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Educação: ferramenta da luta política

Mesa organizada pela EPSJV/Fiocruz mostrou que a "inovação" é uma escola aberta à s experiências e lutas dos trabalhadores de todo o mundo.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 01/06/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47
Se o 3º Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica trouxe uma visão predominantemente mercadológica da ‘inovação’, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (ESPJV/Fiocruz) fechou sua participação no evento, no dia 29, debatendo outros sentidos para a escola ‘inovadora’. A partir de três cursos de especialização voltados para a formação de docentes na educação profissional, foram apresentadas as experiências e lutas dos trabalhadores dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e um projeto da Escola que foi pensado como alternativa à licenciatura para os professores dos cursos técnicos.

Formação na África

O Curso de Especialização em Educação Profissional em Saúde foi voltado para professores e dirigentes dos Palop. Teve início em fevereiro de 2011, na Guiné Bissau, e terminou no Rio de Janeiro, em dezembro do mesmo ano. O curso, que formou 27 alunos, começou em 2011, no bojo da atuação da EPSJV como Secretaria Executiva da Rede Internacional de Técnicos em Saúde (RETS) no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). O projeto foi construído coletivamente por profissionais da pós-graduação e da cooperação internacional da Escola em mais de um ano de trabalho. “Queríamos ir além do que os relatórios das agências internacionais dizem da África e conhecer como a África se diz”, lembrou, completando: “Nesses relatórios, a África é sempre o lugar da falta e isso nos incomodava muito, pois invisibilizava que lá há pessoas que produzem conhecimento e formas de viver”, disse Anakeila.

A mesma vontade de conhecer melhor a realidade africana moveu a criação do Seminário de Integração, módulo do curso em que, ao longo do ano, os alunos se debruçaram sobre as principais características e entraves da educação profissional técnica em seus países, levando em consideração a configuração histórica dos sistemas de saúde. “A ideia era que os alunos pudessem desenvolver uma compreensão histórica dessas políticas, sendo capazes de implementar práticas transformadoras que contribuíssem para a estruturação e consolidação das instituições públicas de formação de técnicos em saúde em seus países”.

"Conseguimos nos manter como escola técnica"

Maram Mané, diretora da Escola Nacional de Saúde de Guiné Bissau, única instituição do país que se dedica a formar técnicos em saúde, falou da sua experiência como aluna do curso e como identifica outro tipo de ´inovação´, presente em sua atuação profissional e política. "Quando somos convidados a fazer um curso, observamos a concepção das pessoas que o montaram, que ideias elas têm em relação ao contexto africano. Na maior parte das vezes, você sai do seu país, com financiamento do Banco Mundial, da Unesco, para estudar algo que não tem nada a ver com a sua realidade. E quando você retorna, tudo naquela realidade da qual você faz parte te parece estranho. Nessas formações, prevalece a concepção do 'a gente veio para ajudar', 'a gente sabe mais', mesmo que as propostas não levem a lugar nenhum, pela distância das realidades", relatou Maram, lembrando que o descolamento das agências chega ao cúmulo de financiar cursos em francês para estudantes falantes de português. Para ela, a dimensão inovadora do curso da EPSJV se notou desde no acolhimento aos estudantes. "Logo do início, me chamou atenção a fala da coordenadora do curso, que dizia: 'Espero que, cada vez menos, vocês precisem solicitar ajuda de países estrangeiros para estruturar as instituições, rever currículos, e cada vez mais compartilhem o conhecimento que produzem sobre a realidade que vocês vivenciam".

Segundo Maram, a atuação das agências internacionais e da cooperação desenvolvida por alguns países no continente africano é marcadamente impositiva. Além de não considerar a autonomia e protagonismo locais, há ainda uma quebra e mesmo desmonte nas políticas que vem sendo desenvolvidas de forma mais estruturante por tendências que surgem de fora. Exemplo recente é o que caracterizou como “o discurso internacional de ênfase no ensino superior”. Segundo ela, Portugal recentemente fechou todas as escolas técnicas, num movimento que descarta, por exemplo, a figura do técnico em enfermagem. "A influência portuguesa chegou a Cabo Verde, onde o governo fechou oficialmente a escola técnica e colocou a Escola Nacional de Saúde dentro da universidade. O governo também assinou um decreto obrigando os técnicos a fazer o complemento para o ensino superior".

