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Cenário de fim do mundo no rastro da lama

Mariana revela a fragilidade das populações frente a captura do Estado pelas megamineradoras
Maíra Mathias, Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 21/01/2016 15h32 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

A tarde do dia 5 de novembro transcorria como qualquer outro dia em Bento Rodrigues. As crianças estavam na escola. Rosilene Gonçalves cuidava das filhas pequenas na sala de casa. Dona Carmem Valadares preparava um pudim para a neta. O subdistrito de Mariana era conhecido pela tranquilidade e não destoava de outros lugarejos próximos, a não ser por estar no sopé de um morro onde foram construídas três barragens usadas para armazenar rejeitos da exploração de minério de ferro, conhecidas como Germano, Santarém e Fundão. A Samarco, empresa responsável por essas e outras estruturas – como mineroduto, adutora, ferrovia –, se instalou na região bem depois dos moradores de Bento Rodrigues. Fundada em 1978, ela é uma joint venture ou empreendimento conjunto das duas maiores empresas de mineração do mundo, a anglo-australiana BHP Billiton e a brasileira Vale. Cada uma tem 50% das ações.

A tarde do dia 5 de novembro deixou de ser um dia como outro qualquer quando, por volta das 15h30, a barragem de Fundão rompeu, liberando mais de 40 bilhões de litros de rejeitos em Bento Rodrigues. Graças a uma moradora, que também trabalhava na empresa e ligou para a família escondido, as crianças puderam ser retiradas da escola a tempo. Rosilene e Dona Carmem conseguiram se salvar. Vários moradores não tiveram a mesma sorte. “Começamos todos a correr. Subimos o morro, eu corria e não olhava para trás. Lá pela metade do caminho, resolvi olhar. Vi casa sendo arrastada, gente acenando a mão pedindo socorro sendo levada barro afora. Só pedi que Deus tivesse misericórdia de toda a família e não deixasse ‘nós’ morrer. E corri novamente”, lembra Carmem. “A lama veio de uma altura, parecia fogo queimando morro acima. Tinha uma pedra muito grande que ficou girando como peão no redemoinho de lama”, recorda Rosilene que, na confusão, salvou a sobrinha de colo, mas perdeu de vista as filhas. “Minhas filhas passaram por mim e eu não vi”.

A onda de lama, com volume equivalente a 25 mil piscinas olímpicas, destruiu tudo que estava em seu caminho – arrasando outros subdistritos de Mariana como Paracatu de Baixo, Pedras,  Águas Claras e Ponte do Gama, além de duas cidades, Barra Longa e Rio Doce. Contaminou três rios – Gualaxo do Norte, Carmo e Doce –, a partir de onde percorreu 420 quilômetros, atingindo 39 municípios – 36 em Minas e três no Espírito Santo. Mais de 1,2 milhão de pessoas foram atingidas diretamente, a maior parte delas teve o abastecimento de água cortado, como a população de Governador Valadares. No dia 22 de novembro, a lama já tinha chegado ao mar, fechando um ciclo simbólico do que vem sendo considerado o mais grave desastre socioambiental do país e um dos maiores já provocados pela mineração no mundo.

“Não teve alarme, não teve aviso de nada”, denuncia Carmem, que morava há 50 anos em Bento Rodrigues. Sua casa, localizada na parte alta do lugarejo, é uma das únicas que ficou de pé depois da enxurrada. A falta de alerta se somou à ausência de resgate e de informações. Embora os bombeiros tenham chegado à noite, Dona Carmem avalia que eles não estavam preparados para o cenário que encontraram. Quando boa parte dos moradores já tinha descido dos morros e tentava se recompor da tragédia, foram informados pela polícia que a maior barragem, Germano, iria romper. Correram de novo. “Quando descemos de lá, às 22h, estava tudo escuro”, diz ela. A comunidade ficou dividida, o que aumentou a angústia dos sobreviventes de Bento Rodrigues. “A noite foi chegando e não tinha notícia de quem estava de um lado e do outro. Ficamos sem água, sem luz, sem ter com o que cobrir para proteger do frio”, diz Rosilene. Na madrugada, enquanto a empresa não chegou e o poder público não atuou, os moradores foram responsáveis pelos resgates. “Uma colega minha morreu [Maria das Graças da Silva]. A outra ficou no barro e os próprios vizinhos puxaram. Um ajudando o outro. Mas não teve ninguém para resgatar”, lamenta Carmem. Até o fechamento da reportagem, já haviam sido identificados 15 corpos e quatro permaneciam desaparecidos. “Foi muito difícil. Pensei que tinha perdido meu marido nessa lama. Ninguém dava noticia e a gente sem apoio de nada, nada, nada. Hoje eu choro minha casa, perdi tudo. Nós trabalhamos a vida inteira para construir a casa de um jeito, minhas criações estão lá morrendo de fome. Eu ‘agradeço’ à Samarco”. 

