimos 40 anos para construir.

“Estamos em um momento de crise da globalização que começa em 2008 como uma crise financeira, evolui como crise econômica e, agora, passa a assumir mais claramente uma faceta política. As reações em escala nacional têm sido, como era de se esperar, marcadas por uma polarização. Num contexto de crise política, tanto as soluções à direita quanto as soluções à esquerda se sobressaem. E as soluções à direita tendem, num primeiro momento, a ser vitoriosas pois operam uma simplificação dos problemas: a culpa do desemprego é dos imigrantes. Uma vez que esse ‘inimigo’ seja derrotado, expulso, os empregos voltarão. Isso, evidentemente, não irá acontecer porque nenhum governo consegue de maneira voluntariosa reverter o ciclo da globalização”, analisa Ruy Braga. Para o sociólogo, Donald Trump é o exemplo típico: eleito com um discurso populista, dizia que iria enfrentar Wall Street em benefício da indústria e dos empregos dos americanos. “E, depois de assumir o cargo, desfez a regulação em torno do mercado financeiro aprovada depois da crise de 2008. Ou seja, ele faz um discurso para a população contra Wall Street e, na prática, adota medidas que favorecem Wall Street”.

Mas o que esperar da classe trabalhadora quando essas promessas não forem cumpridas? Ruy aposta que mais cedo do que tarde as pessoas vão perceber que as ditas ‘soluções’ não resolvem o problema e, ao contrário, aprofundam as contradições que o criaram. “Isso significa que temos no horizonte um aumento da instabilidade política nessas sociedades mais fustigadas pela crise econômica”, diz. Virgínia pensa algo semelhante: “Tudo indica que vamos em direção a maiores tensões políticas, não menores. Tanto entre Estados quanto entre classes. Pode vir desde formas explosivas de revolta como uma fascistização forte”.

Enquanto isso, pipocam na imprensa internacional notícias curiosas. Elas tratam dos preparativos dos super-ricos para se protegerem do que eles estão chamando de ‘colapso social’. Além de ilhas particulares, já há condomínios autossustentáveis que garantem, em tese, condições de vida para um pequeno número de famílias residentes. O destino mais procurado é a Nova Zelândia, mas há outros mais inventivos, como um depósito subterrâneo de mísseis desativado transformado em bunker de luxo. Com 20 apartamentos vendidos a US$ 3 milhões cada, o empreendimento localizado nos Estados Unidos tem no seu quadro de funcionários guardas armados – e até um franco-atirador – para que o ‘direito à propriedade’ seja garantido em meio ao cataclismo. Mas e se o próprio staff de segurança se voltar contra os contratantes e preferir levar as próprias famílias para esses abrigos? E o piloto de helicóptero? Esse é o tipo de conjectura que preocupa os super-ricos. “A ambição da concentração ilimitada de riquezas e o medo de perdê-las justamente para aqueles que as produzem, os trabalhadores, movem as classes dominantes. Essas notícias mostram que ambas as pontas – concentração e temor – estão hiperativas. Eles sabem o que estão fazendo, mas não podem fazer de outro modo. A não ser que sejam obrigados”, comenta Virgínia.

Enquanto isso, no Brasil...

Ao mesmo tempo em que os dados do relatório da Oxfam repercutiam na imprensa internacional, Davos sediava um debate sobre como lidar com uma classe média cada vez mais ‘achatada e raivosa’. Lá, o ministro da Fazenda,
Henrique Meirelles, e a presidente do FMI, Christine Lagarde, protagonizaram um duelo de posições, em que o brasileiro defendia a cartilha neoliberal, enquanto a francesa dava voz à recente guinada da entidade, dizendo que a prioridade da política econômica deve ser o combate à desigualdade social. A cena sugere que, em matéria de ortodoxia, o governo Michel Temer é mais realista que o rei. 

“No Brasil o debate é marcado por um anacronismo. Todo esse debate de tributação que foi recuperado no resto do mundo, é completamente bloqueado aqui”, observa Rodrigo Orair, que informa que depois da crise de 2008, 21 dos 34 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tomaram algum tipo de medida para ampliar a tributação. “O mundo está em crise e quase todos os países estão fazendo um esforço para consolidação fiscal que penalize menos os pobres e mais os ricos”, diz. O economista destaca que as ‘soluções’ do governo, como o ajuste fiscal e a Emenda Constitucional 95, que estabelece um teto para os gastos públicos nos próximos 20 anos, vão na contramão dessa tendência pois castigam a base da pirâmide ao cortar na política social justamente quando ela será mais necessária.

Esses efeitos já estão sendo medidos. Um estudo ainda inédito do Banco Mundial divulgado pelo jornal O Globo (13/02) prevê que entre 2,5 e 3,6 milhões de pessoas devem cruzar a linha da pobreza no Brasil em 2017. A maior parte delas é jovem, vive em centros urbanos e é escolarizada (38,2% têm ao menos o ensino médio completo). O principal fator de empobrecimento é o desemprego. Ao projetar dois cenários que levam em conta a crise econômica do país, a entidade estima que até 20,9 milhões de brasileiros podem ficar desempregados este ano. A entidade também estimou a quantidade de brasileiros em condição de pobreza extrema: os 3,4% de 2015 (dados da Pnad) devem saltar para entre 4,2% e 4,6% em 2017. O relatório leva em consideração os impactos do empobrecimento com e sem a ampliação do programa Bolsa Família.

Enquanto isso, a reforma tributária continua no final da fila, atrás da reforma da Previdência, da reforma trabalhista, da venda de terras para estrangeiros, da aprovação de uma regulação para a greve dos servidores que penalize quem integra essas mobilizações, e assim por diante. “No Brasil, há uma política deliberada de arrocho sobre as massas trabalhadoras, sobretudo as mais frágeis. Parece uma tentativa de disciplinamento através da violência econômica e da violência direta. As entidades de convencimento seguem muito ativas – a começar pela mídia – e, por enquanto, o que vem sendo acenado como compensação é a prisão de alguns dos muitos corruptos, uma compensação perversa do tipo ‘todos os trabalhadores perdem direitos mas alguns empresários e alguns políticos vão experimentar a cadeia’”, lamenta Virgínia Fontes. “O capitalismo é aberto a reformas. Uma reforma tributária talvez venha a ser feita mesmo porque a desigualdade está começando a ser contraproducente para o próprio capital. Em países como o Brasil, é difícil reforma. É um país cuja classe dirigente, seja política ou empresarial – e é muito difícil separar as duas coisas –, não é aberta a reformas, mas é adepta da repressão, da violência, do banho de sangue”, pontua Lúcia Bruno.

Comentários

Texto necessário, imprescindível. É reconfortante, no meio de noticiários rápidos e vazios, ler um texto bem escrito e calcado em pesquisa séria, acusando com empiria a tragédia da desigualdade social no planeta e, especialmente, no Brasil.