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Do seguro à Seguridade Social

Constituição Federal de 88 integra saúde, previdência e assistência
Juliana Chagas, Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2008 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Quando a Constituição de 1988 introduziu pela primeira vez na legislação o termo ‘Seguridade Social’, a intenção era reformular o sistema brasileiro de políticas sociais e criar um conjunto de ações integradas entre previdência, saúde e assistência, baseado na universalidade e na equidade. O que se pretendia era superar a ideia de seguro social e introduzir a noção de que certos benefícios não precisavam depender de contribuições dos cidadãos. “A Seguridade Social considera que os riscos são sociais e propõe um pacto em que todos, com ou sem vínculos de trabalho, são incluídos mediante o financiamento público”, explica Ligia Bahia, vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes).

O início da Previdência Social no Brasil foi marcado pelo surgimento das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), nos anos 20. O professor Elias Jorge, diretor do Programa da Área de Economia da Saúde e Desenvolvimento do Ministério da Saúde, lembra que, nos anos 30, surgiram os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), que davam cobertura a trabalhadores de diversos segmentos e absorveram a maior parte das CAPs. Em 1966, os IAPs foram unidos no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que ainda mantinha a idéia de seguro social: os benefícios estavam restritos aos trabalhadores do mercado formal que fossem contribuintes.

Essa configuração, segundo Elias Jorge, deixava clara a separação entre uma assistência médica integral para os trabalhadores formais e um atendimento filantrópico para pobres e indigentes. “Eles sofriam uma dupla punição: além de excluídos da atividade econômica, eram também excluídos da cobertura do Estado”, afirma.

Gestão integrada

A Constituição Federal (CF) de 1988 estabelece, em seu artigo 194, que “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. O professor Marcus Orione, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), lembra que, apesar de a legislação anterior à Constituição Federal trazer disposições sobre previdência, assistência e saúde, a ideia de integração entre esses setores nunca havia sido posta. “Constitucionalmente, a ideia de segurança atrelada a essa integração e à perspectiva de políticas públicas ligadas a direitos sociais surgiu apenas em 1988”, explica.

Para Maria Lúcia Vianna, professora do Instituto de Economia Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos problemas do texto foi não ter implementado uma gestão integrada, com orçamento e ministério únicos. “Se isso fosse feito, os recursos poderiam ser utilizados na área que precisasse mais”, explica.

De acordo com Marcus Orione, a iniciativa de formar um sistema integrado partiu de uma movimentação intensa da esquerda brasileira na época da promulgação. O professor também explica que a Constituição reconhece a participação do setor privado no sistema de Seguridade ao considerar as ações de seguridade como iniciativa dos poderes públicos e da sociedade. “Isso significa que tanto o poder público quanto o privado estão em uma dimensão de Seguridade Social. Assim, quando se pensa em previdência complementar ou saúde suplementar, áreas em que é comum a atuação do setor privado, isso não está divorciado de um projeto de Seguridade Social. O problema é quando os interesses da iniciativa privada se sobrepõem ao interesse geral da coletividade. Buscando evitar isso, a Constituição criou uma legislação intensa em torno desses negócios”, afirma Marcus.

Mas, para Ligia Bahia, a Constituição é ambígua no que diz respeito ao setor privado assistencial e omissa quanto às empresas de planos e seguros privados de saúde. “Os preceitos constitucionais de complementaridade do privado, desde que observadas a lógica pública e a não transferência de recursos públicos para o privado, não foram cumpridos. Na realidade, as despesas públicas envolvidas com o financiamento de estabelecimentos privados e empresas de planos e seguros de saúde têm sido ampliadas”, alerta, ressaltando inconstitucionalidades como a dupla porta de entrada de hospitais estatais. “Já há quem diga que esse acinte à Constituição representa um aprimoramento do SUS, como se, com o passar do tempo, se houvesse descoberto uma fórmula para que pela porta da frente entrem, sem fila, os que ‘pagam’, e, pela dos fundos, após longos tempos de espera, o ‘público’”, afirma.

Princípios

A Seguridade Social é, de acordo com Marcus Orione, um sistema baseado na solidariedade. “Esse é o princípio fundamental. O sistema é custeado para que se tente fazer uma redistribuição social de renda entre as diversas gerações. A ideia é estabelecer, entre as gerações presentes, passadas e futuras, um eixo de contribuição de tal forma que isso se alargue no tempo, para que as populações não fiquem desatendidas”, explica. Maria Lúcia Vianna destaca um princípio que nem sempre é entendido com clareza: o da “universalidade da cobertura e do atendimento”, posto na Constituição como um dos objetivos da seguridade. “O sistema é, por definição, universal, o que não quer dizer que não haja critérios para o recebimento do benefício. O caso da previdência é exemplar: para ter direito ao recebimento, é preciso estar inscrito em uma determinada categoria de contribuintes. Mas isso não significa que ela não seja universal, porque qualquer pessoa pode se filiar ao sistema de previdência. Essa é uma situação estruturalmente diferente daqueles sistemas não universais, como o da previdência do servidor público, que é restrita apenas a servidores”.

