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Conhecimento e mobilização política em defesa do direito ao saneamento

Criação de observatório e Frente Nacional pelo Saneamento emergem do Fama 2018 como propostas para articular difusão de conhecimento e mobilização política pelo direito à água e saneamento, direito que segundo especialistas encontra-se ameaçado por propostas privatizantes do governo federal
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 21/03/2018 15h08 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
Foto: Marcelo Casal/ABr

Representantes de universidades, sindicatos, movimentos sociais e entidades da sociedade civil reunidos no Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama) 2018 se articulam para criar iniciativas de produção e difusão de conhecimento e de atuação política relacionadas ao direito à água e ao saneamento. A proposta é articular organizações de vários campos e áreas de atuação para defender o direito à água e ao saneamento e frear o avanço das propostas que ampliam a privatização do setor, como as defendidas pelo governo federal na atualidade.

No campo da produção de conhecimento está o Observatório Nacional de Direito à Água e ao Saneamento (Ondas), que deverá reunir professores e pesquisadores ligados à área do saneamento de várias instituições como a Universidade Federal da Bahia (UFBA), do Rio de Janeiro (UFRJ), de Minas Gerais (UFMG) e do ABC Paulista (UFABC), além de representantes do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), entidade sindical que reúne trabalhadores do saneamento e da energia, e de organizações não- governamentais como a Fase e o Instituto Mais Democracia.

Segundo a professora da UFRJ Ana Lúcia Brito, a ideia é retomar uma proposta de 2009 que acabou sendo esvaziada em um contexto em que a legislação brasileira avançava no sentido de garantir esse direito à população. Contexto bem diferente do atual, segundo ela. “Hoje estamos em outro contexto, de um governo ilegítimo, que se colocou no poder de forma questionável, e que está propondo modificar o marco regulatório do saneamento, que passou anos em um debate público, por meio de uma medida provisória, sem nenhum debate público. É um absurdo”, critica a professora, fazendo referência a MP que vem sendo elaborada desde o final do ano passado pela Casa Civil com o objetivo de revisar a lei 11.445/2007, a Lei Nacional do Saneamento Básico.

De acordo com Ana Lúcia, a decisão de criar o observatório partiu da constatação da importância de um órgão para centralizar e divulgar o conhecimento produzido por universidades, movimentos sociais e organizações compromissadas com a defesa do direito à água e ao saneamento, em um contexto em que a maior parte dos dados divulgados pela mídia atualmente provém de organizações financiadas pelo setor privado. “A mídia é muito parcial com relação a esse tema. Se você for pegar o que sai na Folha de São Paulo, no Globo, eles só publicam o que é produzido pelo Instituto Trata Brasil, que se autodenomina uma Oscip [Organização da Sociedade Civil de Interesse Público], mas cujos maiores financiadores são empresas privadas. A coordenação atual do instituto está a cargo da Aegea, que junto com a BRK Ambiental são as maiores prestadoras privadas de saneamento no Brasil”, explica Ana Lúcia. E completa: “A nossa ideia com o Ondas é ter uma dimensão de produção de conhecimento contrahegemônica. Temos uma série de dissertações, teses, projetos de pesquisa, que apontam para os conflitos do acesso ao saneamento hoje no Brasil, mas que acabam ficando muito restritos aos muros das universidades. Nossa perspectiva é atuar na difusão de informações que subsidiem a reivindicação do saneamento como direito”, contrapõe.

Mobilização política pelo saneamento

Outra proposta discutida no Fórum Alternativo Mundial da Água é a reconstituição da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental, criada em 1997 como estratégia de enfrentamento ao processo de privatização do saneamento promovido pelo governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. “A Frente é o braço político do Observatório, e o Observatório o braço de produção de conhecimento para subsidiar a atuação da Frente”, explica Ana Lúcia Brito. Segundo ela, além da volta da ameaça das propostas de privatização do setor de saneamento, outra justificativa para a retomada da Frente é a necessidade de defender os avanços obtidos na última década, como a própria aprovação da Lei Nacional do Saneamento Básico, em 2007, e o reconhecimento do acesso à água de qualidade como um direito humano pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em 2010.

