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Desigualdade e racismo institucional em pauta no SUS

Política Nacional de Saúde Integral da População Negra completou nove anos em 2018, mas implementação das medidas de enfrentamento das desigualdades raciais na saúde e no SUS ainda é incipiente
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 18/05/2018 12h58 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

E lá se vão 130 anos desde que foi sancionada a Lei Imperial nº 3.353, mais conhecida como a Lei Áurea, que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil. O fim da escravidão não significou o fim das profundas desigualdades sociais e do racismo que sempre marcaram a sociedade brasileira. Problemas que estão evidentes em números até hoje: os negros são a parcela da população brasileira que ganha menos, são os mais afetados pelo desemprego e pela violência, moram em condições mais precárias e têm menor escolaridade.

Nesse cenário, pensar as políticas públicas de saúde a partir de um recorte de raça, bem como enfrentar o racismo institucional que impõe barreiras para o acesso da população negra aos serviços de saúde, é desde muito uma reivindicação dos movimentos sociais ligados à causa negra, cuja mobilização foi essencial para a construção de uma política que completou nove anos no dia 13 de maio desse ano: a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN).

Uma longa trajetória

A política foi a culminância de um longo processo de mobilização de grupos ligados à causa negra, que remonta a pelo menos meados da década de 90, como explica a pesquisadora Jurema Werneck, atual diretora-executiva da Anistia Internacional, no artigo ‘Racismo Institucional e Saúde da População Negra’. Foi no ano de 1995 que aconteceu a Marcha Zumbi dos Palmares, considerada um momento chave para a vinculação entre racismo e vulnerabilidades em saúde na agenda da gestão pública. A marcha, que reuniu cerca de 30 mil pessoas em Brasília para protestar contra o racismo e a ausência de políticas públicas para a população negra, teve como um de seus desdobramentos a formação de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), reunindo militantes, pesquisadores e representantes do governo para formular propostas de ação governamental.

A saúde da população negra foi o foco de uma mesa-redonda promovida pelo grupo de trabalho em 1996, que resultou na proposição de várias medidas, como a inserção do quesito raça/cor na Declaração de Nascidos Vivos e de Óbitos e a criação ou a reestruturação de programas e ações voltadas ao enfrentamento de doenças predominantes na população negra, a exemplo da doença falciforme, da hipertensão arterial e do diabetes mellitus, e o fortalecimento e extensão do então Programa Saúde da Família para as comunidades quilombolas, entre outras propostas.

A partir desse marco inicial, a temática do racismo como determinante associado ao adoecimento e à morte precoce de negros e negras ganha corpo no âmbito governamental com a criação de um Comitê Técnico de Saúde da População Negra no Ministério da Saúde, em 2003, a organização de dois seminários nacionais sobre o tema, em 2004 e 2006, e sua inserção nas proposições das conferências nacionais de Saúde. Em 2005, um representante do movimento negro passa a ocupar uma cadeira no Conselho Nacional de Saúde (CNS), abrindo espaço para que a entidade em 2006 aprovasse a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, pactuada dois anos depois pela Comissão Intergestores Tripartite do CNS e publicada em 2009 pelo Ministério da Saúde.

Tendo como marca o “reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde”, a PNSIPN estabelece como seu objetivo geral a promoção da saúde integral da população negra, “priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do SUS”. Entre seus objetivos específicos estão a ampliação do acesso da população negra urbana e das populações quilombolas às ações e serviços de saúde; o aprimoramento da qualidade dos sistemas de informação em saúde, por meio da inclusão do quesito cor nos instrumentos de coletas de dados nos sistemas de informação do SUS; o fomento à produção de pesquisas sobre racismo e saúde da população negra; a identificação das necessidades de saúde da população negra e sua utilização como critério de planejamento; a pactuação junto às três esferas de governo de indicadores e metas para a promoção da equidade étnico-racial na saúde, entre outros. A política define ainda as responsabilidades de cada esfera de gestão, em âmbito federal, estadual e municipal com relação à sua implementação.