No rastro da destruiçãoEduardo Barcelos

 

A 40 quilômetros de Bento Rodrigues fica Paracatu de Baixo. O distrito é considerado o segundo mais afetado pelo desastre. O cenário é de fim de mundo. Mais perto do rio Gualaxo do Norte, só o telhado das casas restou aparente em meio à lama.  Lá, a tsunami de rejeitos da Samarco chegou quatro horas depois do rompimento da barragem de Fundão. Todo esse tempo parece não ter sido suficiente para uma resposta mais organizada do que o ‘salve-se quem puder’ que imperou em Bento Rodrigues. Por volta das 20h, alguns moradores estavam no campo de futebol. Dali a pouco, jogariam uma partida, como de costume. “Foi aí que um helicóptero da Polícia Militar pousou no meio do campo e um bombeiro disse ‘vocês têm 15 minutos para sair daí senão vão morrer’”, lembra um morador que aceitou falar com a reportagem, mas pediu para permanecer anônimo. O pânico instaurado na comunidade foi instantâneo. “Foi feio. Veio só chegando aquela zoeirada, a água veio subindo e rolando tudo, aquela lama. No outro dia, ‘tava’ esse deserto doido”, lembra Divino dos Passos, morador de uma casinha verde com portas e janelas de madeira recém-reformada. Apesar da desolação do lugar, ele é um dos oito moradores que optou por permanecer. Mulher e filhas foram para Mariana, com medo do estouro das outras barragens. “A gente fica chocado com o que aconteceu. Isso aqui toda vida foi um lugar bom de viver. Tem horas que dá vontade até de chorar. Essa propriedade aqui é minha, não vou largar. Tenho minhas coisas aqui. A gente, pobre, lutou muito pra conseguir, então...”. Os únicos a visitá-lo são os funcionários da empresa, que lhe entregam água e mantimentos. Naquela terça (17/11) não tinham ido. Para os que optaram ficar, não há qualquer assistência do poder público. Os trabalhadores da Integral Engenharia, empresa contratada pela Samarco, dominam o cenário com máquinas pesadas que recolhem lama e escombros, sem informar para onde levam os rejeitos.

A 26 quilômetros de Paracatu fica Barra Longa. Na entrada da cidade há uma estátua de uma criatura com boca e garras enormes. É o caboclo d´água, mito local que vez e outra coloca a cidade no noticiário por suas façanhas. Com o estouro da barragem, a realidade invadiu o rio do caboclo. A lama sufocou a vida que havia ali. “O rio era água limpinha. É muito triste, acabou com tudo”, se emociona Sidney de Magalhães Gomes. O senhor de cabelos grisalhos mora em um sítio que foi soterrado pelos rejeitos da Samarco. Pés de mandioca, cana, banana, laranja, mexerica e capineira jazem debaixo da lama preta, pesada e difícil de tirar. Os 30 porcos, 17 cabeças de gado, um cavalo e uma ovelha que ele criava ficaram confinados, sem ter o que comer e em contato com a lama.  Segundo ele, a empresa “andou passando por aí”, mas não ofereceu nada. A prefeitura também não. “A Emater veio, cadastrou umas coisas, depois voltou uma veterinária, ficaram de arrumar um trato para os animais. A renda que eu tinha era do leite. Perdi”.

No centro da pequena cidade, fica a praça engolida pela lama. O portal antigo onde se lê ‘Barra Longa’ se transformou numa espécie de signo da catástrofe. Foi lá que alguns moradores passaram a madrugada, curiosos com a sujeira que descia pelo rio. Rafaela Moll estava entre eles. “O Corpo de Bombeiros garantiu que seria ‘só um barrinho’, disseram que nem do leito o rio ia sair”. Foi aproximadamente 12 horas após o rompimento de Fundão que parte da população foi informada de maneira atabalhoada que a praça iria ser invadida pela lama. “Por volta das 3h30, um policial veio avisar. Corremos para salvar alguns bordados que minha tia ia vender em uma feira. Em 15 minutos o quintal já estava alagado. Quando chegou, foi de uma vez. Comecei a ficar desesperada porque estava subindo muito rápido. A porta principal não abria, na outra, lateral, a chave não girava, e a água começou a entrar por debaixo da porta. Um rapaz que estava ajudando, com muita força, conseguiu abrir e, quando isso aconteceu, veio muita água e muito alto. Atravessamos a praça com dificuldade, era uma lama muito pesada”.

Impactos na saúde

Maíra MathiasA Samarco tem interesse no minério de ferro. Mas na rocha onde há minério existem outros metais em concentrações mais baixas. Por isso, o processo de extração separa o ferro do restante, que é descartado. Esse resíduo é conhecido como estéril. Quando adicionam água, o estéril passa a ser chamado de rejeito. Em linguagem corrente, lama. “Esse rejeito é composto basicamente por areia – sílica – e outros metais, como manganês, cádmio, arsênio. Esses metais pesados também desceram com a lama que vai escoando pelos rios”, afirma Eduardo Barcelos, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) formado em engenharia ambiental pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), que acompanhou a reportagem da Poli durante a viagem à região. Ele destaca que embora a Samarco tenha repetido que o material é “inerte”, é preciso investigar o seu potencial tóxico. E cita a análise da Prefeitura de Baixo Guandu (ES), que comparou água limpa, água com barro natural e água com a lama da Samarco. “Na amostra com rejeitos, a concentração de arsênio varia duas mil vezes. Imagina uma pitada de sal na língua. Outra coisa é colocar uma colher de sal. Às vezes uma pequena concentração de arsênio no corpo já é suficiente para causar algum tipo de doença no futuro. Estamos falando de um agravo que pode se manifestar no longo prazo”, alerta.

