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Educação na linha de frente

Pesquisadores, educadores e trabalhadores dos serviços analisam a importância de uma formação com base na ciência e nos princípios do SUS para os profissionais que estão no enfrentamento da pandemia
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/06/2021 00h10 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Sambista formado na rua, Noel Rosa cantou em verso que ninguém aprendia samba no colégio. É verdade que os tempos não andam para poesia, mas, numa paródia trágica, os profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à pandemia bem poderiam lembrar que também não aprenderam Covid-19 na escola.

Um vírus novo, descobertas que foram sendo feitas ao longo do processo, mudanças de protocolos, variantes que surgiram em meio ao caos: a maior crise sanitária da história recente não estava prevista no currículo de nenhum curso técnico ou graduação. Mas, ao contrário do que se possa imaginar, os pesquisadores, professores e trabalhadores da ponta ouvidos nesta reportagem são unânimes em reconhecer que a formação que se tem ao longo da vida, desde a educação básica até a especialização profissional, faz toda a diferença num momento como este. “É importante demais o profissional ter uma base educacional bem forte”, resume Catia Benevides, professora do curso técnico de radiologia da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), uma área fundamental no diagnóstico e tratamento da Covid-19.

Entender o que se faz

Quando Daniela da Silva concluiu o ensino médio e, junto com ele, o curso técnico de análises clínicas, o mundo ainda não tinha ouvido falar em Covid-19. Mesmo assim, entre os várias conteúdos que compunham as 1.800Raquel Portugal/Fiocruz horas da habilitação técnica integrada ao ensino médio, ela destaca o tanto que aprendeu sobre biologia molecular e virologia, conhecimentos organizados em disciplinas próprias mas também distribuídos em vários outros módulos do curso e que, segundo a futura farmacêutica, têm sido fundamentais no trabalho que está desenvolvendo em dois lugares: na Fiocruz, e no HemoRio, ambos centrados no diagnóstico de Covid-19 por RT-PCR. “Existem metodologias e condutas de biossegurança que são importantes para manter a gente segura e as amostras viáveis. Se o profissional não entende a motivação, ele acaba banalizando isso, acha que é uma frescura, que é um exagero”, conta, argumentando que, pela sua observação, a linha divisória desse comportamento é a maior ou menor fundamentação teórica que os profissionais têm sobre o trabalho que estão realizando.

Ela exemplifica: “As amostras precisam ficar numa temperatura certa. Se esquecerem de colocar o gelo durante o transporte ou enquanto está na bancada aguardando algum tipo de processo, o vírus pode desnaturar e a gente não consegue achá-lo mais. Ou seja, dá um falso negativo por um erro de quem não compreende o que está acontecendo ali dentro da amostra”.

Problema semelhante pode acontecer numa outra técnica que foi usada também para diagnóstico de casos mais graves de Covid-19 em meio à pandemia. Segundo Catia Benevides, embora a imagem de um pulmão atacado pelo novo coronavírus seja facilmente reconhecível, um raio-X ou uma tomografia mal feitos também podem gerar um resultado em aberto – num contexto em que a confirmação rápida é importante para controlar o avanço da doença e o processo mais amplo de vigilância epidemiológica. “O profissional precisa saber muito de anatomia geral, posicionamento técnico e técnicas radiológicas, além de conhecer o equipamento com que está trabalhando”, resume.

Com o crescente desenvolvimento tecnológico, conhecer os aparelhos requer um processo de formação continuada que se dá também a partir dos serviços. Já o domínio das técnicas pressupõe a informação sobre os protocolos de cada exame, que podem variar de acordo com a indicação médica, mas precisa estar articulado com outros conhecimentos que permitam ao profissional adaptá-las a cada situação específica. E, segundo Benevides, aqui contam, com grande peso, os fundamentos que cada um carrega, por exemplo, sobre a anatomia do corpo humano. “Se eu fizer uma radiografia de tórax numa criança com a mesma técnica que faço de um adulto, não consigo ver nada porque fica muito preto”, exemplifica. Claro que qualquer profissional pode decorar essas mudanças de procedimentos, mas compreender o porquê delas é um passo que está muito além.