Atrelada à universalidade, está a ideia de equidade, tanto no atendimento como no custeio. “A Constituição busca a igualdade de tratamento entre as pessoas, mas sempre observando que as diferenças de alguns devem ser atendidas”, lembra Marcus. Para ele, universalidade e equidade são princípios interessantes, porque, nos anos 1980, grande parte dos países estava migrando para políticas públicas focalizadas, enquanto o Brasil optou pela “seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços”, o que está expresso no artigo 194. “Fala-se muito em escassez de recursos financeiros. Por conta disso, em geral o mundo tendeu a escolher um ou outro serviço e uma ou outra população para ser beneficiada. A Constituição de 88 não desejou isso, a priori. Ela se pautou na universalização e, quando há serviços específicos para pessoas específicas, como o salário mínimo para pessoas com deficiência, isso é indicado pela própria carta constitucional. A ideia é que o sistema de Seguridade seja para todos, indistintamente, e que se alcance o maior número de pessoas possível no maior número de situações adversas possível”, explica Orione.

Financiamento

O capítulo da Seguridade na Constituição estabelece três fontes de receitas para o setor: contribuições dos trabalhadores, dos empregadores (incidentes sobre a folha de salário, sobre o faturamento e o lucro) e ainda sobre a receita de concursos de prognósticos (loterias). Mais tarde, foi criada ainda a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), voltada especificamente para a saúde.

Para Elias Jorge, o maior problema no financiamento da Seguridade é a desvinculação de recursos feita sistematicamente desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Com a DRU (Desvinculação de Recursos da União), 20% da arrecadação da União podem ser usados com liberdade pelo governo, não necessariamente para os setores a que deveriam atender. “Por isso, acho que temos muito pouco a comemorar e muito com que nos preocuparmos nesse 20º aniversário da Constituição e do SUS. Temos que comemorar a sobrevivência a todos os solavancos até agora, mas devemos nos preocupar com a manutenção dessa rede de proteção social, duramente construída e arduamente mantida, sempre com ameaças de crise a partir do desfinanciamento”, diz. Ele garante ainda que o conjunto de contribuições originalmente previstas para a Seguridade seria suficiente para manter um superávit no setor. “Hoje, a arrecadação proveniente dessas contribuições é superior às despesas do governo com Seguridade”, afirma, completando que a desvinculação desses recursos, por meio da DRU, é o que atrapalha o financiamento.

Recentemente, o senado aprovou o fim da DRU para os recursos da educação. De acordo com Ligia Bahia, é preciso lutar para que isso aconteça também na Seguridade, embora ela ache que isso só será possível quando a Seguridade estiver entre as prioridades do governo e de empresas. “A desvinculação é, evidentemente, uma política macroeconômica fortemente voltada para as exigências de ajuste fiscal, e não dos requerimentos do bem-estar social. A educação é uma prioridade do governo e começa a se tornar também um ponto importante na agenda das grandes entidades de representação dos empresários: com o crescimento do mercado formal de trabalho, a noção de que o Brasil precisa contar com mão-de-obra qualificada ganha destaque. Nosso problema é que a Seguridade ainda não adquiriu esse status”, opina.

Previsões

O sistema de Seguridade, tal como a Constituição previa, não chegou a se instaurar. Segundo Ligia Bahia, logo após a promulgação já se dizia que o texto era inviável. “O próprio Sarney, presidente da República na época, fez coro com quem afirmava que havíamos aprovado um conjunto de direitos sem garantias de financiamento. Mas, na verdade, as diretrizes constitucionais que diziam respeito ao financiamento para a Seguridade foram desrespeitadas”, diz, lembrando que a Seguridade perdeu parte dos recursos inicialmente previstos.

Além disso, a reforma administrativa do governo Collor criou o Ministério do Trabalho e Previdência Social, o que consolidou a permanência da fragmentação. Isso preserva o distanciamento entre contribuintes e não pagantes e, para Ligia, essa é uma grande derrota. “É um problema que a Constituição pretendeu superar. Nos anos 1970 e 1980, o que se debateu foi a necessidade de adotar um sistema baseado em critérios de real participação da sociedade, porque não faz sentido supor que quem não trabalha com carteira assinada não contribui.

Daí a necessidade de um sistema único e integrado cujos benefícios atinjam toda a população. No entanto, não conseguimos fazer isso. Continua a ideia de que é natural que os ‘pobres’ sejam tratados por um sistema diferente daquele organizado para atender a quem tem vínculo formal com o mercado de trabalho”, lamenta.