Mas a lama é potencialmente insalubre também pelos estragos que causou. “Essa lama hoje é uma mistura de coisas. Na medida em que foi passando, arrastou madeira, animais, fossas sépticas, chiqueiros, esgotos. Arrasou distritos e povoados. Não estamos falando só de lama, mas de matéria orgânica podre”, resume Eduardo. Abaixo de Bento Rodrigues, por exemplo, existia um garimpo artesanal que usava mercúrio. Por serem pesados, muitos desses metais vão para o fundo do rio. Por isso, Eduardo Barcelos argumenta que é importante uma análise não só da água, mas dos sedimentos. E uma análise que abarque toda a bacia – não só o rio Doce, mas os afluentes –, diferentes níveis de profundidade e também os solos afetados.

Além da vida marinha comprometida, não é exagero pensar que outros animais vão ser impactados e também as plantas. Com isso, a economia rural fica prejudicada. “Essa lama atingiu uma área rural de agricultura familiar que se notabilizava também pela produção de leite e derivados. O inventário dos impactos na produção de alimentos e leite a gente não está vendo na mídia, que tem focado na falta de água. Os solos, agora com a lama em cima, são inférteis. Estão contaminados e sufocados”, diz Eduardo. A recém-lançada Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares é uma das organizações presentes em Mariana. Vários integrantes da rede percorrem as comunidades afetadas e conversam com os moradores. Ana Paula Dias, estudante de Medicina da UFMG, explica que os atingidos ainda estão tentando dar conta dos danos materiais, têm alguma ideia da amplitude do impacto ambiental, mas parecem ainda não pensar nos impactos à saúde humana e animal. “Queremos saber o que as pessoas imaginam que há nessa lama, ao mesmo tempo em que vamos levantar as análises que estão sendo feitas. Os agentes tóxicos que por ventura estejam nessa lama contaminaram água e solo e, consequentemente, plantações e animais. E talvez esses impactos sejam observados apenas no médio e longo prazo”, reforça. Para ela, a situação é especialmente delicada no que diz respeito à saúde mental da população atingida. “Pode ser observado aumento da depressão, alcoolismo, abuso de drogas; questões que vão acontecendo num prazo longo e às vezes se perde a relação causal [entre o rompimento e os agravos]. Por isso, queremos fazer acompanhamento longitudinal dessas pessoas”, diz.

Nas comunidades atingidas, não se vê um esforço coordenado de resposta do Sistema Único de Saúde (SUS). Os moradores afirmam que médicos, enfermeiros, psicólogos, agentes comunitários não têm percorrido as residências para realizar atendimentos ou esclarecer os moradores sobre os riscos da lama para a saúde humana. A reportagem também não encontrou qualquer profissional da Estratégia Saúde da Família nas mediações. Mas se deparou com vítimas da tragédia que tiveram problemas de saúde ou precisaram tomar vacina antitetânica e tiveram que ir por contra própria aos locais de atendimento. Até o fechamento da reportagem, o Ministério da Saúde sequer havia se pronunciado sobre o desastre em Mariana.

O secretário de saúde de Mariana, Juliano Duarte, contesta essa percepção. Segundo ele, houve ações coordenadas desde o início da tragédia. Ele informa que desde quinta-feira (5/11) até domingo (8/11) foram mobilizados 335 servidores e as unidades de saúde do município passaram a funcionar 24 horas por dia. Segundo Juliano, tem havido busca ativa pelas pessoas que não foram até os serviços de saúde. “Muitos que não tiveram as residências destruídas resistiram em sair com receio de saques, então os agentes comunitários de saúde fizeram também uma busca ativa dessas pessoas levando medicação, donativos e água”, afirma. Perguntados pela reportagem, três moradores de Paracatu que continuam na comunidade negaram que tenha havido visitas como as descritas pelo secretário. Sobre a falta de ações coordenadas, Juliano afirma que, junto com a secretaria estadual de saúde, o município está monitorando pessoas que entraram em contato com a lama por ingestão ou cortes. Ele explica que durante 30 dias está havendo a realização periódica de exames laboratoriais e de imagem.  Mas os resultados estão sendo tratados pelo órgão como “sigilosos”. O secretário não explica o porquê do sigilo, mas deixa escapar que foram constatados três casos de pacientes com alterações no teor de ferro no sangue.

Organização frente ao poder da Samarco

No dia 16 de novembro, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais realizou uma audiência pública em Mariana. O objetivo era discutir a situação das vítimas do desastre. Depois de aproximadamente seis horas de falas, constatou-se a necessidade de criar mecanismos que impeçam a relação direta entre a empresa e os atingidos. “A empresa é suspeita. Mas toda a relação com os atingidos passa pela Samarco. Órgãos da prefeitura e governo estão paralisados e o direito à organização está sendo violado”, afirmou Beatriz Cerqueira, presidente da CUT Minas.

