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Decreto que regulamenta lei orgânica da saúde gera divergências

Documento recente, e ainda desconhecido por parte de muitos delegados, foi tema de debate polêmico na 14a CNS
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 04/12/2011 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Em junho de 2011, 21 anos após a promulgação da lei orgânica da saúde (a 8.080/90), o governo federal finalmente publicou um decreto que regulamenta esta lei, dispondo sobre a organização do SUS, o planejamento da saúde, a assistência e a articulação entre os entes federativos. Entre outros aspectos abordados, o decreto, de número 7.508 , designa as chamadas ‘regiões de saúde’, trata da integração dos serviços entre os entes federados, e cria duas listas que devem ser publicizadas, contendo todos os serviços que o SUS precisa oferecer ao cidadão e também todos os medicamentos a que as pessoas têm direito. (Leia mais sobre o decreto )

Embora sua importância seja reconhecida, o documento tem sido alvo de muitas críticas. Várias questões relativas a ele foram debatidas em uma das mesas mais polêmicas da 14a Conferência Nacional de Saúde, com o tema ‘A integralidade e as redes regionais de saúde’. “O decreto de fato organiza detalhes importantes do funcionamento do SUS e coloca algumas cartas na mesa. Mas será que ele vai ter capacidade para reduzir esse imenso abismo entre o SUS vigente e o SUS real?”, questionou Mário Scheffer, presidente do Grupo Pela Vida.

A lei orgânica

A jurista Lenir Santos, consultora do Ministério da Saúde e do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), disse que a integralidade da assistência à saúde é a matriz que dá forma ao modelo do SUS: “Esse modelo, de acordo com a Constituição, é uma integração de ações e serviços de todos os entes federativos, que deve se organizar em redes de atenção à saúde. Essa rede, por sua vez, deve se regionalizar, e deve ser hierarquizada no tocante à complexidade dos serviços”.

Ela explicou que a lei 8.080, que regulamenta o SUS, define a integralidade da assistência à saúde como um conjunto articulado e contínuo de ações e serviços, preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso, em todos os níveis de complexidade do Sistema. “Assim, de acordo com a lei, a integralidade não acontece em um ente específico. Ela acontece no Sistema. Por isso, a integralidade conforma o Sistema para que todas as ações e serviços de saúde sejam integrados em uma rede de atenção à saúde, dentro de uma região de saúde”.

É nesse âmbito que entra o decreto 7.508. Ele estabelece a criação de ‘regiões de saúde’, definidas como espaços geográficos contínuos, constituídos por agrupamentos de municípios limítrofes, e delimitados a partir de identidades culturais, econômicas e sociais. “A região deve ter uma rede de comunicação, uma infraestrutura de transporte para as pessoas poderem se movimentar, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a rede de ações e serviços de saúde”, explicou Lenir. E, de acordo com ela, cada região tem que oferecer um mínimo de serviços, dentro da atenção primária; atenção especializada e hospitalar; atenção psicossocial; urgência e emergência; e vigilância em saúde. “É na região que vai ocorrer a integralidade. Caso os municípios, juntos, não deem conta desse conjunto, não podem ser considerados uma região de saúde”, explicou Lenir.

Ela acredita que a divisão em regiões de saúde pode fazer com que os cidadãos tenham acesso a serviços que não teriam nos municípios isolados. “Ninguém é capaz de oferecer tudo – da vacina ao transplante – sozinho. Unidos, os municípios criam, na região, uma rede de serviços que pode dar conta de atender a quase todas as necessidades”, disse Lenir, completando: “A região garante direitos iguais às pessoas. Porque se você é de um município de cinco mil habitantes, aquela cidade, pela sua renda, vai oferecer poucos serviços. Na região de saúde você pode ter um tratamento igual ao de outro cidadão que more em um município de 100 mil habitantes. Isso é aquilo que chamamos de solidariedade do sistema”.

A jurista explicou também como vai se dar a divisão de responsabilidades entre os entes federados. “Decidem-se as responsabilidades sanitárias de cada município e do estado, assim como da União, dentro de determinada região. E a segurança jurídica vai se dar por meio de um contrato, que vai explicitar as responsabilidades, os prazos, as metas, a forma de avaliação. Esse contrato tem que ir para os conselhos municipal e estadual de saúde e vai ficar à disposição da população, no portal de transparência do Ministério da Saúde, para que cada cidadão possa saber, em sua cidade, quem se comprometeu com o que, com quanto dinheiro, dentro de que cronograma. Qualquer um vai poder saber o que o seu município se comprometeu a fazer e quanto dinheiro recebeu para isso”, disse.

