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Discussão sobre longas jornadas de trabalho dos técnicos em radiologia chega ao STF

Supremo nega recurso do estado do Ceará e reafirma legislação de proteção à radiação para os profissionais da área. Baixa remuneração, falta de editais específicos para contratação do profissional e até avanços na proteção são fatores de pressão por mudanças. Especialistas discutem os riscos
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 27/06/2019 10h08 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Era 26 de abril de 1986, quando a Ucrânia, na antiga União Soviética, foi cenário do maior acidente nuclear da história da humanidade. A explosão de um reator seguida de um incêndio na Usina Nuclear de Chernobyl liberou no ar diversos elementos radiativos perigosos – estrôncio 90, iodo 131 e césio 137. Como consequência direta do acidente, morreram 31 pessoas. Mas os efeitos da radiação a longo prazo – como câncer e mutações genéticas em recém nascidos – condenam até hoje outras milhares de pessoas a uma vida de sofrimento. Mais recentemente, o desastre foi relembrado pelo roteirista Craig Mazin na série de televisão ‘Chernobyl’, tornando-se um sucesso absoluto de público e crítica.

Apesar dos efeitos nocivos da exposição aos materiais radioativos, as radiações ionizantes – um tipo de energia natural – possuem muitas aplicações benéficas, dentre elas, no campo da saúde. Com uma formação feita majoritariamente por instituições privadas, os profissionais de radiologia exercem importantes funções no Sistema Único de Saúde, o SUS. São os responsáveis, por exemplo, pela realização de exames radiográficos, tomográficos, mamográficos e ressonâncias magnéticas, embora esse último não faça uso dessa radiação.

Os raios X são usados em exames de imagens para avaliar as condições de órgãos e estruturas internas, como o pulmão, para pesquisar fraturas e para acompanhar a evolução de tumores e doenças ósseas. E justamente pela capacidade de penetrar a pele que os raios X devem ser manuseados com precaução pelos profissionais das técnicas radiológicas que operam esses equipamentos. Segundo especialistas, a exposição prolongada pode provocar alterações do material genético e levar à formação de células cancerígenas.

A preocupação com o tempo de exposição desses profissionais à radiação chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 22 de maio, a mais alta corte do país negou recurso movido pelo estado do Ceará, que adotava 30 horas semanais de trabalho. A decisão da ministra Rosa Weber foi manter a carga horária dos profissionais das técnicas radiológicas cearenses em 24 horas, seguindo a lei 7.394, de 1985, e o decreto 92.790, de 1986. As normas regulamentam o exercício da profissão de técnico em radiologia.

Batalha judicial

A discussão teve início em 2016, quando o estado do Ceará determinou que os servidores públicos da área cumprissem 30 horas semanais, seis a mais do que o permitido. Os trabalhadores reagiram. Depois de receber diversas denúncias, o Conselho Regional de Técnicos em Radiologia do Ceará (CRTR2) entrou na Justiça para garantir a jornada de trabalho prevista por lei. “Tentamos um acordo com a secretaria estadual de Saúde. Sem êxito, ajuizamos o processo", lembra Salomão de Souza Melo, presidente do CRTR2. A batalha judicial entre gestores e trabalhadores começou na primeira instância, no Tribunal Regional Federal da 5ª região, em Recife. Lá, o juiz determinou que tanto o estado quanto os municípios cearenses teriam que cumprir a legislação. Novamente o Ceará recorreu e o processo foi remetido diretamente o STF, responsável por arbitrar disputas que envolvem estados da federação. "E o Supremo negou o recurso”, comemora Salomão.

Problema recorrente

Essa não é a primeira vez que as longas jornadas de trabalho dos técnicos em radiologia vão parar na Justiça. Casos semelhantes já apareceram no país. Em sua maioria, contra o setor público – fato que pode ser explicado porque a maior parte dos concursos não têm perfil de 24 horas, exceto quando específicos para área da radiologia ou a área militar, na qual o profissional cumpre 40 horas semanais, mas apenas 24 na função radiológica e o restante desempenhando atividades de caráter administrativo.

Em 2018, o Conselho Regional de Técnicos em Radiologia de Pernambuco (CRTR15) moveu uma ação contra aquele estado, que realizou um concurso público para a contratação desses profissionais, com salário de R$ 678, sem adicional de insalubridade e carga horária de 40 horas semanais. À época, a Justiça mandou corrigir o edital e aplicar a legislação federal que regulamenta a profissão.