Segundo Edson Aparecido da Silva, da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), a ideia é retomar um processo de articulação entre as entidades sindicais, movimentos ambientalistas, instituições universitárias, e organizações da sociedade civil que compunham a Frente. “O próximo passo é reunir essas organizações e definir nossa agenda de mobilização. Acho que demos um salto significativo nesse sentido aqui no Fórum”, relata. Ele explica que a Frente tem hoje duas pautas centrais. Uma delas é contra o avanço do Projeto de Parcerias em Investimentos (PPI), através do qual o governo federal quer incentivar a entrega das companhias estaduais de saneamento para o setor privado. “O governo, através do PPI, e do BNDES como um instrumento para isso, contratou uma série de consórcios privados pra fazer a modelagem da privatização das empresas estaduais de saneamento, e 18 estados brasileiros aderiram, o que na verdade se deu por conta da chantagem do governo federal, que condicionou a renegociação das dívidas dos estados com a União à adesão ao programa”, problematiza Edson. “Essa deve ser uma agenda nossa, de continuar na batalha para enfrentar esse projeto das parcerias de investimento, que na verdade visam avançar no processo de privatização”, complementa.

O representante da FNU argumenta que a insatisfação com a gestão privada do saneamento pode ser medida hoje pelo processo de remunicipalização dos serviços de saneamento em cidades de vários países do mundo, como Estados Unidos, França, Espanha e Alemanha. Problemas como a falta de investimento em infraestrutura, aumento de tarifas, danos ambientais e dificuldade de controle social estão entre as principais críticas feitas hoje à gestão privada do saneamento, segundo Edson. “No Brasil, o exemplo mais recente de remunicipalização de serviços de saneamento foi na cidade de Itu em São Paulo, em fevereiro de 2017, após dez anos de serviços privados. A retomada dos serviços pelo município ocorreu depois de grande revolta da população em razão da crise abastecimento de água enfrentada pela população”, lembra.

MP do saneamento na mira

A outra pauta da Frente é a mobilização contra a medida provisória que o governo federal pretende apresentar para revisar o marco regulatório do saneamento. A proposta, em elaboração pela Casa Civil, altera vários artigos da lei 11.445/2007, conhecida como a Lei Nacional do Saneamento Básico, e favorece a atuação do setor privado. “Hoje, pela lei, não há necessidade de abertura de concorrência pública por um município se a empresa prestadora de serviço escolhida for pública. A MP modifica isso, obrigando a abertura de concorrência pública, podendo os prestadores privados entrarem para concorrer com os prestadores públicos”, explica Ana Lúcia. O problema é que, como explica o delegado sindical e servidor da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), do Rio de Janeiro, Ary Girota, essa concorrência não se dá em pé de igualdade. “A empresa pública tem o preço dela aberto. O preço do metro cúbico de água, por exemplo, da Cedae hoje é de aproximadamente 3 reais. Se você vai para uma licitação, o privado já sabe o meu preço. Então quando você abre licitação a empresa privada pode colocar, digamos, 2,99 reais por metro cúbico. Aí ela ganha e depois pode pedir pra aditivar o contrato”, explica. Ele dá o exemplo de Niterói, na região metropolitana do Rio, onde a distribuição de água e o tratamento e coleta de esgoto foi privatizada em 1999. “Ao longo dos anos já aconteceram três aditivos contratuais, prorrogando contratos, aumentando prazo de concessão, mexendo nas tarifas. Tudo isso vem depois da licitação, é assim que a iniciativa privada atua. O controle do poder público sobre a iniciativa privada é irrisório”, critica.

A MP traz outros pontos polêmicos, segundo a professora da UFRJ, como a retirada da obrigação de estudo de impacto ambiental para instalação de obra de saneamento. A justificativa é a necessidade de acelerar investimentos e obras no setor. “O próprio ministro do Meio Ambiente [José Sarney Filho] é contra, mas ninguém sabe por quanto tempo ele vai continuar ministro, ele deve sair para se descompatibilizar e poder se candidatar às eleições”, afirma Ana Lúcia. A MP também propõe mudar o processo de regulação dos serviços de saneamento, centralizando poderes na Agência Nacional de Águas (ANA). “Hoje há vários formatos de regulação, quem escolhe o regulador é o titular de serviços, que pode escolher uma agência estadual, por exemplo. Mas existe um incômodo do setor privado com a pluralidade de agências, e eles vêm reivindicando uma regulação nacional”, explica a professora. O atropelo com que a medida foi discutida e apresentada é outro ponto crítico. “Ela não passou nem pelo Conselho das Cidades, que é o órgão de controle social do setor de saneamento”, reclama. Para o representante da FNU, a MP está repleta de inconstitucionalidades, e caso seja editada, deve ser foco de uma disputa jurídica acirrada. “Ela fere a autonomia do município prevista na Constituição. Como uma medida provisória pode obrigar o prefeito de uma cidade a colocar o seu serviço à disposição do mercado? Essa é uma decisão dele, não pode ser imposta pela legislação, sobretudo na forma de medida provisória”, explica Edson.