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Capital estrangeiro na saúde

Nova lei, já sancionada pela presidente, prevê abertura ao capital estrangeiro nos serviços de saúde. Iniciativa é vedada na Constituição, mas vai ao encontro de estratégias do mercado para o setor. Diversos movimentos ligados à  saúde protestam.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 29/01/2015 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O mercado já anunciava que 2015 traria grandes surpresas para o setor da saúde. Uma pesquisa realizada a pedido da consultoria Accenture pela Economist Intelligence Unit, agência de pesquisas e consultoria para negócios associada ao jornal inglês The Economist, publicada em janeiro, apontou que os executivos de companhias da área de saúde estavam entre os mais otimistas para o ano. Segundo a pesquisa, o grau de confiança no setor é de 52%, à frente de áreas como telecomunicação, com 44%, e serviços financeiros, com 42%. A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) anunciou o crescimento do setor de 18% comparado ao ano anterior. Para completar a onda lucrativa da saúde e aquecer ainda mais o segmento, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei 13.079 no dia 20 de janeiro, alterando a 8.080/1990, lei orgânica da saúde, e permitindo a participação direta e indireta de capitais estrangeiros na assistência à saúde, inclusive no controle de empresas.

Com esta iniciativa, o mercado de saúde entrou em alvoroço. A chamada de capa da edição de 21 de janeiro do Valor Econômico, principal jornal do empresariado, foi direta: “Foi aplaudida a permissão para que o capital estrangeiro entre, de forma irrestrita, em hospitais no país”. O presidente da Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp), Francisco Balestrin, por sua vez, informou que esta nova lei “corrige assimetrias” e que “o capital vai voltar olhar para o setor da saúde”.  A questão é: agora que o mercado está de olho, como vai ficar o sistema público de saúde?

Como mudou? O que mudou?

Não é de agora a proposta de mudança da lei para permitir o capital estrangeiro nos serviços de saúde. E há muitos interesses em jogo, como apontam os especialistas e pesquisadores entrevistados nesta matéria. Desde 2009, um Projeto de Lei do Senado, o PLS 259/2009, de autoria do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), tramitou com o intuito de alterar a Lei nº 8.080, que complementa o artigo 199, parágrafo 3º, da Constituição e diz :“É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei”. A lei, em seu artigo 23, define claramente esses casos excepcionais, que eram as doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos, além dos serviços de saúde sem finalidade lucrativa oferecidos por empresas para atendimento dos empregados e dependentes que não tenham ônus para a seguridade social. Ela deixava claro ainda que a autorização para qualquer caso seria dada pela direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS), além de submeter ao seu controle as atividades desenvolvidas e os instrumentos firmados.

Na justificativa do PLS 259/2009, o senador relata que a iniciativa vem por conta das “notórias dificuldades enfrentadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no desempenho de todas as ações destinadas a cumprir os conselhos do artigo 196 da Constituição, segundo os quais a saúde é direito de todos e dever do Estado”. “A assistência médico-hospitalar, a reabilitação física, os exames laboratoriais e de diagnóstico por imagens são exemplos de componentes da assistência à saúde para as quais o SUS não dispõe de serviços que atendam satisfatoriamente a população”, enumera o senador em sua explanação. Por isso, ele argumenta ainda, por conta de o SUS não satisfazer plenamente o direito à saúde, a iniciativa privada supriria esses gargalos “mediante a oferta das ações que não são de execução reservada ao setor público”. 