Histórico de controvérsias

Segundo o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Sergio Ricardo de Oliveira, o trabalho do técnico em radiologia começa com o uso do equipamento de raios X no início do século 20, mas somente em 1950 é assinada a lei 1.234,  que determinou a carga horária dos trabalhadores em 24 horas semanais. Ao longo dos anos, a aplicação da lei gerou uma iniquidade no mercado de trabalho, pois a legislação não 'pegou' para o setor privado. “A legalidade só veio com a lei que regulamenta a profissão em 1985”, conta Sergio Ricardo, que explica: “A justificativa se pauta no risco. Tanto por recomendações da Comissão Nacional de Energia Nuclear, que é responsável pela proteção radiológica no país, quanto por conta de outros acidentes radiológicos que tivemos, ficou resolvido manter a carga de 24 horas semanais para os profissionais da radiologia diagnóstica, e para os operadores de uma maneira em geral”.

Depois de 1998, quando se instituiu uma política de proteção radiológica mais efetiva na saúde, a operação dos equipamentos passou a ter ainda mais controle. “O que a gente observa é que cada vez temos mais dispositivos e mecanismos de segurança e mais elementos de proteção em para o trabalhador”, ressalta o professor-pesquisador da EPSJV. Porém, mais controle derivou o debate para a redefinição dos tempos máximos de exposição. “Na medida em que aumentou o controle sobre a segurança operacional do trabalhador, abriu-se um precedente para a alteração da carga horária, porque o risco é menor do que no passado”.

Há cerca de três anos, a lei 7.394 passou por uma revisão e um dos tópicos polêmicos foi a obrigatoriedade de os técnicos de radiologia operarem equipamentos de radiação ionizante na área da odontologia, contrariando os profissionais que alegam que a contratação aumentaria muito o custo dos consultórios. “Os dentistas alegaram que o técnico em saúde bucal poderia atuar nesses casos. E a briga de poder entre os dois lados direcionou para uma questão muito mais de processo de trabalho e de com quem fica o direito de operar os equipamentos”, comenta. A questão chegou até o Conselho Federal de Odontologia, que questionou o fato de os técnicos em radiologia trabalharem somente as 24 horas se hoje os riscos são muito menores.

Receber o mesmo para trabalhar igual?

Outro motivo de discussão na categoria são os esquemas em que a carga horária semanal máxima é cumprida. Segundo Sergio Ricardo, há trabalhadores que  fazem plantões de 12 ou 24 horas, exposição considerada excessiva e perigosa. “O certo seria dividir a carga ao longo dos dias. Entretanto, por questões financeiras e políticas, dentre outras, o trabalhador que vai cumprir apenas quatro horas por dia vai fazer o que nas outras horas restantes?”. Na prática, aponta ele, a maioria desses profissionais tem dois ou mais empregos, ultrapassando 40 horas semanais.

A possibilidade da ampliação da jornada de trabalho tem ligação com o aumento salarial, outra luta antiga da categoria. “Se hoje, em tese, o salário é compatível com o tempo de trabalho que ele realiza, teremos que fazer essa discussão também”, identifica Sergio Ricardo.

Formas de segurança

Mas qual a forma de proteger profissionais, pacientes e acompanhantes dos perigos da radioatividade? Desde 1998, a segurança desses grupos está garantida pela portaria 453, do Ministério da Saúde. Nela há uma série de diretrizes básicas de proteção radiológica em radiodiagnóstico médico e odontológico. Sérgio exemplifica: “O técnico de radiologia não pode conter o paciente durante o procedimento, quando é necessário segurar um idoso ou uma criança, por exemplo, porque se ele fizer isso durante toda a carga horária, vai se expor todas as vezes. Essa responsabilidade tem que ser do acompanhante, que utilizará um avental de chumbo e protetor de tireoide”.

O trabalhador também utiliza esses dispositivos quando faz uso dos equipamentos em espaços fora das salas controladas com barreiras que garantem o mínimo de exposição.

Outra proteção é garantida pelo dosímetro de radiação, um dispositivo que o técnico utiliza preso ao corpo que verifica os níveis de radiação e mostra se o profissional está exposto a uma taxa maior do que a permitida – 0,1 milisieverts (mSv). “Quando os fiscais verificam que algum centro de imagem está negligenciando a radioproteção e a biossegurança, a gente faz uma notificação ao Ministério Público do Trabalho e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa”, acrescenta o Salomão de Souza Melo, presidente do CRTR2.

Importância da formação

Segundo Sergio Ricardo, processos formativos também podem ser considerados um componente essencial para garantir a segurança e a proteção radiológica. Desde 2012, a Escola Politécnica promove cursos no campo da radiologia. Iniciada em junho de 2019, a especialização técnica de nível médio em mamografia tem objetivo de aprofundar essa técnica. Com previsão de início em julho deste ano, o curso de atualização profissional em biossegurança e boas práticas laboratoriais tem o objetivo de capacitar profissionais de instituições de saúde. “Na medida em que a gente passa a fortalecer a educação desse profissional, ele entende também a real necessidade da proteção”, conclui Sergio Ricardo.

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EPSJV/Fiocruz é uma das poucas instituições públicas que oferecem o curso técnico em radiologia, além de várias especializações na área, que se torna cada vez mais importante para o atendimento à população no SUS