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Câmara de vereadores

O que faz o parlamento municipal? O que compete a essa instância legislativa? Saiba mais detalhes sobre a câmara dos vereadores e sua atuação na vida dos brasileiros e brasileiras
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 06/01/2021 10h38 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Foi criado um Fundo Emergencial de Combate à Covid-19. Tornou-se obrigatória a oferta de álcool gel no transporte público. Um auxílio emergencial foi destinado à população mais pobre. Artistas e entidades culturais atingidas pela crise econômica e sanitária ganharam direito a uma renda básica. Nenhuma dessas medidas é novidade, mas também não são simplesmente a repetição daquelas notícias que você ouviu no telejornal da noite ao longo da pandemia. Cada uma delas diz respeito aos habitantes de uma ou outra cidade, algumas maiores, outras menores, nas mais diversas regiões do país. Todas foram propostas e votadas não pelo Congresso Nacional, mas por parlamentares que atuam na instância legislativa que expressa os interesses do nível local: as 5.570 Câmaras Municipais espalhadas Brasil a fora.

Foi nesses espaços que 57,6 mil vereadores eleitos tomaram posse em 2021 como representantes da sociedade, com a função principal de criar leis e fiscalizar o poder Executivo – no caso, a atuação dos prefeitos. O artigo 29 da Constituição Federal estabelece que a quantidade máxima de vereadores de cada município deve ser calculada a partir da população local – nos dois extremos da tabela, os menores, com menos de 15 mil habitantes, podem ter até nove parlamentares, enquanto os maiores, com mais de oito milhões de moradores, podem chegar a 55. “O Poder Executivo é, antes de tudo, representante das maiorias. Claro que essa é uma representação muito importante, as democracias não existem sem que as maiorias governem. Contudo, isso precisa ser equilibrado, controlado por um poder Legislativo que tem significado político representativo um pouco diferente. Porque ali é a Casa onde se encontram, ou pelo menos devem-se encontrar, representantes tanto das maiorias sociais como das minorias”, explica o cientista político e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Francisco Tavares, exemplificando com o caso das populações indígenas e grupos LGBT. “É uma Casa destinada à pluralidade”, completa.

No Brasil, havia expectativa de que essa diversidade se ampliasse após as mudanças que estabeleceram uma divisão do fundo partidário que levasse em conta critérios de equidade de raça e gênero. De acordo com o professor da UFG, os estudos sobre os impactos dessa medida na presença de negros e negras nas câmaras de vereadores ainda não estão concluídos porque existem questionamentos sobre os “parâmetros de autoidentificação” dos candidatos. Já em relação à presença de mulheres no parlamento municipal, segundo ele, “os primeiros dados indicam que houve avanços, mas ainda tímidos”. “O Brasil é o 140° país num ranking elaborado pela ONU [Organização das Nações Unidas] com 190 países em termos de menor representação feminina nos legislativos. É uma coisa assombrosa. Se a política no planeta Terra já é irremediavelmente patriarcal, no Brasil ela consegue ser ainda um pouco pior”, descreve.

Mas o que faz o parlamento municipal?

O que o professor considera a mais importante tarefa do poder Legislativo como um todo é a decisão sobre a proposta orçamentária apresentada pelo prefeito, governador ou presidente da república. Anualmente, a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) pelo Congresso Nacional é notícia que chega ao conhecimento da sociedade mais ampla e mobiliza setores diversos na luta por uma fatia do recurso público. Pouca gente se atenta, no entanto, para o fato de que o mesmo processo acontece ali do lado, na sua cidade, onde os vereadores têm a responsabilidade de aprovar – ou não – as prioridades orçamentárias apresentadas pelo chefe do Executivo local. “Toda política pública ou implementação de direitos fundamentais por parte do Poder Executivo tem um custo”, lembra Tavares. “E quem autoriza esse orçamento anualmente, quem discute, quem leva às audiências públicas, quem pode tornar isso perceptível a pressões da própria sociedade civil, é o parlamento”, aponta.