O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) tem tentado furar o bloqueio da empresa e articular de forma crítica as vítimas em Mariana e Barra Longa. Nos seus 24 anos de existência, contudo, nunca encontrou situação parecida. “Aqui é um momento diferente para o MAB. Trabalhamos mais com barragens de hidrelétricas, em situações também extremas para a população atingida. Mas o rompimento de barragens de rejeitos, de fato, tem sido um processo mais intenso e forte, até por ter se estendido por toda a bacia do rio Doce”, conta Letícia Oliveira, da coordenação nacional. As diferenças não param por aí. O MAB tem 15 militantes em Mariana, enquanto a Samarco, segundo informações que circulam na cidade, teria a seu serviço 400 ‘voluntários’ em contato direto com a população atingida, espalhada pela empresa em 17 hotéis e pousadas na cidade. A dispersão dos atingidos é considerada uma estratégia corrente das empresas para fragmentar as lutas, forçando que a negociação se dê de forma individual e, de preferência, por acordos judiciais. Somam-se a isso barreiras impostas à atuação dos movimentos sociais, que tiveram acesso negado por funcionários dos estabelecimentos e ‘voluntários’ da empresa. “Alguns militantes foram convidados a se retirar com justificativas na linha ‘não é para entrar porque os atingidos estão cansados e não querem conversar desse assunto’ ou ‘não é para pensar no passado e vocês vão ajudar a lembrá-los do passado’”, relata Letícia. Em contrapartida, o acesso da Samarco é livre.

Além das visitas, o MAB tem organizado reuniões e assembleias para falar sobre os direitos humanos que foram e ainda estão sendo violados pela empresa, como o direito à informação e participação e o direito à organização. A proposta do MAB é que a negociação seja coletiva, garantindo que os atingidos participem ativamente do processo e pautem empresa e poder público sobre quais serão as formas de reparação. “Sabemos que cada um tem a sua história, perdeu coisas diferentes. Mas a negociação, as formas de reparação e os critérios devem ser coletivos”, afirma Letícia, e completa: “A maioria quer a reconstrução das comunidades. Muitos já estão pensando nos lugares onde as novas comunidades podem ser reerguidas, querem que sejam respeitados os laços familiares e de vizinhança. É obrigação da empresa responsável pela barragem reconstruir a vida dessas pessoas, já que não foram elas que decidiram perder tudo”. A empresa foi procurada pela reportagem, mas não respondeu.

A Samarco e a Vale parecem ser onipresentes na região. O trem que liga Ouro Preto e Mariana é “o trem da Vale”. Várias igrejas recentemente foram reformadas com recursos da Vale. O MAB organizou uma confraternização para as vítimas da Samarco “no antigo clube da Vale”. Quem tentou chegar a Bento Rodrigues na semana entre 16 e 20 de novembro, encontrou as entradas bloqueadas por veículos da Samarco – e não da Defesa Civil, Polícia Civil ou Militar. Em visita à comunidade de Paracatu de Baixo, na terça (17), a reportagem não viu nenhum órgão público coordenando e fiscalizando os trabalhos de retirada dos rejeitos que destruíram casas e ruas. Dona Carmem, que aparece no início dessa reportagem, relata que sua entrada em Bento Rodrigues foi barrada e que ela só conseguiu voltar à comunidade que a empresa destruiu depois de ir até a portaria da Samarco pedir permissão. A empresa a escoltou até o local. Na semana que a reportagem passou em Mariana, verificou um grande vazio das três esferas de governo. Apesar das visitas e aparições de helicóptero das autoridades, não houve a criação de um gabinete de crise para centralizar e coordenar a resposta do poder público, por exemplo. Via assessoria de imprensa da prefeitura de Mariana, a reportagem pediu esclarecimentos sobre a atuação da Defesa Civil do município e a coordenação dos trabalhos de resgate e limpeza das comunidades atingidas, mas não obteve resposta.

O que falamos quando falamos de mineração

Talvez mais importante do que refazer o caminho da lama, seja entender do que falamos quando tratamos de mineração no Brasil. Para a maior parte da população, leiga em relação ao assunto, a primeira coisa que vem à cabeça é a imagem de um garimpo ou uma mina. Mas isso está longe da realidade do modelo brasileiro da megamineração, que impacta milhares de famílias e o meio ambiente também com barragens, adutoras, usinas de beneficiamento, ferrovias, minerodutos e portos. É o caso da Samarco.

Maria Júlia Gomes, da coordenação nacional do Movimento pela Soberania Popular Frente à Mineração (MAM), conduziu a reportagem por alguns dos equipamentos que compõem os complexos mineradores da Samarco e da Vale nas cidades de Ouro Preto, Mariana, Catas Altas e Santa Bárbara. Seguindo pela MG-129, é possível ver a gigantesca barragem de Germano, a usina pelotizadora onde a empresa faz um beneficiamento simples do minério de ferro, transportado em “bolinhas” através do mineroduto que sai de Mariana, passa por várias cidades mineiras, atravessa o Espírito Santo e chega até o porto de Ubu, no litoral capixaba. A água para essa operação é retirada do rio Santa Bárbara, através de uma adutora encravada num dos locais mais antigos de Minas, no distrito de Brumal. Maria Júlia relata que além de o nível da água ter diminuído consideravelmente, prejudicando o lazer na região, o MAM tenta organizar há algum tempo os moradores que foram removidos de suas casas para que a adutora pudesse ser erguida ou que permaneceram no entorno, sofrendo com o barulho 24 horas por dia. “Mas as pessoas caíram em depressão e não querem nem ouvir falar na empresa”, diz.

