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Diretrizes da educação profissional em foco

Especialistas manifestam preocupação com o conteúdo das novas diretrizes nacionais da educação profissional, homologadas pelo MEC no início de janeiro, por estarem alinhadas à reforma do ensino médio
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 29/01/2021 10h05 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) divulgou na última segunda-feira (25) uma nota com críticas às novas diretrizes nacionais curriculares da educação profissional e tecnológica (DCNEPT), que foram homologadas pelo Ministério da Educação (MEC) no início de janeiro depois de aprovadas no ano passado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).

A nota, elaborada pelo GT Trabalho e Educação da Anped, e assinada por diversas outras entidades, sindicatos e movimentos da área, lembra que as novas diretrizes têm como objetivo alinhar a educação profissional com os princípios do que a entidade chama de “contrarreforma” do ensino médio, impulsionada a partir da aprovação da lei 13.415, em 2017 – que, entre outras medidas, estabeleceu uma divisão do currículo do ensino médio em duas partes: uma comum a todos os estudantes, orientada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2018, e outra orientada pelos chamados itinerários formativos, entre os quais a educação profissional.

“A contrarreforma do ensino médio em seu conjunto, e, em particular, das DCNEPT [...] pode ser sintetizada pelo direcionamento a uma completa fragmentação da etapa final da educação básica, privando os filhos da classe trabalhadora mais empobrecida do acesso aos conhecimentos produzidos e acumulados pela humanidade”, denuncia a Anped.


Ensino médio integrado em risco?

Coordenador do GT Trabalho e Educação da Anped e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Marcelo Lima afirma que a revisão das diretrizes já era esperada, tendo em vista a necessidade de “amarrar” a organização da educação profissional às mudanças trazidas pela reforma do ensino médio, já que as DCNEPT anteriores, aprovadas em 2012, tinham como eixo o estímulo à oferta da educação profissional de forma integrada ao ensino médio regular, “ainda que com contradições”.

“As novas diretrizes priorizam claramente a forma concomitante da educação profissional, o que por si só fragiliza a perspectiva de formação integrada, por meio da qual as instituições públicas, principalmente da Rede Federal [de Educação Profissional, Científica e Tecnológica] têm conseguido oferecer uma formação bastante consistente”, diz Marcelo.

Marise Ramos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), concorda. “Está claro que a prioridade da educação profissional sob a contrarreforma do ensino médio e, agora nas diretrizes, é a fragmentação, e não a integração curricular”, diz.

Ainda que as novas diretrizes continuem trazendo a possibilidade de oferta do ensino médio integrado, Marise argumenta que essa perspectiva acaba enfraquecida, uma vez que as DCNEPT estabelecem um limite de 1,8 mil horas para a formação geral dos estudantes, a ser orientada pela Base. “Isso compromete o princípio da formação integrada”, afirma.

Ainda de acordo com ela, há uma clara priorização da forma concomitante da oferta nas diretrizes – que, inclusive, trazem o conceito de “concomitância intercomplementar”. “O concomitante construído pelo próprio estudante é quando ele faz o ensino médio em uma escola e a educação profissional em outra. O que eles chamaram de concomitante intercomplementar, que já existia antes, é a ideia de estabelecer convênios entre sistemas e instituições. Então, por exemplo, a EPSJV, como instituição de educação profissional, poderia fazer um convênio com a secretaria de educação do Rio de Janeiro, que ficaria responsável pelo ensino médio, mas tendo uma construção integrada dos projetos pedagógicos”, explica Marise.

E completa: “Isso pode ser até mais avançado do que a concomitância construída isoladamente pelo estudante. Mas não é integrado, que implica unidade curricular. O texto, ao priorizar a forma concomitante, ratifica que a integração não é um princípio que orienta a educação profissional”.

Além disso, continua Marise, as novas DCNEPT trazem uma fragmentação da própria formação técnica, ao estabelecerem que esse itinerário pode ser cumprido não apenas com a habilitação técnica por meio da certificação de conclusão de um curso técnico, mas também por meio do que é chamado de qualificação profissional técnica, obtida pela somatória de vários cursos de curta duração. “Há uma fragmentação absurda da formação técnica e profissional”, critica a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz. 


