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Calamidade olímpica

Jogos Olímpicos começam em meio a uma das piores crises financeiras dos últimos anos no Rio de Janeiro. Movimentos sociais esperam fortalecimento das mobilizações, mas expressam preocupação com leis que ameaçam direito à manifestação aprovadas para as Olimpíadas
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 01/08/2016 09h11 - Atualizado em 01/07/2022 09h46
Na ocupação da escola Amaro Cavalcanti, secundaristas criticam gastos olímpicos em meio à precarização da educação Foto: Thiago Mendes/PACS

Quem lê o título desta matéria logo o associa com a decisão do governador em exercício do Rio de Janeiro Francisco Dornelles, que no dia 17 de junho decretou estado de calamidade pública, sob o argumento de que a “grave crise financeira” que o estado atravessa “impede o cumprimento das obrigações assumidas em decorrência da realização dos Jogos Olímpicos”. Mas a realidade é que na “cidade olímpica”, a calamidade é de outra ordem. E ela nem sempre está publicada em diário oficial.

Embora o decreto alegue que a crise “vem acarretando severas dificuldades na prestação dos serviços públicos essenciais”, o governo estadual já deixou claro que nenhum centavo dos R$ 2,9 bilhões liberados pela União como socorro financeiro será destinado para o pagamento dos servidores e pensionistas que estão com seus salários atrasados ou para aliviar a situação dos serviços públicos de saúde e educação no estado. A prioridade é outra: garantir a segurança das Olimpíadas. Dados levantados pela ONG Instituro Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), no boletim ‘Rio de Gastos’, apontam que de 2013 a 2016, o gasto estadual com a educação caiu de 12% para 10%, enquanto os com a saúde mantiveram-se no patamar de 8%. Já os gastos com segurança pública pularam de 10% para 15% no período. Não por acaso, entre os cartazes produzidos por estudantes secundaristas que ocuparam escolas estaduais para protestar contra as condições precárias da educação pública no estado se destacava um onde se lia: ‘Tira das Olimpíadas e investe na minha escola’. “O caos no Rio está óbvio, está gritante. As pessoas estão vendo hospital fechando e escola sendo ocupada e dão de cara com a propaganda da ‘cidade olímpica’ no ponto de ônibus. É uma violência contra a população”, critica Larissa Lacerda, militante do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio. E a situação que já está ruim pode ficar ainda pior. Em nome da segurança dos jogos, o decreto assinado por Dornelles autoriza até “adotar medidas excepcionais necessárias à racionalização de todos os serviços públicos essenciais”.

Exceção é a regra

Mas a aprovação de leis prevendo medidas de exceção para viabilizar as Olimpíadas não se dá somente na esfera estadual. No dia 10 de maio, pouco mais de um mês antes do decreto de calamidade pública no Rio e um dia antes da sessão no Senado que aprovou a abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff, a então presidente da República sancionou a lei 13.284, que estabelece as regras que serão aplicáveis durante a realização dos Jogos Olímpicos 2016. Conhecido como Lei Geral das Olimpíadas, o texto guarda muitas semelhanças com a lei aprovada em 2012 no contexto de preparação para a Copa do Mundo 2014. Assim como esta, a Lei Geral das Olimpíadas traz dispositivos que, segundo seus críticos, contradizem a legislação vigente e permitem a flexibilização de direitos básicos. O direito à liberdade de expressão e à manifestação é um exemplo: a lei proíbe, nos locais oficiais dos jogos, cartazes com “mensagens ofensivas” e o uso de bandeiras “para outros fins que não o da manifestação festiva e amigável”. “Essa previsão sinaliza que eventuais protestos e críticas às Olimpíadas não serão tolerados pelas entidades organizadoras, o que está em completa dissonância com o modelo democrático”, argumentam as advogadas da ONG Artigo 19 Camila Marques, Raissa Maia e Natália Damazio no artigo ‘Olimpíadas no Rio: mais um megaevento, mais um período de exceção’. Segundo elas, não cabe à Lei Geral das Olimpíadas definir previamente quais serão as expressões permitidas nos locais oficiais, uma vez que a Constituição Federal proíbe restrições prévias à liberdade de expressão, que representam uma afronta à livre manifestação do pensamento. Para Larissa Lacerda, o direito à manifestação já havia sofrido um enorme retrocesso em março, com a aprovação da Lei Antiterrorismo, que contou com o apoio do Comitê Olímpico Internacional (COI). “Essa lei foi sancionada com alguns vetos nos pontos mais críticos, que os próprios movimentos sociais tinham apontado. Mas agora parece que estão tentando derrubá-los. Se isso acontecer, vamos entrar num cenário ainda mais tenebroso para os movimentos sociais”, alerta. O Comitê Popular da Copa e Olimpíadas se prepara para promover do dia 1º ao dia 5 de agosto, quando terão início os jogos, um evento paralelo para tentar ampliar o debate sobre os efeitos negativos do evento. “É uma espécie de jornada de lutas, que vai se chamar ‘jogos da exclusão’”, explica Larissa. “A ideia é reunir grupos e movimentos que integram o comitê mas também ONGs de direitos humanos, movimento dos camelôs, comunidades removidas e outros militantes e promover debates, intervenções e plenárias para discutir não só o que foi essa preparação da cidade para os jogos mas também trazer propostas para se organizar para o que vem por aí, porque as violações não acabam com o fim das Olimpíadas”, ressalta.