Tendo como pano de fundo a beleza da Serra do Caraça, estão as grandes minas da Samarco – complexo que recebeu o dúbio nome de “Alegria” – e também da Vale. A gigante brasileira explora a mina São Luís e tenta reabrir ao lado outra mina desativada. Ambas as estruturas ficam muito próximas do distrito de Morro da Água Quente, em Catas Altas. Lá, os moradores têm organizado uma resistência à empresa, pois sofrem diariamente com os ruídos dos trens que transportam a produção e com a poeira fina que paira no ar graças às explosões. As cidades visitadas fazem parte da região conhecida como quadrilátero ferrífero, responsável por 60% de toda a produção nacional de minério de ferro. O país é o segundo maior exportador do mundo, com uma média atual de 500 milhões de toneladas de minério ao ano. E a Vale é a maior produtora de minério de ferro do planeta.

A importância da participação de produtos primários na economia brasileira tem crescido nos últimos dez anos. Com o boom das commodities, a mineração virou um novo grande agente. “Ela sempre existiu em Minas, mas não nessa intensidade. O ritmo de exploração por conta do boom é muito rápido. A mecanização favorece isso, mas é aproveitar a onda dos preços no mercado internacional. Mesmo que o preço do minério de ferro esteja mais baixo, entre 50 e 60 dólares, ainda sim é um patamar acima da média de 20 dólares em 2002/2003”, situa Maria Júlia, e conclui: “Ainda é extremamente rentável para o capitalismo extrair o máximo de minério de ferro para exportação”.
Bruno Milanez, pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS), defende a tese de que o boom das commodities deve ser relacionado ao aumento de acidentes, como o que aconteceu em Mariana. Ele explica que as empresas de mineração competem no mercado internacional por baixo custo. O objetivo é vender para outras empresas, que vão transformar a matéria-prima em celulares, geladeiras, carros. “E para garantir baixo custo é preciso aumentar a escala. Isso quer dizer minas cada vez maiores e, consequentemente, barragens de rejeitos cada vez maiores”, explica. Só que a redução dos custos não se resume apenas a mais produção, mas também a menos cuidados com a parte da operação que não gera lucros, como as barragens. “Temos que levar em consideração que a construção de uma barragem dessas não é muito barata e, na tentativa de baratear custos, essas empresas buscam ampliá-las ao máximo. Aí entra o processo de alteamento. As barragens vão ficando cada vez mais altas porque é mais barato subir uma barragem do que construir uma nova”, explica Bruno. Segundo a Fundação Estadual do Meio Ambiente, ao menos 35 das 750 barragens que existem em Minas Gerais têm estrutura insegura. Três acidentes envolvendo barragens de mineradoras tiveram, em menor escala, efeitos semelhantes ao rompimento de Fundão. Em 2001, barragem da Mineração Rio Verde se rompeu em Nova Lima, região metropolitana de Belo Horizonte. Cinco operários morreram no acidente que atingiu 43 hectares e assoreou mais de seis quilômetros do Córrego Taquaras. Em 2007, a barragem da mineradora Rio Pomba Cataguases rompeu em Miraí. A lama com rejeitos de bauxita seguiu pelo Rio Muriaé e atingiu duas cidades mineiras e quatro municípios no estado do Rio. Em 2014, barragem sob responsabilidade da Herculano Mineração rompeu em Itabirito, causando a morte de três pessoas. A empresa já tinha sido autuada pelo Ministério Público 28 vezes por irregularidades, inclusive por falta de programas de gerenciamento de risco.

Tragédia anunciada

A pedra dessa tragédia já havia sido cantada em 2013, durante o processo de revalidação da licença de operação da barragem de Fundão. Na época, técnicos constataram que a Samarco não tinha nenhum estudo de avaliação de ruptura para a barragem, tampouco um plano de contingências caso o desastre acontecesse. Isso mesmo se tratando de uma barragem de nível três, de grande impacto. No mesmo ano, uma empresa contratada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais avaliou a barragem e concluiu que havia possibilidade real de ruptura. “Ao invés de indeferir a licença, acrescentaram-se essas exigências como condicionantes. Assim, a revalidação foi concluída em 2013”, lembra Marcilene Ferreira, da Rede Nacional de Advogados Populares, que atua há anos na defesa de comunidades atingidas pela mineração no estado.