O mesmo ia acontecendo em Guiné Bissau, relatou Maram. Há menos de seis meses, uma nova ministra da Educação assumiu o cargo decidida a integrar a escola à universidade. "Conseguimos nos manter como escola técnica. Mostrei que tínhamos um Plano Nacional de Desenvolvimento dos Recursos Humanos aprovado, que valoriza a formação técnica até 2017. Aliás, todos os países Palop tinham um plano de RH, mas os financiadores não levam isso em consideração. Hoje, a ministra está defendendo os técnicos”, lembrou ela, completando: “O curso me deu bagagem para discutir os processos, atuar de maneira crítica em relação à realidade. Às vezes, você pode estar certo, mas se não tem um bom argumento de base, não vai poder contrarrestar a força dos financiadores”.

“O Movimento está o tempo todo refletindo sobre sua luta”

O curso de Especialização em Trabalho, Educação e Movimentos Sociais foi uma demanda do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) à EPSJV. O contexto dessa formação se vincula ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). Anakeila Stauffer explicou que se a criação do Pronera desencadeou a expansão dos cursos, mas isso gerou uma "miríade de formulações teóricas" que, muitas vezes, não davam ferramentas tanto teóricas quanto políticas para a luta dos trabalhadores por terra. "Há instituições que oferecem uma formação que deslegitima os saberes e experiências dos trabalhadores. Mas o Movimento está o tempo todo refletindo sobre sua luta, suas conquistas e como essas conquistas são cooptadas pelo Estado brasileiro", disse ela.

O curso, de 654 horas, foi dividido entre tempo escola e tempo comunidade, como tradicionalmente o Movimento organiza suas formações. Isso porque os alunos são militantes, dirigentes e responsáveis pela educação e formação do MST e, ao voltar para seus assentamentos, espalhados no país inteiro, precisavam tocar suas tarefas em paralelo aos estudos. Dadas essas características, o comprometimento com a conclusão do curso se evidenciou ainda na primeira turma: de 50 inscritos, 42 terminaram a formação. A segunda turma, também com 50 estudantes, está na fase de apresentação dos trabalhos de conclusão.

Outra necessidade, identificada pelo MST e pela Escola, era fugir da armadilha de facilitar o conhecimento, fragmentá-lo em ‘doses homeopáticas’, sob o risco de banalizá-lo. Nesse sentido, a EPSJV contou com a contribuição de grupos de pesquisadores marxistas de todo o país, especialmente de professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Docência de Educação e Trabalho na Saúde

André Feitosa, coordenador do curso de Especialização em Docência na Educação e Trabalho na Saúde, recuperou o contexto histórico da formação de professores para cursos técnicos. “No Brasil, o que vigora na educação profissional no geral é aquilo que origina a relação mestre/aprendiz, ou seja, o docente domina determinados conhecimentos técnicos, que ‘transmite’ para seu aprendiz. O que finca raízes é o modelo das oficinas e, na medida em que a educação profissional se transfere da oficina para o espaço escolar, percebemos que a formação daquele mestre tem que ir além dos conhecimentos técnicos e científicos. Na escola, outras questões se apresentam e esse profissional que ensina no curso técnico é negligenciado em discussões importantes, como a do projeto político pedagógico, por exemplo”.

Segundo ele, a formação docente é questão recorrente nos grandes programas de formação profissional na área da saúde – como Larga Escala, Profae e, atualmente, o Profaps – mas o problema é que a formação de professores foi historicamente encarada como demanda de programas pontuais, com determinado prazo de duração. “A formação docente é uma questão que deve ser encarada continuamente. Ainda hoje no Brasil existem poucos cursos de licenciatura na área da saúde”, disse. Feitosa lembrou ainda que as diretrizes curriculares para a educação profissional em saúde estabelecem que, até 2020, nenhum professor poderá lecionar nos cursos técnicos sem a adequada formação pedagógica. “Para além das licenciaturas, a EPSJV apostou no formato da especialização. O Conselho Nacional de Educação aprovou o projeto em 2009, como equivalente a uma licenciatura”, informou.

O curso, com 800 horas, ofereceu a primeira turma em 2013. O currículo é baseado em quatro eixos: 'Trabalho e Educação em Saúde'; ‘Pedagógico’; ‘Políticas sociais’; e 'Ciência e pesquisa'. Feitosa afirmou que dos 20 alunos que ingressaram na formação, apenas metade concluiu o curso. Segundo ele, foram diversos os motivos da evasão, geralmente ligados às demandas da atuação profissional dos alunos, e que alternativas, como a possibilidade de trancar e retomar a formação em outro momento, estão sendo estudadas pela EPSJV.