Implementação incipiente

Para Luis Eduardo Batista, pesquisador do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e coordenador do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a demora na tramitação da política no interior das instâncias de pactuação do SUS já aponta para a dificuldade de se discutir a questão do racismo pelo Estado brasileiro. “A política ficou dois anos engavetada no Conselho, com o movimento social fazendo pressão, sem conseguir pautar essa agenda na Comissão Intergestores Tripartite. Pra mim isso significa que nenhum dos três entes da Tripartite queria ter essa conversa. E mesmo depois de aprovada na CIT foi preciso muita pressão para que o Ministério a publicasse”, aponta Batista. E completa: “O que eu estou querendo dizer é que dentro da estrutura do Estado há uma dificuldade enorme em olhar para essas questões que o meu ver são estruturantes da nossa sociedade”.

A aprovação da política não mudou . É o que mostram os resultados preliminares de uma pesquisa coordenada por Batista, que tem o objetivo de fazer um balanço da implementação da PNSIPN. O projeto reúne o Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e a Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP). No ano passado, Batista e a pesquisadora da USP Sônia Barros publicaram um artigo apontando os resultados da primeira etapa da pesquisa, que consistiu no envio de um questionário para gestores municipais e estaduais sobre o tema. Segundo o pesquisador, apenas 32 municípios e sete estados responderam ao questionário, e desses, cinco estados e 12 municípios relataram ter uma área técnica ou um responsável técnico para desenvolver ações de combate ao racismo previstas pela PNSIPN. Ou seja, quase uma década após ser aprovada, essa é uma política cuja implementação ainda é muito incipiente. “Eu acho que a gente ainda tem uma dificuldade de pensar as políticas de promoção da equidade como políticas do Sistema Único de Saúde. Não é só uma dificuldade dos gestores, mas de toda a sociedade em pensar o racismo institucional, em pensar políticas de promoção da equidade quando a desigualdade é uma questão estruturante da nossa sociedade”, lamenta o coordenador do GT Racismo e Saúde da Abrasco. 

Segundo ele, no âmbito federal, a implementação da política também caminhou pouco. Batista observa que falta qualidade no sistema de informação de saúde com relação ao recorte raça/cor, o que prejudica a gestão das políticas públicas voltadas para esse segmento da população, e alerta que a produção de diagnósticos sobre o quadro de saúde da população negra no Brasil ainda está muito restrita à academia. “A Maria do Carmo Leal [pesquisadora da Fiocruz que coordenou a pesquisa ‘Nascer no Brasil’] publicou, ano passado, um artigo intitulado ‘A Cor da Dor’ e verificou que as mulheres negras têm maior dificuldade de acessar o serviço de saúde, têm que peregrinar mais, não tinham acompanhante na hora do parto etc. Bom, a Maria do Carmo Leal fez isso. Mas o Ministério da Saúde não faz isso. Eu faço uma leitura dos municípios que estão implementando a PNSIPN, mas o Ministério da Saúde ainda não fez. Esse é um limite para a qualidade do sistema de informação de saúde no Brasil e para o uso dessa informação para subsidiar a gestão”, critica.

Na conjuntura política atual, segundo Batista, a tendência é que esse quadro se aprofunde. O pouco diálogo que havia entre o governo e os movimentos sociais ligados à causa negra, que possibilitaram a construção da PNSIPN em âmbito federal, deixou de existir. Para piorar, diz Batista, foram aprovadas medidas que tendem a aprofundar a desigualdade social que historicamente tem afetado de maneira mais forte a população negra. É o caso da Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos da União com políticas sociais pelos próximos 20 anos. “Isso acaba impactando diretamente esse grupo, que é o que tem mais necessidade de um sistema como o SUS. Com o congelamento dos recursos, a população negra é a que mais sofre com o ataque aos direitos sociais que está em curso no país”, ressalta, e acrescenta:“É esse grupo populacional que mais vai sofrer as consequências de um orçamento exíguo para a saúde e para a educação, da falta de participação social e de diálogo com o Executivo, o Legislativo e o Judiciário também”.

