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Camponeses se formam em curso de políticas públicas de saúde para a população do campo

Com metodologia inovadora, construída em parceria com movimentos sociais, curso de especialização forma trabalhadores rurais
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 29/04/2011 08h00 - Atualizado em 11/12/2023 11h53


Não é por acaso que o título desta reportagem diz que camponeses se formam em políticas públicas de saúde. O uso do verbo formar, acrescido da partícula reflexiva "se", quer dizer que eles foram construtores de sua própria formação. Essa explicação, que pode parecer uma simples questão gramatical, diz muito sobre o Curso de Especialização Técnica em Políticas Públicas de Saúde para a População do Campo, concluído ontem, dia 28 de abril, na EPSJV. "O final desse curso é uma vitória da classe trabalhadora. Não vejo só como uma vitória que eu conquistei. Tem um objetivo maior por trás da minha presença aqui, esse é o diferencial para a maioria dos estudantes", declara Maria Lucimar Soares, integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Maria Lucimar vive num assentamento no estado do Piauí, e estava, ontem, entre os educandos da turma que se autodenominou Filhos e Filhas da Terra: semeando saúde.

No pátio da Escola Politécnica, uma mística iniciou a formatura. Simbolicamente, uma semente foi plantada em um pote de barro pelos educandos. Junto, permaneceu acesa, durante todo o tempo, uma chama simbolizando a luta pelos direitos básicos das pessoas, como o direito à terra, à educação e à saúde.  Já no auditório, a cerimônia continuou permeada por poesia e música. "Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu", diz o trecho do poema Estatutos do Homem, de Thiago de Melo, lido em diversos momentos, durante o evento.

Entre os formandos do curso, também estava Zilda Gomes, de 46 anos, moradora de um assentamento no Pontal do Paranapanema. Antes mesmo de começar a formatura, a educanda já estava visivelmente emocionada. "Dá para perceber a minha idade, eu tive uma infância muito difícil, não tive oportunidade de estudar quando era mais nova e agora essa formatura para mim é muito importante. Hoje eu até liguei para a minha mãe e disse: ‘mãe, hoje é a minha formatura'. E ela me falou: ‘que bom, minha filha, Deus te abençoe'", conta a trabalhadora rural, que só conseguiu concluir o ensino médio quando já tinha quase 40 anos.

 "Uma ferramenta para ajudar na luta"

Compuseram a mesa da formatura, o professor-pesquisador da EPSJV André Dantas, representando a coordenação pedagógica do curso - composta ainda, permanentemente, por outros dois profissionais da EPSJV, André Burigo e Valéria Carvalho, e também por integrantes do MST que se revezaram ao longo do curso  -, a representante do Movimento de Mulheres Camponesas Tatiana de Lima, Gislei Siqueira, do setorial de saúde da coordenação nacional do MST, a diretora da EPSJV, Isabel Brasil, e Jacinta de Fátima Senna, da Coordenação Geral de Apoio à Gestão Participativa da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde. "Entendemos que teríamos que parir outro curso de políticas públicas de saúde, que não era para profissionais do SUS e nem para a população urbana, como a Escola já fazia e continua fazendo. Portanto, havia alguns desafios colocados. Um deles era pensar o SUS com uma face rural. Outro era pensar em uma saúde "do" campo e não "para" o campo. E esses são desafios que não se esgotam com esse curso", afirmou André. Isabel Brasil agradeceu aos educandos e aos movimentos sociais dos quais eles fazem parte. "Obrigada por não nos deixarem encastelados. E obrigada por nos formarem também. Essa é a função do intelectual: caminhar junto e correr perigo, caminhar junto e lutar", disse.

Jacinta Senna também parabenizou os formandos e ressaltou a importância de a Escola Politécnica e os movimentos sociais acreditarem e pressionarem o poder público por espaços como o desse curso. "Eu considero que a realização desse curso é um inédito possível", declarou. Para Gislei, o curso é uma ferramenta para ajudar na luta de todas as pessoas e movimentos sociais que apostam em um projeto de sociedade no qual a terra seja dividida, e haja homens e mulheres livres. "A conclusão desse curso para nós não é o término de uma caminhada, é o início de outra, talvez mais árdua. Porque quando caminhamos desconhecendo, vamos para qualquer lugar, mas quando se caminha conhecendo um pouco mais, a trilha torna-se mais difícil e a caminhada mais responsável", ressaltou. "Poder ocupar esse espaço que tradicionalmente fica distante do campo é muito importante, principalmente para nós, mulheres, que historicamente fomos excluídas dos processos de escolarização", reforçou Tatiana de Lima.