O projeto foi arquivado em dezembro do ano passado, por ocasião do fim do calendário legislativo, mas suas ideias centrais e justificativas voltaram à tona no mesmo mês, quando foi apensado à Medida Provisória 656/2014 pelo deputado Manoel Junior (PMDB-PB). O que causou estranheza foi como este processo foi conduzido. A MP, por exemplo – que tratava inicialmente no reajuste de tabelas de impostos de renda e outras matérias civis tributárias e financeiras relacionadas à importação –, ao ser encaminhada à sanção presidencial, sendo transformada na lei de conversão nº 18,  agregou diversas outras temáticas como dívidas de clubes de futebol e de empresas de radiodifusão com a União, estatuto do servidor público federal, construção de aeroporto privado,  contratação de parceria  público-privada pelos poderes executivos e judiciário e a abertura do capital estrangeiro na oferta de serviços à saúde. Além disso, o processo tramitou em caráter de urgência, levando pouco mais de um mês – e com os intervalos das festas de fim de ano – para sair do Senado até ser sancionado pela presidente.

Letra da lei

Uma das primeiras pessoas a se manifestar contra este projeto, quando ainda estava em tramitação, foi a coordenadora do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), Lenir Santos, ao publicar o artigo ‘Abertura ao capital estrangeiro na oferta de serviços de saúde’. Segundo ela, este texto quer fazer da exceção uma regra. “Publiquei meu artigo usando como título exatamente o que eles colocam no texto, que é uma afronta à Constituição, que veda o capital estrangeiro na saúde. Esse texto quer abrir as exceções listando uma série de novas possibilidades [ver box na página 21]. Esses casos, no entanto, são praticamente todos aqueles que englobam o conceito de assistência à saúde, onde a iniciativa privada brasileira tem liberdade para atuar. A pergunta então passa a ser: o que está vedado agora, como aponta a Constituição?”, reflete Lenir.

Em seu artigo publicado pelo Idisa, Lenir lembra que este caso não é novo. “A Lei 9.656, de 1998, que dispõe sobre planos de saúde, também criou uma exceção à regra geral constitucional de vedação de capital estrangeiro na saúde, ao permitir no § 3º, do artigo 1º, essa participação. Foi a partir desta aprovação que o grupo estadunidense United Health comprou o Grupo Amil em outubro de 2012, em uma transação de R$ 6,49 bilhões, em quase 90% das ações da maior empresa de planos de saúde brasileira. Desta vez, nem se deram ao trabalho de criar uma exceção, mas acintosamente tentam alterar o texto constitucional por lei, ou melhor, por medida provisória convertida em lei”, critica.

O procurador de justiça do estado do Paraná Marco Antonio Teixeira assevera que este é um problema sério, tanto na questão jurídica como no enfraquecimento do sistema de saúde vigente. “Uma mudança dessa envergadura chama a atenção por outros detalhes, e acho que esse é o pano de fundo. Em primeiro lugar essa mudança vem embutida em uma medida provisória com vários assuntos que não conversam entre si. Você não tem clareza do que trata aquele texto. Isso é um absurdo. A saúde está sendo tratada neste caso como uma feira livre. Por que não colocar em uma MP autônoma?”, indaga, e completa: “O segundo ponto é que isso não foi debatido. Não foram realizadas audiências públicas nem levado em consideração um parecer anterior sobre a mesma temática. O que será que pensa a iniciativa privada brasileira sobre esse capital estrangeiro? O Conselho Nacional de Saúde, que representa a sociedade na fiscalização do SUS e é a mais alta instância de controle social, emitiu uma nota [ver box na página 20] se manifestando contra. Nada impedia que isso fosse claramente discutido, nada impedia que houvesse clareza no processo legislativo, emitindo ou editando uma MP especificamente para isso. Isso traz uma preocupação muito grande”, afirma. O procurador também chama a atenção para a recorrência da pauta no Legislativo. “A que interesse ela corresponde para estar sempre tão presente? Eu não tenho a clareza. A certeza que tenho é da sempre recorrente preocupação dos que defendem o Sistema Único quando essa pauta volta à tramitar”, lembra.