Apesar do que o nome sugere, as condicionantes muitas vezes não funcionam como condição para que um determinado projeto seja aprovado. Pelo contrário, os projetos são aprovados apesar das inúmeras pendências. Esse cenário, na avaliação de Eduardo Barcelos, precisa ser revisto com urgência. “A agenda econômica, o lobby da mineração, empurra as condicionantes ao limite”, diz. Ele e Maria Júlia citam como exemplo o projeto Minas-Rio, da multinacional britânica Anglo American, que envolve estruturas como um mineroduto de 529 quilômetros – quase a mesma extensão do litoral de Santa Catarina – e do porto do Açu, no Rio de Janeiro. “O projeto foi aprovado com 300 condicionantes. Depois de 300 condicionantes, existe viabilidade social e ambiental para a obra? São perguntas que os movimentos e os atingidos estão colocando”, pontua Eduardo. Recentemente, outro exemplo veio à tona envolvendo a polêmica usina de Belo Monte. O Ibama, órgão federal de licenciamento, concedeu a licença da operação da usina mesmo sem o consórcio Norte Energia ter cumprido 41 condicionantes.

A fiscalização das condicionantes é outro problema. Quando em 2014 a Samarco apresentou o estudo sobre a ruptura da barragem e o plano de contingências, várias falhas foram constatadas pelos movimentos sociais, mas passaram batidas pelos órgãos técnicos. Foi graças a isso que, por exemplo, a empresa nunca instalou sequer um alarme em Bento Rodrigues. Treinar a comunidade para cumprir protocolos em caso de acidentes, tampouco. E isso foi dito pela empresa no próprio plano. E até o que a empresa previu – treinamento dos próprios funcionários – não cumpriu.

Além de tudo, a Samarco estava requisitando licenças para o alteamento e unificação das barragens de Germano e Fundão. Em carta ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, diversas organizações que atuam na defesa do meio ambiente e de populações impactadas pela mineração denunciam que a empresa afirma no documento de requisição das licenças que ‘não identificou durante os estudos ambientais receio da população entrevistada’. Como contraponto, citam uma tese de doutorado defendida em 2012 na UnB, que identificou que 68% dos moradores de Bento temiam o desastre. No Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA) do mesmo projeto, feito pela consultoria SETE, contratada pela Samarco, consta a informação de que os rejeitos das atividades da empresa são dispostos em três barragens e em uma cava desativada. Segundo a SETE, a capacidade de armazenamento dessas estruturas tinha prazo de validade: 2016. Como o rompimento ocorreu apenas dois meses antes de 2016, as organizações questionam se o cálculo foi preciso. Outra possibilidade é que a Samarco tenha armazenado rejeitos deliberadamente além da capacidade das barragens.

Para Bruno Milanez, as falhas técnicas que levaram à tragédia precisam ser analisadas sob o pano de fundo da precariedade dos órgãos de fiscalização e controle nas esferas federal e estadual. “Não houve aumento de pessoal e infraestrutura compatíveis com o crescimento econômico dos últimos anos. Com isso, os técnicos estão sobrecarregados e não conseguem fiscalizar de forma efetiva todos os empreendimentos de risco”, aponta. Bruno considera ainda outro problema: a ingerência política nos processos. “Mesmo quando os técnicos conseguem levantar uma série de condicionantes que indicam que determinado empreendimento não pode ser licenciado, vem uma decisão política, normalmente do secretário de meio ambiente ou do governador, dizendo para licenciar atrelado às condicionantes”.

Soberania popular

A pressão das empresas para licenciar empreendimentos de qualquer jeito e o mais rápido possível entra em choque com os interesses populares de quem será impactado pelos empreendimentos. Para a advogada Marcilene Ferreira, uma das lições da tragédia é a constatação de que os mecanismos de licenciamento são insuficientes, mas, acima de tudo, não favorecem a participação popular.  “É necessário que as comunidades possam exercer o poder de decisão em relação às atividades econômicas em seus territórios. As audiências públicas hoje não cumprem a função de ouvir as comunidades atingidas. Existem só para constar. O processo como um todo não cumpre a função de ser um instrumento de proteção do meio ambiente e das pessoas que moram ou retiram seu sustento nesses locais”, denuncia.

Por isso, como o próprio nome anuncia, o MAM considera que um dos pontos centrais do debate é a soberania popular frente à mineração, o poder de decidir quando, como e onde vão ser exploradas as riquezas naturais. Hoje, para explorar minérios no subsolo brasileiro, “leva” quem pede primeiro, seja pessoa física ou jurídica. “Esse mecanismo se chama regime de prioridade e não pressupõe nenhuma estratégia pública”, explica Maria Júlia. Ou seja, caso cumpra regras burocráticas e técnicas, o solicitante explora onde e na intensidade que quiser.  “Quem vai ditar é o mercado internacional? É a economia chinesa? Isso não é política de Estado. E não é assim para outras áreas”, afirma Maria Júlia, usando como base de comparação outra riqueza mineral, o petróleo. Ela explica que embora não seja o ideal, o sistema de partilha garante que o Estado planeje e participe de todo o processo de exploração. “O Estado determina qual área é estratégica para a exploração naquele momento. Na mineração nem isso”. Antes da privatização da Vale, que ocorreu em 1997, Maria Júlia argumenta que pelo menos havia uma grande empresa pública na exploração mineral, o que garantia algum protagonismo para o Estado no planejamento e nas políticas públicas para o setor. “Hoje não é assim”.