E a pandemia atual trouxe suas particularidades. “O paciente pode estar com dificuldade respiratória e isso ainda complica mais a vida do profissional”, diz Benevides, completando: “Aí entram conhecimentos específicos para que se possa colher uma imagem satisfatória. Hoje a gente tem aparelhos de tomografia que fazem aquisição de imagem em cinco segundos. Em geral, a gente coloca o paciente deitado na máquina para colher a imagem da cabeça para o pé. Mas quando o paciente tem dificuldade respiratória, a gente pode fazer o contrário: iniciar do pé para a cabeça, porque a principal área que a gente precisa visualizar é a parte inferior, já que a pneumonia por Covid-19 acomete primeiramente as bases do pulmão. Então, se o paciente já não conseguir prender a respiração por muito tempo, o principal da imagem eu já peguei”.

Acervo EPSJV/FiocruzDe acordo com a professora, todo esse movimento – e outros que podem contribuir em meio a uma crise sanitária como a atual – depende de conhecimentos “mais apurados” que uma formação instrumental e aligeirada não é capaz de oferecer. E como a Covid-19 é uma doença que comumente ataca o pulmão, esses exames são fundamentais não apenas para o diagnóstico, mas também para o acompanhamento dos pacientes. Lembrando que eles emitem radiação ionizante, que pode causar uma série de problemas de saúde – ampliando, por exemplo, as chances de desenvolvimento de câncer –, Benevides reforça que não errar é fundamental. “É muito importante o profissional ter conhecimento técnico e científico para que se utilize de posicionamento e técnicas adequadas e específicas para indicação no exame, para que não haja necessidade de repeti-lo”, explica. E contextualiza: “A exposição inadequada e repetitiva de um paciente com Covid-19, que está passando por uma situação complicada, com seu corpo debilitado e sua imunidade baixa, pode sim trazer prejuízo à saúde”.

Em todas essas atividades, destaca-se também a importância das medidas de proteção ao próprio profissional. De acordo com Milta Torrez – enfermeira e doutora em educação, que participou de duas experiências de formação em massa de trabalhadores de nível médio, o Larga Escala e o Profae (Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem) –, os fundamentos da biossegurança são muito importantes na rotina dos trabalhadores que estão mais na linha de frente da assistência à saúde na pandemia: aqueles de nível superior e técnico da área de enfermagem. Segundo ela, que se encontrou virtualmente com trabalhadores da área antes de dar entrevista à reportagem para reunir impressões do momento, relatos apontam, inclusive, a necessidade de supervisão desses procedimentos de biossegurança como uma tarefa a mais, que agrava o cenário de cansaço, adoecimento e redução das equipes.

“Ninguém é capaz de dizer que uma formação profunda e mais ampla não seja absolutamente necessária. Todas as pessoas com quem conversei remontam aos tipos de currículo e ao tipo de experiência obtida na sua formação como algo absolutamente produtor do diferencial na hora que se deparam com um contexto como esse atual”
Milta Torrez

De fato, esse é um debate particularmente importante para a categoria que responde pelo maior número de profissionais de saúde mortos pela Covid-19 no Brasil: segundo os últimos dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), de fevereiro deste ano, foram mais de 560 enfermeiros, auxiliares e técnicos dizimados pela doença – uma curva que tinha estabilizado no final de 2020 e voltou a crescer em janeiro de 2021. “Ninguém é capaz de dizer que uma formação profunda e mais ampla não seja absolutamente necessária. Todas as pessoas com quem conversei remontam aos tipos de currículo e ao tipo de experiência obtida na sua formação como algo absolutamente produtor do diferencial na hora que se deparam com um contexto como esse atual”, relata Torrez.

Capacidade de adaptação ou criatividade?

Claro que, mesmo com qualidade, sozinha a formação não garante todas essas boas práticas. A falta de equipamentos de proteção individual (EPI) suficientes para os profissionais de saúde no início da pandemia, fartamente noticiada, foi um exemplo concreto (e trágico) dessa limitação – que, aliás, não é propriamente uma novidade. “A enfermagem é uma profissão marcada pelo improviso. Mas improvisar nem sempre era sinônimo de criatividade”, aponta Milta Torrez, que rememora uma “invenção” da sua categoria num passado não muito distante: “As auxiliares de enfermagem davam um nó [no lençol embaixo do colchão] e as enfermeiras queriam matá-las”, brinca. “Mas era uma criatividade fantástica: não criava escara [no paciente], não fazia ruga e ela não tinha que estar toda hora lá esticando e se descadeirando”, completa. Ela lamenta que, historicamente, a capacidade de improviso dessas profissionais tenha levado a uma certa naturalização da falta de “condições dignas de trabalho”. Mas pondera: “O improviso, quando é criatividade, faz toda a diferença”.