Um debate mais amplo

A pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Maria Angélica Santos afirma que, além da questão constitucional, é preciso, diante da dinâmica capitalista recrudescente, fazer previsões de como esse novo modelo vai funcionar e qual impacto real isso vai ter. Maria Angélica resgata que, ao longo dos últimos trinta anos, o Brasil tem caminhado para um predomínio de sistemas que tratam os serviços de saúde como um bem de consumo. “Ao analisar os impactos da abertura dos serviços de saúde no Brasil ao capital estrangeiro, o primeiro ponto importante a admitir é que a financeirização, ou comoditização, da saúde brasileira no âmbito internacional já acontece há tempos. No caso do Brasil, pelo menos, desde o lançamento de ações da Amilpar na bolsa de valores de Nova Iorque”, relembra, e completa: “Outro exemplo vem com a Rede D’Or, que fez uma operação em 2010 na qual captou recursos do Banco Mundial, usando a intermediação do Banco BTG Pactual, por debênture. Dessa maneira, o Banco Mundial virava seu credor, mas a dívida poderia ser transformada em ações. Então, na verdade, há captação de investimento estrangeiro usando outros recursos e estratégias” explica.

De acordo com dados publicados pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), em 2010 já constavam cerca de 40 empresas estrangeiras operando em serviços de saúde no Brasil. Além disso, como lembra Maria Angélica, o Brasil está em 8º lugar entre os principais destinos de turismo médico no mundo. “Os grandes hospitais de São Paulo vêm fazendo investimentos em alta escala para o turismo médico há pelo menos oito anos, brigando pela internacionalização das marcas. Isso mostra que o comércio internacional de serviços já está acontecendo. A abertura formal ao capital estrangeiro, portanto, era só questão de tempo. Não devemos ter ilusões de que esse movimento será detido pela mobilização do movimento sanitário”, avalia a pesquisadora.

O pesquisador do Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas (Ipea) Carlos Octávio Ocké-Reis,  ao avaliar o mercado do setor de saúde, afirma que ele está concentrado e centralizado, o que é exatamente o cenário favorável para o capital estrangeiro atuar. “O mercado acompanha a lógica do capitalismo global. É cada vez mais concentrado, seja no que diz respeito aos planos de saúde, seja no que diz respeito à industria farmacêutica, e até, em certa medida, tratando dos serviços médicos, ao setor hospitalar. Ao dizer que o setor está concentrado, é preciso olhar para o mercado e para o market share [participação no mercado]. Assim vemos que grupos econômicos têm posição de monopólio e oligopólio. E esse movimento de concentração vem acompanhado pela centralização, que se dá hoje, em boa parte, por meio do capital financeiro. Esse mercado, portanto, está cada vez mais concentrado, centralizado e internacionalizado”, compreende Ocké-Reis.

E qual é o problema desta internacionalização, perguntam os mais desavisados? Do ponto de vista macroeconômico, o pesquisador vê prejuízos para a economia brasileira, levando em consideração a balança de pagamentos – diferença entre o que o país gastou e o que recebeu nas transações internacionais –, que está em déficit em contas correntes. O último balanço publicado pelo Banco Central apontava para um déficit de US$ 8 bilhões.  “Internacionalizar esse setor significa que teremos que mandar dólar para as matrizes das empresas, o que dificulta uma equação macroeconômica no que se refere às divisas externas”, afirma, e completa: “Pensando na economia política, existem questões do ponto de vista assistencial que são problemáticas por conta do que os sanitaristas vêm discutindo há anos: essa  é, de certa maneira, uma questão estratégica, não só pela questão do direito, dos dados dos indivíduos, mas pela própria questão da biodiversidade. E, por último, o processo de internacionalização favorece a hegemonia do mercado na organização dos serviços de saúde. Então, se você refreia esse setor, está resistindo a um processo de fortalecimento do mercado no setor saúde, e, indiretamente, fortalecendo o setor público. Se há um mercado forte, há um setor público fraco, e vice-versa”, avalia.