Na contramão

O estado do Maranhão foi o primeiro estado a aprovar uma Política Estadual de Saúde Integral da População Negra, publicada em novembro do ano passado. Atualmente é o único estado a possuir uma política voltada especificamente para as necessidades de saúde dessa população, que no Maranhão responde por quase 80% do total de habitantes. Claudiana Cordeiro, chefe do Departamento de Educação em Saúde da Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão, explica que a Política foi construída a partir de sete encontros entre representantes do movimento negro, quilombolas e de religiões de matriz africana e gestores municipais das áreas de saúde, educação e assistência social, realizadas entre agosto e setembro de 2017. “Esse anseio é bem antigo da população negra do Maranhão, tendo em vista todas as dificuldades que a gente vê que tem dentro dos serviços de saúde”, diz Claudiana. Além da Secretaria de Saúde, participaram da construção da política as secretarias de Igualdade Racial e a da Mulher do estado, bem como a Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

A política estadual maranhense está estruturada em cinco eixos, cada um com uma lista de prioridades: acesso da população negra às redes de atenção à saúde; promoção e vigilância em saúde; educação permanente em saúde e produção do conhecimento em saúde da população negra; fortalecimento da participação e do controle social e monitoramento; e avaliação das ações de saúde para a população negra. Segundo Claudiana, o acesso aos serviços, principalmente por parte das populações quilombolas, o racismo institucional e a intolerância religiosa que afeta as populações que seguem religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, foram os principais problemas relatados durante as oficinas. “A intolerância se dá, por exemplo, nos terreiros, que a gente sabe que proporcionam um cuidado de saúde para as populações que vivem no entorno, têm um papel muito importante no cuidado de saúde dessas comunidades. Mas o que a gente percebe é que os profissionais de saúde, como alguns agentes comunitários de saúde, muitas vezes não entram nos terreiros por questões religiosas, e por consequência não conseguem fazer um trabalho conjunto com a população desses locais”, explica. Ela completa: “É justamente isso que a gente vem procurando quebrar. A política prevê várias ações para aproximar os serviços de saúde dos terreiros, dos pais de santo, das benzedeiras, das parteiras, das raizeras, da medicina tradicional que é praticada nas comunidades”.

Em relação ao eixo da promoção e vigilância, Claudiana explica que o foco foram os agravos provocados pela falta de acesso à água potável e ao saneamento básico por boa parte da população negra e quilombola no Maranhão. Promover estratégias de prevenção e enfrentamento da violência, especialmente a que vitima a juventude e as mulheres negras, implementar campanhas de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), como o HIV/AIDS e o HPV, e de hepatites virais com recorte étnico-racial e realizar estudos epidemiológicos sobre as doenças prevalentes na população negra estão entre as principais ações previstas nesse eixo da política estadual. Com relação ao eixo da educação permanente, diz Claudiana, o enfoque da política estadual deverá ser o desenvolvimento de capacitações técnicas para as equipes multiprofissionais de saúde, gestores municipais e conselheiros de saúde nos temas relacionados à saúde da população negra e do racismo institucional como determinante social da saúde desses segmentos da população. A abertura de editais de fomento à pesquisa e publicação de trabalhos científicos sobre a saúde da população negra e das comunidades tradicionais no estado a partir da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema) é outro aspecto da política destacado pela chefe do Departamento de Educação em Saúde da Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão.

Segundo Claudiana, a política ainda está sendo apresentada aos gestores municipais, e seu plano operativo prevê um prazo de quatro anos para implantação das ações. “Essa política é um grande marco pra nossa saúde do estado. São 40 anos de luta do movimento negro para que a gente tivesse uma política voltada para a população negra. O desafio daqui para frente é fazer com que ela realmente aconteça e não fique somente no papel”, pontua.