E isso vale também para agora, no enfrentamento da pandemia. A ex-aluna da EPSJV/Fiocruz, por exemplo, conta que em outro lugar onde ela também trabalha com análise de amostras, o fato de os aparelhos utilizados serem mais antigos e de não receberem kits de diagnóstico de PCR prontos acaba exigindo mais de quem está nessa missão. “Se a gente não souber qual a função de cada coisinha que tem no kit, não consegue montar o nosso, não consegue adaptar e sair dali com um resultado confiável”, diz.

Independentemente da falta de materiais que se tornou parte da tragédia da pandemia no país, a área de análises clínicas, pelo grau de automatização que atingiu, é sempre suscetível a uma simplificação da formação – como uma espécie de atualização da velha história dos trabalhadores treinados para apertar botões. Mas o professor do curso técnico de análises clínicas da EPSJV/Fiocruz, Leandro Medrado, explica que, mesmo nos exames mais ‘simples’, cuja leitura, de fato, é totalmente feita por máquinas, espera-se que o técnico seja capaz de identificar e corrigir erros. “Quando você faz a análise de dosagens bioquímicas no sangue, existem padrões que são comuns e tem um lastro de variação dos exames. Se descalibrar um daqueles elementos sutis do aparelho, ele pode começar a produzir números e diagnósticos equivocados em grande volume. Quando tem conhecimento do princípio que está ali por trás e do que está fundamentando aquele exame, o técnico vai perceber que tem alguma coisa errada, parar o processo e até indicar qual o problema”, descreve, completando: “Não só na pandemia, mas de uma maneira geral, faz muita diferença trabalhar com uma formação mais robusta, com fundamentação técnico-científica, para compreender não só como se faz aquela técnica num aparelho x ou y, apertando um botão, mas tudo que tem por trás dela”.

Mas que formação é essa, afinal?

Se chegou até aqui, você talvez tenha se convencido da importância de uma boa formação para a atuação dos profissionais que estão na linha de frente e na retaguarda da crise sanitária atual. A questão é que adjetivos genéricos como ‘boa’ e ‘de qualidade’ não dão conta do debate teórico e político que, desde muito antes de qualquer pandemia, educadores e pesquisadores da área travam sobre que formação deve ser essa.

Por isso, para Marise Ramos, doutora em educação e pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, depois de todos esses exemplos, é necessário fazer um alerta: na sua avaliação, diferente do que possa parecer, o inesperado da pandemia não confirma a prioridade de uma formação ‘flexível’, ‘polivalente’, que ensine o estudante a ‘mobilizar recursos’ para se adaptar a situações inusitadas e solucionar problemas – como prega a cartilha das pedagogias que têm influenciado as principais políticas educacionais no país.

"São os conhecimentos clássicos que permitem reagir melhor ao novo, ao que não estava aprendido antes"
Marise Ramos

Ao contrário: segundo ela, a crise sanitária demonstra que a dita “competência” dos profissionais depende muito mais de uma boa base científica, que não abra mão dos chamados conhecimentos clássicos, entendidos como “aqueles cujos fundamentos permanecem quando as mudanças acontecem”. “São esses conhecimentos que permitem reagir melhor ao novo, ao que não estava aprendido antes”, resume Ramos.

Para a pesquisadora, a pergunta sobre qual formação permite o melhor enfrentamento de uma situação nova e imprevisível como a pandemia remete a um conceito que anda esquecido nas políticas educacionais e vai na contramão da ideia de uma ‘pedagogia das competências’ ou de uma ‘pedagogia da prática’: a politecnia. “Trata-se da educação que proporciona os fundamentos científico-tecnológicos da produção moderna”, resume, citando a clássica definição proposta pelo estudioso Dermeval Saviani. “Mas não existe ciência sem a dimensão cultural, que leva à mudança na vida das pessoas. Então a gente sabe que no científico estão embutidas as múltiplas dimensões da vida humana em sociedade”, completa.