Estudos

O trabalho final de conclusão do curso foi desenvolvido em grupos, a partir de quatro grandes temas: práticas populares, integrativas e complementares de saúde; saúde ambiental; atenção básica e participação social, que foram os eixos norteadores da terceira etapa do curso. Os temas foram escolhidos porque são exatamente os eixos em torno dos quais se estruturou o texto da Política Nacional de Saúde Integral para as Populações do Campo e da Floresta, concluído em 2008. Além disso, os educandos desenvolveram individualmente outros trabalhos durante o chamado tempo-comunidade - período em que eles voltam para seus assentamentos ou acampamentos - ao longo de todo o curso. "As práticas integrativas são, por exemplo, a rezadeira, o benzimento, os medicamentos fitoterápicos, as massagens, a acupuntura. Queremos que a medicina e essas outras práticas andem paralelamente", explica Zilda, que fez parte do grupo de pesquisa sobre práticas populares, práticas integrativas e complementares de saúde.

Maria Lucimar, moradora do assentamento Lisboa, no Piauí, fez parte do grupo que desenvolveu trabalhos sobre saúde ambiental. Para a educanda, a metodologia utilizada durante o curso, com um tempo-escola e um tempo-comunidade, quando os alunos voltavam para suas localidades para pesquisar e aplicar os conhecimentos do curso, foi muito importante para desenvolver o trabalho. "No tempo comunidade, de acordo com as pesquisas de campo, desenvolvíamos algumas atividades de pesquisa que nos levavam a compreender melhor a realidade do assentamento: como está organizado o setor de saúde e que práticas desenvolvemos no nosso dia-a-dia. O uso de agrotóxicos, por exemplo. Fizemos um relato de caso, e esse trabalho terá um retorno muito importante para nós, no sentido de dialogar com a comunidade para percebermos o mal que os agrotóxicos causam. E, assim, ajudarmos a desenvolver um outro modelo tecnológico que pense na saúde do ambiente como um todo, de forma integral, do ponto de vista do saneamento básico e ecológico, habitação saudável, pensando nas formas como as comunidades estão organizadas e os desejos das famílias", comenta.

Lucimeire Pereira, do assentamento 25 de maio, no Ceará, e Vilson Tavaris, do assentamento Zumbi dos Palmares, no Paraná, fizeram parte do grupo que estudou a atenção básica. "O aprendizado foi de grande importância para o que vamos levar para as populações, para eles entenderem melhor o que é atenção básica e reivindicarem os seus direitos em relação às políticas públicas", diz Lucimeire. "Nosso objetivo era entender melhor como funciona a política de atenção básica e fazer uma análise de como ela está estruturada hoje no campo, porque a realidade urbana é uma e a realidade do campo é outra. Então, isso nos permitiu perceber que a atenção básica no campo hoje é muito carente, as áreas rurais e os assentamentos têm muitas dificuldades no acesso a essas políticas. Diante disso, vamos tentar intervir junto aos gestores para que as políticas sejam de mais fácil acesso à população", explica Vilson.

Adaizi Silva, também do estado do Paraná, conta como o grupo do qual fez parte, sobre participação popular, desenvolveu o trabalho. "Nos queríamos entender um pouco melhor o significado da participação social, tendo em vista que, dentro do setor saúde do MST, esse tema é muito complexo e está em constante debate. Visamos discutir a participação dentro dos conselhos e conferências de saúde mas também a participação que se dá dentro das próprias comunidades, nas mobilizações e marchas. E vimos que isso varia de acordo com a organicidade dos movimentos de cada estado", sintetiza.