Sandra Quintela, coordenadora do PACS, afirma que as restrições impostas pela Lei Geral das Olimpíadas e pela Lei Antiterrorismo preocupam, ainda mais num contexto favorável ao acirramento das mobilizações sociais durante as Olimpíadas. “Todos os holofotes vão estar voltados para o Rio de Janeiro e a visibilidade internacional durante as Olimpíadas vai ser fundamental. Se você pensar que muitas das obras das Olimpíadas ainda não foram concluídas, a Baía da Guanabara não foi despoluída, o endividamento do estado e do município só aumenta, temos greves na UERJ e ocupações de escolas e ainda por cima há o problema da Zika, que está sendo super-silenciado. O cenário é complexo e promete muita mobilização. Mas a repressão vai ser brutal”, avalia.

As advogadas da Artigo 19 acreditam que esse é um dos legados nefastos dos megaeventos no país: a perpetuação dos aparatos repressivos criados excepcionalmente para eles. A tipificação do crime de terrorismo, para elas, é um deles. “O país tem um grave histórico de manutenção dos dispositivos autoritários que cria durante períodos de exceção. E isso não será diferente com as Olimpíadas: a cada megaevento justifica-se a criação de um novo aparato repressivo e autoritário, que permanece depois de seu fim, aumentando o nosso já vasto descompromisso em garantir direitos humanos mínimos. Esse é um preço que não devemos estar dispostos a pagar”, afirma o artigo assinado por Camila, Raissa e Natália.

Restrição ao comércio informal

Repressão é um tema com o qual os trabalhadores ambulantes do Rio têm familiaridade.  Ainda mais durante os megaeventos, que invariavelmente trazem restrições ao comércio informal nos locais próximos a onde eles acontecem. Nas Olimpíadas não será diferente. A lei geral reserva às entidades organizadoras do evento a autorização para realizar o comércio de rua nas áreas oficiais dos jogos. Além disso, a lei também garante aos organizadores e patrocinadores do evento a exclusividade sobre a exploração comercial dos produtos e símbolos oficiais das Olimpíadas, prevendo pena de até um ano de cadeia em caso de infração. “Eles acham que só eles têm direito de ganhar dinheiro”, protesta a vendedora ambulante Maria de Lourdes do Carmo, coordenadora do Movimento Unido dos Camelôs (Muca). “É difícil viver nessa cidade. Eu posso sair de Japeri para a zona sul lavar calcinha de madame. Mas se eu quiser sair de Japeri para trabalhar como camelô na cidade eu não posso”, reclama. Ela afirma que os megaeventos vêm servindo como pretexto para a retirada dos trabalhadores ambulantes de seus locais de trabalho. “A gente sabe que esse modelo de cidade que a prefeitura quer é um modelo que não vai comportar camelô na rua. Depois das Olimpíadas vai ficar pior”, avalia. Sua própria situação serve como exemplo: “Eu tenho uma barraca em frente à Avenida Rio Branco [uma das principais do centro da cidade], virada para o VLT [Veículo Leve sobre Trilhos, uma das obras inauguradas para as Olimpíadas]. A prefeitura queria me tirar de lá porque ali seria um boulevard e eu não poderia ficar ali. Só que quando eles foram construir o boulevard eu já estava ali. Então não vou sair. É o espaço que eu tenho de trabalho”, ressalta.