Se isso vale para todas as casas legislativas, há especificidades da Câmara de Vereadores que, na avaliação do professor da UFG, não deixam nada a dever aos parlamentos estaduais e nacionais. “Muitas vezes a gente acaba tendo uma compreensão um pouco paroquial, achando que [o vereador] é só um despachante que vai mandar tapar o buraco da rua, ou uma figura influente que vai negociar com o prefeito uma vaga na escola para alguém. Tem uma cultura patrimonialista que vem da ditadura militar que ainda associa vereadores e vereadoras a essa ação de despachante de luxo”, lamenta Tavares, garantindo que essa não é a proposta do desenho federativo brasileiro.

Um exemplo claro, segundo ele, é a responsabilidade que esses parlamentares têm em relação aos impostos de atribuição municipal. “O IPTU é um tributo central na vida econômica e política de um país”, ilustra. “Porque ele tem relação com a distribuição do espaço urbano no que diz respeito à moradia e ao cumprimento da função social da propriedade. E se existe um consenso entre economistas que trabalham com a pobreza e desigualdade, é o de que o meio mais agudo de manifestação dos problemas da pobreza e da concentração de renda é especificamente a moradia, sempre a maior despesa das famílias”, justifica. E o impacto do caminho a ser adotado é muito concreto, diz o professor: ao se optar por uma tributação menor em regiões menos povoadas, mais distantes do centro, por exemplo, incentiva-se que grandes construtoras invistam para construir moradias populares nesses locais. “E que os trabalhadores tenham que se deslocar duas horas para chegar ao serviço”, analisa. Outra alternativa, diz, é cobrar mais impostos de imóveis abandonados nas regiões centrais, “para garantir que eles sejam liberados para aluguéis que se tornam mais baratos”. “Com isso, o trabalhador pode morar perto do serviço e a cidade fica mais aprazível, com trânsito melhor”, ilustra, destacando que a mobilidade urbana é outro tema importante de responsabilidade do parlamento municipal. “Isso é fundamental do ponto de vista econômico e do ponto de vista geopolítico. E passa pelo IPTU”.

Local e nacional

De acordo com o cientista político Samuel Braun, que integra o Laboratório de Estudos Políticos e Pesquisas da Metrópole da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), diversos estudos apontam que o comportamento do eleitor nos pleitos municipais é guiado mais por preocupações cotidianas e questões próximas – como o buraco da rua e a sua unidade de saúde de referência – do que por motivações ideológicas. “Ele não tem vínculo permanente com partido, não se coloca enquanto classe social propriamente ou vinculado a essa ou aquela categoria. Ele se comporta de uma forma estritamente pragmática”, diz. Francisco Tavares, no entanto, pondera que, na vida concreta da população, a relação entre interesses locais – que a Constituição Federal prevê como de competência dos municípios – e nacionais nem sempre está dada de forma tão clara. “Grandes questões como, por exemplo, a política monetária, afetam diretamente a vida da pessoa que sai de casa e vai ao banco pedir um crédito”, exemplifica. A legislação penal – que, de modo geral, é definida no legislativo nacional – pode impactar localmente uma região onde moram mães de presidiários “talvez muito mais do que um buraco na rua”, diz o professor da UFG, lembrando que, nas periferias, a Polícia Militar, que é de competência estadual, “às vezes é dramaticamente muito mais presente do ponto de vista material do que qualquer política municipal”.