Resposta dos educandos

 O professor-pesquisador da EPSJV Carlos Maurício Barreto, que deu aula no curso, conta que a resposta dos educandos ao tema que desenvolveu - as redes de saúde e os desafios do trabalho no campo - foi muito positiva. "Muito poucos grupos de educandos trariam uma resposta de forma tão produtiva no sentido de se apropriarem rapidamente dessa organização da saúde, que é muito mais próxima de nós do que deles, e de perceberem a necessidade de ultrapassar essa perspectiva para a criação de uma outra sociabilidade na saúde. Eles têm uma consciência muito clara de que embora não tendo resposta necessariamente concreta nesse momento sobre qual deve ser a política de saúde para a população do campo, essa é uma busca que deve ser empreendida como necessidade de sua própria existência. E essa política deve ser colocada em novos termos e não nos termos perversos e desiguais em que ela está posta hoje", aponta. O professor Helifrancis Condé, que deu aula junto com Carlos Maurício, acrescenta que o trabalho não termina com a conclusão do curso. "Pensamos esse trabalho como um ponto de partida, que já está bem sedimentado e com alguns apontamentos: tem uma crítica consistente à política nacional de atenção básica e reconhece que a política nacional de saúde integral da população do campo e da floresta já representa um avanço para essas comunidades, para a população do campo", detalha.

Helifrancis acrescenta que, no entanto, os educandos, junto aos educadores, chegaram à conclusão de que ainda há muito o que caminhar no sentido de garantir o direito à saúde das populações camponesas. "Um exemplo é a extensão territorial do campo que é muito diferente da cidade. Se um agente comunitário de saúde num aglomerado urbano faz dez visitas domiciliares num turno, se ele tiver que fazer o mesmo no campo, ele terá que percorrer 50 quilômetros. Então, a realidade é completamente diferente da cidade, pelo modo de viver, pela extensão territorial e porque as próprias realidades rurais são distintas. O curso cumpre o ousado desafio de disparar essa discussão", destaca.

Integração

 O curso foi desenvolvido pela EPSJV a partir de uma demanda dos movimentos sociais do campo. A parceria com a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde garantiu os recursos necessários para a concretização da proposta. Iniciado em 22 de junho de 2010, o curso contou com educandos vindos de vários estados do país e vinculados a diversos dos movimentos sociais  - MST, MMC, Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento Popular de Saúde (Mops). Vários professores e outros profissionais da Escola Politécnica contribuíram com as aulas, orientando as pesquisas dos educandos e garantindo a logística do curso.

Durante os meses de estudo, o convívio entre educandos e educadores foi intenso. A programação de atividades do tempo-escola geralmente começava às 6h e ia até as 22 h, no Centro de Referência Professor Hélio Fraga, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz). "Há o tempo inteiro uma preocupação de cada um com todos que estão juntos, num processo muito intenso e permanente de construção de uma solidariedade que a nós até pode parecer inusitada. É de fato uma vivência muito forte esse processo de apropriação coletiva do afeto, digamos assim", relata Carlos Maurício.

André explica que foi uma experiência piloto e que representou enormes desafios para educandos e educadores. "As aulas, umas mais e outras menos, foram motivos de preocupação entre os educandos, uns tinham medo de não compreender tanto conteúdo novo. Na primeira etapa, em que conceitos importantes para a compreensão das relações entre Estado e sociedade, por exemplo, foram trabalhados, essa preocupação foi intensa. Na segunda e na terceira etapa, essa dificuldade manifestada por eles foi diminuindo. Mas todos, independentemente das dificuldades, se empenharam imensamente e saem daqui com enormes ganhos,", avalia.

O programa do curso incluiu 280 horas-aula, estruturadas em quatro unidades - Sociedade, Estado e Direitos Sociais; A Questão Agrária no Brasil; Políticas de Saúde - o SUS; e Metodologia do Trabalho Científico. A especialização é parte integrante do projeto ‘Formação de conselheiros de saúde para o campo', financiado pela Secretaria de Gestão Participativa do Ministério da Saúde. De acordo com André, a expectativa é a de que os educandos utilizem os conhecimentos e experiências adquiridos de forma a politizar o debate sobre as políticas públicas nas regiões onde moram e atuam. "Espera-se, sobretudo, a compreensão profunda sobre o complexo funcionamento do Estado, da Política e dos conflitos de classe expressos em todos os âmbitos da vida social e também nas políticas públicas", afirma.

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