Relações de serviços e de medicamentos

Lenir explicou ainda que a assistência vai estar explicitada na Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde: todas as ações e serviços de saúde que o SUS oferece têm que estar nessa Relação. “Todo cidadão tem o direito de conhecer a Renases, que deve ser publicada pelo Ministério da Saúde e atualizada periodicamente. Essa é uma Relação que todo o país precisa seguir. Estados e municípios podem fazer alguns serviços adicionais, mas jamais diminuir o que está na Renases”, disse. Será também publicada a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, com a lista de medicamentos a que os usuários terão acesso.

Mário Scheffer disse ter algumas preocupações em relação a essas listas. “Não são apenas mais duas siglas. Estamos falando de toda a regulação e divisão de responsabilidade sobre tudo aquilo que o SUS deve oferecer. Está escrito que estados e municípios poderão adotar relações específicas de ações e serviços de saúde. Ao regular a integralidade com parâmetros específicos locais, o resultado pode ser o contrário do que pretendemos – pode ser inclusive uma limitação da universalidade”, declarou.

Sobre a Rename, Scheffer a considera “complicada”, na medida em que, segundo o decreto, estados e municípios poderão adotar relações específicas e complementares de medicamentos, e só será disponibilizado medicamento para quem tiver sido assistido em serviços do SUS, com receitas médicas do SUS. “Meu receio é, mais uma vez, que isso limite a universalidade. Penso no caso da Aids. Nós conquistamos o acesso universal a esse tratamento, que tanto orgulha o SUS, com a Constituição em uma das mãos e a 8.080 na outra. Hoje, todo mundo, pobres e ricos, com ou sem plano de saúde, fica na mesma fila do SUS para pegar os medicamentos que salvam vidas. Isso é uma conquista, e não aceitamos o discurso de que a Aids é uma exceção. Queremos que ela seja um exemplo”, defendeu.

Esta também é a posição de Maria de Fátima Andreazzi, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): “O decreto não diz claramente, mas quer retirar do SUS a população que hoje tem cobertura por plano de saúde. E essa população tem que voltar ao SUS, e não ser rechaçada”, afirmou.

Atuação do setor privado

Scheffer disse que outra de suas preocupações é o fato de o decreto mencionar apenas superficialmente a participação do setor privado na saúde. “A única menção é que o planejamento deve considerar os serviços prestados pela iniciativa privada, e que isso deve constar nos mapas da saúde”, afirmou. De acordo com ele, a Conferência deve discutir o papel dos interesses privados no SUS e a forma como esses recursos têm circulado nos estados e municípios. “Afinal, estamos aqui discutindo a responsabilidade dos entes federados, mas não há uma definição clara sobre as responsabilidades que, na regionalização, aceitaremos que sejam confiadas ao setor privado. E o que está colocado é uma prática, de canto a canto do país, de entrega incondicional do SUS ao sistema privado”, disse.

Maria de Fátima, que também faz parte da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, afirmou que o SUS compartilha essa preocupação. Ela criticou a relação entre o poder público e o segmento privado, e afirmou que o país caminha para um processo de “oligopolização e monopolização” desse segmento nos municípios e estados. “Poucos produtores são donos da maior parte dos serviços, e o SUS fica refém desses prestadores, já que só eles fazem determinado tipo de serviço”, disse, explicando: “Sou professora de economia da saúde, e a própria economia convencional, neoclássica, diz: situação de monopólio justifica estatização, para que não fiquemos na mão dos prestadores. Só se justifica pensar em contratos quando há concorrência”. Maria de Fátima também criticou a terceirização de serviços laboratoriais em imagem, que cada vez mais, no SUS, são feitos por grupos empresarias privados. “São grupos inclusive financeiros, com capital internacional, capital aberto em bolsa de valores. Na verdade, é claro que esses grupos não têm o menor compromisso com a saúde de ninguém – aquilo é um negócio como outro qualquer. E, quando não der mais lucro, migram para outro negócio”, apontou.