Redução de custos

Marcelo Lima alerta também para o “aprofundamento da desregulamentação” da formação profissional necessária aos professores da educação profissional nas novas diretrizes, que, em linha com a reforma do ensino médio, permite que os sistemas de ensino contratem profissionais com “notório saber” para ministrar aulas em disciplinas que integrem a parte de formação profissional.

“É uma coisa nebulosa. O que significa notório saber? Significa cinco anos de experiência profissional? Cinco anos na docência? Isso poderia ter sido melhor explicado nas diretrizes, de um modo que você pudesse amarrar para não ser qualquer um que pudesse dar aula na educação profissional. Mas isso não foi feito. As diretrizes apenas repetem o texto da lei da reforma e mantêm essa fragilidade”, lamenta ele.

Para Marise Ramos, a noção abstrata de notório saber no texto da reforma, e agora nas novas diretrizes da educação profissional, cria um “fosso absurdo” entre o perfil de formação que é exigido dos professores responsáveis pela formação geral e os da formação profissional. “O perfil de formação dos professores da educação profissional é basicamente definido pela experiência profissional, e não pelo domínio científico e tecnológico daquela profissão e daquela área”, afirma.

A flexibilização da exigência de formação dos professores da educação profissional é um ponto que, para ela, sinaliza uma orientação pelo barateamento da oferta de educação profissional pelo Estado. É nesse mesmo sentido que a pesquisadora vê a autorização dada nas novas diretrizes para os “cursos híbridos”, que combinam atividades presenciais e a distância.

“A educação a distância veio para ficar, e ela tem que ser discutida do ponto de vista das possibilidades que ela abre. Mas sob a racionalidade contemporânea de restrição dos gastos públicos, ela é uma forma de baratear a educação profissional. Diminui-se a necessidade de infraestrutura e aposta-se em plataformas tecnológicas, em videoaulas. O fato de se admitir a educação a distância praticamente como uma dimensão estrutural da educação profissional é uma maneira clara de diminuição de custos, de redução de investimento em infraestrutura, inclusive na construção de prédios, na equipagem de laboratórios”, alerta a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz.

Outro problema identificado na educação a distância na educação profissional é a possibilidade de transferência massiva de recursos públicos para o setor privado. “Ela tende a alimentar largamente as empresas de tecnologia da informação e comunicação, então o fundo público será destinado a essas empresas na compra de pacotes e de tecnologias, de plataformas”, aposta.


Outro lado

O diretor nacional do Serviço Social da Indústria (Sesi) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e ex-conselheiro do CNE, Rafael Luchesi, que relatou o parecer do CNE que aprovou as novas diretrizes, vê a questão de outra forma.

“A educação a distância vai permitir uma formação mais acessível, sobretudo num país continental como o Brasil. Há boas experiências nesse sentido atualmente. A do Amazonas é bem interessante. O debate que existe no mundo é o uso cada vez mais intensivo das tecnologias em todas as atividades humanas. E essa pandemia provou que o nosso ponto estava absolutamente correto. É claro que é muito mais fácil uma pessoa de alta renda fazer educação a distância do que uma de baixa renda. Não é simples essa questão, mas não vai ser com preconceito que a gente vai avançar” defende Rafael.

Ele também argumenta que a inclusão dos cursos de qualificação técnica – com carga horária entre 160 e 440 horas – no itinerário formativo da educação profissional foi uma “mudança importante” trazida pelas novas diretrizes.

“É assim nos países desenvolvidos, é assim na Alemanha, onde se a pessoa faz um curso técnico de mecânica e depois for fazer um curso de tecnólogo de mecânica ele abate 60% dos créditos. No Brasil ele teria que fazer tudo de novo. Isso não é razoável”, afirma.

“A gente tem que pensar em como melhorar as condições do capital humano para os segmentos sociais mais fragilizados. É esse pessoal que muitas vezes tem a escada empurrada por essa burocracia meio irracional”, completa.


Em debate

O Portal EPSJV/Fiocruz entrou em contato com a assessoria de comunicação do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) solicitando um posicionamento sobre a homologação das diretrizes pelo MEC. Segundo a assessoria, um grupo de trabalho foi criado dentro do Fórum de Dirigentes de Ensino do conselho para analisar as novas diretrizes, mas o trabalho não foi concluído. Depois desta etapa, o parecer do GT será analisado pelo plenário da entidade – e só então o conselho deverá se manifestar sobre o documento.

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