“Isso é assepsia social”, critica a professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Nelma Gusmão.  Autora do livro ‘O poder dos jogos e os jogos do poder’, resultado de sua tese de doutorado defendida no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ), Nelma argumenta que a retirada das populações mais pobres dos espaços de valorização imobiliária faz parte de um projeto de cidade que vem sendo gestado desde o início da década de 1990. “A ideia do Rio de Janeiro como cidade olímpica veio entre 1993 e 1996, quando foi feito o primeiro plano estratégico da cidade, para o qual deram consultoria catalães que tinham acabado de organizar as Olimpíadas de Barcelona em 1992”, explica. Esse plano, diz ela, tinha como estratégia principal de desenvolvimento a atração dos megaeventos, em especial os Jogos Olímpicos. “Os megaeventos viabilizam aquilo que é a palavra-chave do planejamento neoliberal que é a flexibilidade da legislação. As leis de exceção vêm nesse sentido, para atender aos interesses do mercado, com a justificativa de que é preciso cumprir as exigências dos organizadores e de que os megaeventos trazem desenvolvimento, são bons para o turismo, etc. É uma cidade pensada como um produto a ser vendido”, diz Nelma. Na esteira desse processo, continua a professora, os megaeventos acabam servindo para legitimar os interesses econômicos locais. “No Brasil tem essa ingerência das construtoras, da especulação imobiliária, na definição da política pública. Isso não é novo. Se você for pensar, projetos como a Transamazônica ou a construção de Brasília foram projetos das empreiteiras, não do poder público. O que há de novo é que agora está tudo institucionalizado. O que antes era considerado ilegal, imoral, e feito por baixo do pano, hoje é feito legalmente na frente de todos, como uma coisa natural, até virtuosa”, ressalta Nelma.

No rastro das obras, vidas que ficaram pelo caminho

As principais vítimas desse processo de reordenamento urbano são as populações pobres que residiam nas áreas destinadas para as obras ligadas aos megaeventos. Segundo estimativa do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, cerca de 22 mil famílias tiveram que ser removidas por conta das obras da Copa e dos Jogos Olímpicos no Rio. Por trás dos números estão as histórias como a de Isabel dos Santos Ribeiro. Removida da comunidade de São Sebastião, na zona oeste da cidade, para as obras da Transolímpica, via expressa que ligará os parques olímpicos de Deodoro e da Barra da Tijuca, ela foi realocada para um condomínio do Minha Casa Minha Vida na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. No entanto, há cerca de seis meses, ela e vários outros moradores do local começaram a receber cartas de cobrança do Banco do Brasil, que financiou a construção do condomínio, alertando sobre uma dívida de R$ 75 mil. “É uma dívida da prefeitura, mas ela não paga porque falam que estão sem dinheiro”, conta Isabel. Segundo ela, esse é só o mais recente de uma série de problemas advindos do processo de remoção. Ela conta que enquanto aguardava as obras do condomínio terminarem teve que receber aluguel social. “Só que meu aluguel era R$ 600 e eles só me davam R$ 400. O resto eu tinha que repor, meu filho me ajudava”, conta. Segundo ela, a promessa da prefeitura é que teria que viver do aluguel social por no máximo 30 dias. “Acabei ficando seis meses. E a prefeitura só pagou três meses”, reclama. Por conta das idas e vindas para resolver sua situação na prefeitura, acabou perdendo um emprego de oito anos. “Era em uma casa de família, e o patrão não queria que eu ficasse todo dia indo para a prefeitura resolver minha situação e a criança ficar em casa sozinha. Me mandaram embora. Hoje tenho 56 anos, estou desempregada e a Light [companhia de energia elétrica] colocou meu nome no SPC por causa de uma conta de R$ 37 que não consigo pagar. É muita humilhação”, desabafa.

A reportagem da Poli entrou em contato com o Banco do Brasil sobre as denúncias de cobranças de moradores da Colônia Juliano Moreira. O banco respondeu apenas que “cumpriu todas as suas obrigações até o momento e aguarda do ente público a regularização da situação”. A prefeitura, sob o comando de Eduardo Paes, não respondeu à solicitação de informação da reportagem até o fechamento desta edição.