Saúde como mercadoria

Para Maria Angelica, o primeiro impacto que esta lei pode causar é a mudança dos sistemas de saúde. “Hoje a Turquia é o país que mais atrai o capital de investimento estrangeiro em serviços de saúde. E, lá, eles têm um projeto específico no sentido de transformar serviços de saúde em item de pauta de exportação. Não é nenhum projeto surreal. Quando Cuba exporta médicos, na prática o objetivo é o mesmo. Mas isso dá margem para produtos de exportação como a gente jamais imaginaria, como, por exemplo, o projeto turco de criar uma zona franca de turismo médico. Não sei se foi implementado, porque estava previsto para 2013/2014. É uma área com megahospitais ultrassofisticados e que não são frequentados por turcos. Cerca de 90% são atendimentos a magnatas do mundo que vão à Turquia se tratar e o que a Turquia ganha com isso é divisa, não um sistema de saúde mais equânime”, explicou.

A pesquisadora ressalta ainda que é preciso analisar os dois efeitos do capital que, segundo, ela tem o poder de alavancar a inovação. “Elas são para o bem e para o mal, as supérfluas, que só geram maiores gastos, e as fundamentais, que de fato resolvem problemas importantes. Não tenho dúvida de que o capital tem efeitos virtuosos sobre o desenvolvimento tecnológico. Por outro lado, essa vertente virtuosa se dá à custa de extrema desigualdade, porque, no momento em que a inovação se produz, ela é para poucos. E, com a internacionalização dos serviços de saúde, essa desigualdade agora passa a ter um claro gradiente global instalado dentro de cada país, e não só setorizado em pedaços específicos do mundo. Isso vai fazer até com que pessoas que tinham acesso a serviços de boa qualidade tenham de pagar mais por isso. Vamos pagar muito – considerando nossa renda média nacional – para ter acesso a menos” avalia, e completa: “Quando a gente começar a competir com o paciente internacional, os gradientes serão ainda mais extremos. E minha aposta é que a excelência de cuidado dentro do país, os hospitais de ponta, tenham cada vez menos espaço para atender os nacionais, e que eu seja obrigada a ir ao Peru para ser atendida”.

Com esse fenômeno de mais concorrência de usuários nos serviços de saúde, a pesquisadora acredita que irá se intensificar o pleito das operadoras pelo aumento do investimento público para ampliar a capacidade instalada disponível aos planos de saúde no país. “E aí, o investimento estrangeiro, que vinha para desafogar a necessidade do investimento público segundo o argumento de deputados e empresários pró-abertura, vira um tiro pela culatra”, explicou, se referindo à justificativa apresentada pelo senador Flexa Ribeiro mostrada no início dessa matéria. Ao mesmo tempo, afirma ela, os hospitais de ponta estão pensando em internacionalização da marca. “Há uns três anos, encontrei o superintendente de um hospital da Anahp em Cuzco procurando hospital para comprar. Concretamente, a gente vai ter de disputar até mesmo esse espaço. É isso que as pessoas não perceberam ainda: que, mesmo os privilegiados, que têm planos de saúde, terão cada vez mais problemas para ter acesso no próprio país. Vão ter de disputar com uma massa global de pacientes”, afirma.

Para o pesquisador do Ipea Carlos Ocké-Reis um dos argumentos de aprovação da internacionalização se baseou na promoção da concorrência regulada do setor, que teoricamente traria garantias de serviços de melhor qualidade. No entanto, segundo ele, este argumento cai por terra uma vez que este mercado internacionalizado não traz capacidade de oferta. “Eles estão querendo fazer isso através do SUS. Esse é um setor de intermediação financeira, eles não pegam seus excedentes, seus lucros, e aplicam na conta de hospitais. É claro que os setores que estão na ponta, os setores líderes, tentam fazer associações. Para quê? Para verticalizar sua produção. Se você centraliza sua produção, você ganha economia de escala e aumenta seu markup, porque você consegue controlar seus custos”, avalia, e complementa: “Agora, se você reforça a dinâmica capitalista por meio do processo de internacionalização, é quase que um axioma: é natural que você fragilize o Sistema Único de Saúde. Essa hegemonia é anti-SUS, é anti-Estado”, conclui.