Eduardo Barcelos aponta outra implicação da megamineração para os brasileiros. “As empresas vão adquirindo propriedades no entorno da área explorada: fazendinha, lote, sítio. E concentrando. O pequeno proprietário vai ficando isolado e também acaba cedendo”, diz. Ele dá como exemplo a atuação da Anglo American. O empreendimento Minas-Rio adquiriu mais de 30 mil hectares, o equivalente a 30 mil estádios de futebol. “O maior assentamento do Rio de Janeiro hoje tem oito mil hectares”, compara. Eduardo, que estuda os impactos socioambientais no Minas-Rio, revela as estratégias heterodoxas da empresa na busca por essas terras. Segundo ele, a Anglo fundou uma empresa de fachada, chamada Borba Gato [menção ao bandeirante], que pretensamente tinha o objetivo de instalar um haras para criação de equinos. “Mas sua função, na verdade, foi fazer um levantamento das terras e proprietários para a Anglo”, denuncia, e completa: “Hoje a questão agrária tem que ser renovada porque não se trata só de discutir os conflitos pela terra com o latifúndio, mas com outros agentes, como a mineração, o setor portuário, a siderurgia. Todos esses ramos da indústria de extração requerem terra e o debate da função social da propriedade privada precisa ser colocado”.

Chantagem do emprego

No dia 17 de novembro, quando o rompimento da barragem de Fundão completou duas semanas, manifestantes foram às ruas de Mariana gritar “Fica Samarco!”.  A promessa de empregos e melhora nas condições de vida da população talvez seja a face mais cruel dos megaempreendimentos extrativos. Isso porque, como dependem das altas e baixas do mercado internacional de commodities, num piscar de olhos todo o “desenvolvimento” some, deixando milhares de desempregados. No dia 8 de dezembro, a Anglo American anunciou que vai reduzir o número de funcionários de 135 mil para menos de 50 mil em decorrência da queda do preço do minério de ferro e dos metais industriais. Uma das primeiras medidas da Samarco depois do rompimento de Fundão foi praticar outro rompimento, desta vez dos contratos com as empresas terceirizadas que lhe prestavam serviços.

“Mariana vai sobreviver de quê?”. A pergunta é feita não só pela empresa ou pelas autoridades municipais, mas pelos próprios moradores. Inclusive os atingidos, como Raquel Carneiro, moradora de Paracatu e trabalhadora terceirizada da Samarco. Técnica em Segurança do Trabalho, Raquel informou na audiência pública realizada no dia 16 de novembro que havia acabado de assinar sua demissão. “Que as multas sejam revertidas para criar outras empresas em Mariana, porque não queremos sair daqui”, propôs. Nesse sentido, o início de dezembro trouxe uma boa notícia: a Samarco assinou um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público do Trabalho (MPT) para que os 2.686 empregados diretos da empresa e 2,4 mil terceirizados não sejam demitidos em massa tanto em Minas Gerais como no Espírito Santo. No entanto, a manutenção dos empregos só está garantida até 1º de março de 2016. Para Marcilene Ferreira, a empresa faz um jogo com os recursos financeiros, colocando os atingidos em lados opostos, pois afirma que ou paga indenizações às famílias ou mantém os contratos de trabalho. “E há nas famílias que tiveram tudo destruído pessoas que trabalham nas empreiteiras, na Samarco ou em outras minas da Vale na região”, observa. A advogada reforça que o discurso de que a Samarco não tem recursos para arcar com os danos não cola. “Nós temos uma empresa controlada pelas duas maiores mineradoras do mundo, que fizeram a opção financeira de reduzir custos de operação. Foi uma decisão das controladoras. Nós entendemos que a Samarco tem recursos, mas se ela não fizer esses pagamentos, o poder público terá que exigir isso judicialmente da Vale e da BHP. É muito fácil dividir só os lucros”, conclui.

Os dados do Ministério do Trabalho e Emprego mostram que o setor extrativista mineral é o que mais emprega em Mariana depois do serviço público e do setor de serviços. Cerca de 80% da arrecadação da cidade depende da mineração. “A cidade construiu sua economia dependente da mineração e o orçamento da prefeitura foi construído numa perspectiva rentista, partindo do princípio de que aquela riqueza seria permanente. Portanto, é de se esperar que a cidade passe por uma redução de receitas no médio prazo”, analisa Bruno Milanez. Para o pesquisador, a situação deve servir de alerta para todos os municípios mineradores. “Essas cidades precisam criar transições que diminuam a dependência da mineração. A maior parte das prefeituras pega o dinheiro e não pensa no desenvolvimento de outras atividades. Ao invés de se manter nessa armadilha e exigir que a Samarco volte a operar o mais rápido possível e do mesmo jeito que antes, a tragédia deveria ser uma oportunidade para repensar outras vocações econômicas que não sejam essencialmente abrir buraco na terra”, complementa.