Para Gustavo Couto, secretário municipal de saúde de Recife e vise-presidente do Conasems, a discussão entre público e privado na saúde é fundamental para a Conferência. “Precisamos saber o que é entregar uma gestão construída, um prédio, a uma organização social sem regulação, entregar para que seja governada sem controle social, que faça processo seletivo de qualquer jeito, e em que o poder público perca as rédeas e o controle da gestão pública”, exemplificou.

Apesar das críticas de que o decreto não regula o setor privado, Lenir Santos explicou que, na verdade, isso não poderia mesmo ser feito. “Isso não seria possível, já que a lei 8.080 praticamente não fala do setor privado. Como eu disse, o decreto não pode expandir a lei nem ir acima dela. Para isso, precisamos  uma emenda à lei 8.080”, disse.

Com ou sem controle social?

Maria de Fátima também disse que o decreto compromete o controle social, uma vez que o contrato da região de saúde não é aprovado pelos conselhos de saúde. “O decreto diz que o conselho será ouvido, não que ele aprovará algo. Isso é uma questão a ser avaliada”.

Para Mário Scheffer, essa é uma das questões que mais merecem cuidado na avaliação do decreto. “O documento deveria ter explicitado melhor a necessidade de acompanhamento do controle social. O contrato vai identificar as necessidades de saúde locais e regionais, vai apontar os recursos financeiros que serão disponibilizados por estados e municípios, e isso é ação deliberativa do controle social. É preocupante que o conselho seja apenas ouvido em caso de questões tão relevantes para o SUS”, afirmou, dizendo que o próprio decreto 7.508 não foi debatido adequadamente no Conselho Nacional de Saúde.

Lenir Santos, no entanto, garantiu que a atuação dos conselhos permanece inalterada. De acordo com ela, o decreto explicita que a base do contrato são os planos de saúde de estados e municípios. “Esses planos são discutidos e aprovados nos conselhos, e é deles que se retiram as programações. É isso que vai para o contrato, que será fiscalizado pela população”.

Ela também disse que o decreto não poderia regulamentar a lei 8.142, que trata dos conselhos de saúde, porque um mesmo decreto não pode regulamentar duas leis ao mesmo tempo. “Então, os conselhos continuam exatamente como já são, porque não há nada no decreto que regulamente conselhos nem conferências”, disse a jurista.

Lenir acrescentou ainda que não é necessário fazer nenhuma regulamentação sobre a lei 8.142, porque ela já é muito explícita. “Um decreto só deve ser feito para explicitar trechos da lei que não sejam claros, e esse não é o caso. A regulamentação não aumenta nem diminui a lei. No caso da regionalização, era necessário porque não ficava claro o que era uma região, por exemplo. Mas a regulamentação não mexe, nem pode mexer, na integralidade ou na universalidade, que são princípios já explicitados em lei. Ninguém pode mudar esses conceitos definidos em lei”, explicou.

Outras preocupações

Scheffer disse ainda que o decreto abre a possibilidade da criação “de novas portas de entrada de acesso ao SUS”. Para ele, não está claro que essas novas portas serão abertas e únicas. “Já estamos cheios de portas fechadas, de portas duplas e de portas seletivas pelo SUS”, disse. Lenir Santos esclareceu que trata-se de novas portas de serviços para entrada no SUS, e não de entrada de pessoas nos serviços. “Por exemplo, o centro de referência de Aids hoje é uma porta de entrada – você não precisa ir à atenção primária. O Cerest, que faz a saúde do trabalhador, é outra. De repente, outros serviços podem configurar outras portas. Não se trata, de maneira alguma, de camuflar a dupla porta de entrada, o que seria totalmente inconstitucional”, explicou a jurista.

Ele também demonstrou preocupação em relação aos parâmetros que serão utilizados para a avaliação da qualidade dos serviços. “O decreto diz que o desempenho vai considerar indicadores nacionais, mas que devem ser consideradas particularidades municipais e regionais. Quem garante que a pactuação será em cima dos melhores indicadores, diante da sempre alegada incapacidade de financiamento das ações? Não me parece claro que o nivelamento vai se dar pela excelência, pelo melhor nível assistencial daquela região. Vai ser preciso muito controle social para não corrermos o risco de limitar direitos, de instituir cestas básicas de atendimento e de oferecer uma saúde pobre para os pobres”, disse. E completou: “Que não venham os gestores querendo pactuar meia saúde, porque não existe meia cidadania. Queremos o SUS por inteiro”.

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