As obras para os jogos afetam as populações das comunidades por onde passam de outras formas também. É o que aponta Daniel Ferreira Campos, morador da Vila União, em Curicica, outra comunidade da zona oeste carioca no caminho da Transolímpica. “Se você vier na comunidade parece uma área de guerra. Dá a impressão de que foi bombardeado: as casas quebradas, com um viaduto imenso passando rente. Uma barulheira tremenda. Durante a noite a gente fica escutando barulho de ferro batendo, máquinas trabalhando, luzes fortes”, relata. Sua família possui quatro casas na comunidade que, de acordo com o traçado original da Transolímpica, apresentado aos moradores em 2013, teriam que ser removidas por conta das obras. “Me fizeram uma proposta de R$ 34 mil na minha casa. A minha casa, do meu filho, da minha filha e do meu genro daria R$ 140 mil no total. Nem na própria favela consigo comprar alguma coisa por esse valor”, reclama. A oferta alternativa, de remoção para apartamentos do Minha Casa Minha Vida na Colônia Juliano Moreira, também não resolve o problema. “O apartamento tem 37 metros quadrados, feito no concreto, a cerâmica toda soltando. Você não pode lavar o apartamento, tem que passar um pano úmido, porque dá infiltração. Não pode furar um buraco na parede para pendurar nada, a parede é muito fina. É um apartamento feito para pobre”, critica, e ressalta: “Minha casa tem 60 metros quadrados. Não é de luxo, mas é confortável”. Insatisfeitos, os moradores procuraram a Defensoria Pública e, depois de várias diligências junto à prefeitura, receberam, em dezembro de 2014, a notícia de que o traçado da Transolímpica seria alterado, o que reduziu de 882 para 191 o número de famílias que teriam que ser removidas.

Daniel foi um dos que pôde ficar. Mas esse não foi o fim de seus problemas. Em meio a tudo isso, teve problemas graves de saúde, que ele associa diretamente ao estresse causado pelo processo desencadeado pelas obras. “Eu vi uma amiga sendo removida e aquilo me deu uma grande comoção. Eles chegavam com caminhões, com policiais de cassetete, parecia que estavam lidando com bandidos. Entravam nas casas e começavam a colocar os móveis de qualquer jeito no caminhão. Atrás já vinham os operários quebrando. Quando chegou de noite eu tive um infarto”, relembra. Ele conta que tinha uma confecção que empregava 20 trabalhadores na comunidade, que produzia sob contrato para uma empresa do setor. “Só que quando começaram as obras a empresa ficou com medo de ter prejuízo e nos abandonou. Hoje estou falido, não tenho renda nenhuma. Se conseguisse um dinheiro ia embora dessa cidade”, desabafa.

Foi isso o que aconteceu com Inalva Brito. Por 35 anos, Inalva foi moradora da Vila Autódromo, comunidade que se tornou símbolo da luta pela moradia na cidade por conta da resistência de seus moradores às sucessivas tentativas de remoção capitaneadas pela prefeitura desde a década de 1990, invariavelmente na esteira de algum megaevento na cidade. “Começou com a Eco 92. Na época a justificativa para tirar a gente dali era porque era uma área de proteção ambiental, quando na verdade ali era uma colônia de pescadores desde 1908”, critica Inalva.  Com o Pan-Americano de 2007, o processo se intensificou. “A apropriação dos espaços públicos pelo poder econômico, político, é tradicional em todas as cidades de grandes eventos. Com o fim dos Jogos Pan-Americanos nós vimos claramente que ele foi o ovo da serpente que mais tarde eclodiu na Copa e depois nas Olimpíadas”, afirma. Esse ano a remoção finalmente aconteceu. Das 550 famílias que residiam no local, sobraram apenas 30. “O processo de remoção da Vila Autódromo foi muito perverso. A prefeitura usou com sucesso uma técnica secular: dividir para governar. Ela pegou as pessoas que moravam de forma mais precária, sem documentação, e mandou para apartamentos do Minha Casa Minha Vida. Outra parte, as pessoas que tinham casas melhores, ela indenizou e a outra parte, que ela não pôde retirar, transformou em área de especial interesse social, que são essas 30 famílias que ficaram”, aponta. Hoje Inalva mora fora do Rio, em Miguel Pereira. “O Rio é uma cidade que não inclui trabalhadores pobres. Nunca perguntaram se a gente queria megaeventos, não discutiram com a gente, não perguntaram quais as nossas prioridades. Só enfiaram as Olimpíadas goela abaixo”.