Se depender do secretário adjunto de Educação de Mariana, Israel Quirino, vai ser difícil. “Nós não somos nem pastos, nem campos, mas minas. Não queiram pôr o dedo no nosso nariz e indicar o nosso caminho porque nós somos mineradore.”, esbravejou na audiência pública do dia 16, como único representante do município. Mas, para Eduardo Barcelos, a tragédia em Mariana traz muitas lições. “É preciso que a população fique alerta sobre o quanto esses empreendimentos têm ingerência no poder público, a despeito do grande impacto que causam, a ponto de fazer com que se considere a mineração um fato consumado”, afirma e conclui: “Isso esconde outras economias - rurais, pesqueiras, camponesas - que vivem nessa região e são sacrificadas pela hegemonia da mineração. Há uma tese de que Mariana não planta. Mas se observarmos, as comunidades de Bento e de Paracatu têm práticas agrícolas para consumo local. Então, sair dessa chantagem e acreditar que é possível pensar o futuro sem a megamineração é um desafio não só para Mariana, mas para Itabira, Carajás, Conceição do Mato Dentro, Caitité, Santa Quitéria, e vários outros municípios que estão sendo impactados”.

O que já era ruim pode ficar pior

A alguns minutos do centro de Barra Longa, sempre margeando o rio, um cartaz do deputado federal Leonardo Quintão (PMDB/MG) pende da parede de uma casa em ruínas. Seria irônico se não fosse trágico: relator do Novo Código da Mineração que está tramitando no Congresso Nacional, o político recebeu nas últimas eleições mais de R$ 1 milhão em doações de várias mineradoras, sendo R$ 700 mil apenas do grupo Vale. Matéria exclusiva da BBC Brasil (7/12) revelou que o projeto de lei assinado por Quintão foi criado e alterado no escritório de advocacia Pinheiro Neto, que tem uma cartela de clientes recheada de mineradoras, entre elas, a Vale e a BHP. O caso é duplamente escandaloso, já que o Código de Ética da Câmara dos Deputados proíbe que parlamentares relatem “matérias de interesse específico” de empresas que bancaram suas campanhas. O peso das mineradoras na vida política brasileira pode ser observado a partir dos dados do Tribunal Superior Eleitoral. Nas últimas eleições, Dilma Rousseff e Aécio Neves receberam volumosas doações das empresas da Vale, R$ 12 milhões e R$ 1,5 milhão, respectivamente. O atual governador de Minas, Fernando Pimentel (PT), recebeu R$ 3,1 milhões e o governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB), R$ 300 mil. A lista de doações da Vale inclui ainda muitos outros senadores, deputados federais, estaduais, governadores e prefeitos.

Talvez por isso, a maior catástrofe socioambiental do país parece não ter sido suficiente para barrar a agenda de flexibilizações do processo de licenciamento de grandes empreendimentos minerários. Em Minas Gerais, decorridos 20 dias do rompimento da barragem da Samarco, os deputados estaduais aprovaram a modificação das regras para concessão de licenças ambientais. Mesmo sob fortes críticas de ambientalistas e movimentos sociais, o projeto de lei 2946/15 continuou tramitando em regime de urgência. De autoria do governo Fernando Pimentel (PT), a proposta parte do pressuposto de que é preciso acelerar as licenças pulando etapas do processo. Um dos pontos mais criticados é o estabelecimento de prazos - de seis meses ou um ano, no caso de projetos que necessitem de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) - para que o empreendimento seja licenciado ou indeferido. Além disso, o Executivo passa a ter um poder maior de decisão. Projetos considerados estratégicos pelo Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico poderão ser aprovados pela Secretaria do Meio Ambiente sem passar pelo Conselho de Política Ambiental (Copam). A nova lei traz ainda uma emenda que garante que o governador pode assumir as competências do Copam em “caráter excepcional” e em caso de “interesse público”. Até o fechamento dessa reportagem, a nova lei ainda não havia sido sancionada por Fernando Pimentel.

Em paralelo, a tragédia de Mariana parece ter servido de impulso para a votação do Novo Código da Mineração brasileiro. Leonardo Quintão concluiu um novo parecer no dia 8 de dezembro e anunciou que pretende colocar a matéria em plenário ainda em 2015. Em tramitação desde 2013, quando a proposta original foi enviada pelo Executivo, o Código  pretende alterar o conjunto de regras que regula o setor no Brasil. Para o engenheiro Bruno Milanez, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), depois de alguns anos de debate, a versão atual do Código se aproxima da original, apresentada pelo governo Dilma. “Era uma proposta ruim que foi paulatinamente piorada durante a tramitação no Congresso”, resume. Ele ressalta que embora a versão do Executivo seja melhor, ainda sim é rebaixada. “Quase nenhuma das demandas da sociedade civil foi efetivamente incorporada no Código”, observa. De acordo com Milanez, as mudanças fazem parte de uma mesma inflexão na política ambiental do país. “Os últimos anos têm sido de intensos retrocessos nos direitos humanos e socioambientais adquiridos. São processos que andam casados nas esferas estadual e nacional. No caso do PL em Minas, é quase uma autorização automática. No Senado, já passou em uma comissão especial um projeto que vai na mesma direção. Se consideramos ainda o contexto de precarização e sucateamento dos órgãos públicos, qualquer licenciamento vai ser meramente cartorial. Os técnicos vão só carimbar os projetos”, afirma.