Essa articulação entre o local e o nacional talvez se apresente de modo ainda mais forte para os parlamentares que chegam às Câmaras de Vereadores em 2021, em meio a uma pandemia que coloca desafios para todos os poderes e entes federados. Isso porque, na avaliação de Samuel Braun, a maior pressão sobre os novos vereadores eleitos será por respostas – e recursos – que dêem conta dos problemas de saúde e do desemprego. Na avaliação do cientista político, os novos vereadores se verão diante de um duplo desafio: o aumento de gastos, principalmente em função dos cuidados sanitários em meio à Covid-19, e a queda da arrecadação, movida pelo alto desemprego, que atinge diretamente os cofres municipais. “O maior desafio nesse primeiro ano da legislatura, e talvez até no segundo ano, será equacionar as contas municipais. [Os vereadores] devem cobrar, e vão ser levados a isso naturalmente, pela cobrança que virá de baixo. E eles passarão para a frente, até chegar ao governo federal”, aposta. Na prática, na conjuntura atual, isso colocará os novos parlamentares municipais na tarefa de pressionar para que se repita, em 2021, algo semelhante ao auxílio financeiro que o governo federal repassou para estados e municípios como forma de enfrentamento à pandemia.

Mas Braun alerta que a pandemia reserva também tarefas específicas para os novos ocupantes das Câmaras de Vereadores, além da pressão por mais recursos. Ele explica que, em condições normais, definições como “o que pode ou não funcionar em dada região, como e por quanto tempo as escolas vão abrir” são responsabilidade do legislativo na sua “atividade ordinária”. Em situações de emergência como as trazidas pela pandemia, no entanto, em que decisões precisavam ser tomadas de forma muito rápida, quem acaba “puxando o bonde” é o Executivo, ainda que as câmaras e assembleias devessem fiscalizar e referendar ou não esses atos. Foi isso que se viu ao longo de 2020. Mas, passado quase um ano da chegada do novo coronavírus ao Brasil, o cientista político argumenta que são os parlamentos, e particularmente as câmaras municipais no nível local, que devem assumir os próximos passos. “As decisões em relação ao ano escolar de 2021, à disposição de recursos para a saúde e transporte levando em consideração a pandemia são agora função precípua do Legislativo. O Executivo atendeu a demanda emergencial, bem ou mal, isso será julgado. A partir de agora, é a Câmara de Vereadores que tem que criar um novo normativo para orientar o Executivo sobre o que fazer diante dessa pandemia”, defende.

Maior controle social?

O estrago causado pela Covid-19 agrava muito a situação, mas a verdade é que a dificuldade e a dependência orçamentária dos municípios impactam – e limitam – o funcionamento do Legislativo municipal como o desenho federativo brasileiro prevê. E o efeito mais sensível talvez se dê na expectativa de maior controle da sociedade sobre aqueles que ela elegeu. Afinal, foi com o argumento de que a descentralização do poder ampliaria a democracia participativa, aumentando as possibilidades de pessoas e grupos fiscalizarem e atuarem junto aos vereadores, que se apostou no fortalecimento, na diversidade de atribuições e na multiplicação dos municípios no Brasil pós-Constituição de 1988. “Mais municípios com menos pessoas significaria maior democratização e maior controle por parte do cidadão sobre as instâncias públicas”, resume Tavares, dizendo que, passadas algumas décadas dessa experiência, lamentavelmente essa suposição não se comprovou empiricamente. Mais do que isso, tem se fortalecido, segundo ele, um “contra-argumento”: o de que esse processo produziu ainda mais oligarquização. E um dos motivos desse fracasso, de acordo com o professor da UFG, tem diretamente a ver com orçamento. “Os municípios no Brasil têm muitas atribuições, mas não têm receita própria”, explica. Por consequência, diz, eles se tornam muito dependentes de parceria e convênios com estados e, principalmente, com a União – e os esforços de negociação com esses gestores se tornam mais importantes do que o debate com a população que paga o tributo. “Há uma atrofia democrática”, analisa.

Samuel Braun confirma que no Brasil não existe nenhum indício de maior participação da sociedade civil nas câmaras municipais do que em outras casas legislativas. Ao contrário. E ele aponta também como uma das explicações a maior dificuldade de se constituírem grupos organizados de pressão no âmbito local. “Sejam categorias econômicas, sejam grupos de pressão ideológica, eles estão muito mais presentes no Senado e na Câmara Federal do que nas assembleias legislativas e são quase inexistentes nas câmaras municipais”, aponta Braun. Tavares resume: “A descentralização política não é necessariamente democratizadora”.