Ramos explica que, pensada como um projeto mais amplo de educação e sociedade, a politecnia enfoca principalmente conhecimentos necessários de serem adquiridos na educação básica, dialogando, mas não se confundindo, com a profissionalização. São esses conhecimentos, diz, que num contexto de crise sanitária como a atual, permitem que o trabalhador compreenda questões mais amplas e estruturais do que as que dizem respeito à sua área de atuação, como, por exemplo, as determinações ambientais da doença, aspectos relacionados à relação entre o homem e a natureza e os interesses políticos e econômicos do complexo médico-hospitalar, entre várias outras.

É por reconhecer a importância de se articularem esses conhecimentos mais amplos com os fundamentos científicos de cada profissão específica, inclusive, que no Brasil o debate da politecnia está muito associado à defesa do ensino médio integrado à educação profissional, marca da Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e da própria EPSJV/Fiocruz. Mas isso não deve ser uma restrição, ao contrário: “As escolas e cursos que têm compromisso com a complexidade da base científica própria daquela profissão têm o germe da politecnia”, diz Ramos, confirmando a importância dos muitos exemplos que ilustraram esta reportagem.

Segundo ela, quando o aprendizado de uma profissão se dá de forma fundamentada e não instrumental, os “porquês” que se aprende a perguntar e responder acabam despertando a necessidade de outros conhecimentos, que vão aprofundando a base científica da atuação desses estudantes como cidadãos e como profissionais.

Talvez pareça chover no molhado essa insistência em lembrar que as ciências devem ser a principal base da formação geral e da educação profissional. Segundo Ramos, no entanto, as concepções pedagógicas que têm prevalecido no Brasil, com forte expressão na Reforma do Ensino Médio, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e nas novas diretrizes curriculares da educação profissional, só para ficar em alguns exemplos, seguem em outra direção: apostam no desenvolvimento de “esquemas mentais e comportamentais” que têm o objetivo principal de ajudar os estudantes, entre eles os trabalhadores, a buscarem “recursos” para resolver os problemas que aparecerem. “Esses recursos podem ser científicos ou não. Eles podem ter sido apreendidos formalmente ou serem buscados naquela situação, com mais ou menos tempo de procura. Pode perguntar ao colega do lado ou ir fazer uma pesquisa”, ilustra, explicando que, como todos esses esforços são válidos nas situações cotidianas, a formação de base científica amplia o leque e a efetividade das respostas. “A pedagogia das competências visa à resolução de problemas. O trabalhador pode ser, inclusive, eficiente e eficaz, dar respostas. Mas na perspectiva politécnica, o trabalhador é capaz de formular problemas. Essa é a diferença crucial”, compara.

A ‘ciência’ da saúde pública

Se a pandemia tem mostrado a relevância da ciência para a humanidade, no Brasil o enfrentamento da crise sanitária não tem deixado dúvidas também sobre a importância do Sistema Único de Saúde. E parece consenso entre os entrevistados desta reportagem que tanto um quanto outro são conteúdos e perspectivas imprescindíveis no currículo dos profissionais de saúde. “Lembra aquele conhecimento que você achava que era coisa para quem gosta de saúde para pobre? Que ninguém que vai ser um cara de ponta, um cirurgião, vai precisar? [A necessidade desse] conhecimento veio bater na porta de todo mundo”, diz Milta Torrez, referindo-se ao quanto a pandemia escancarou a importância de aprendizados relativos à saúde coletiva que muitas vezes o foco na especialização profissional desvaloriza.

Um bom exemplo, diz, são os conteúdos de epidemiologia, necessários até para que os profissionais consigam compreender os informes sobre a pandemia e a situação local. E ela alerta que, apesar de a tragédia atual tornar isso mais visível, essa carência na formação, quando existe, atrapalha o enfrentamento de muitos outros problemas de saúde pública. “Esses conhecimentos sustentavam [a atuação dos profissionais da saúde contra] tuberculose, hanseníase e tudo mais. Não é de hoje que esse conhecimento é necessário”, aponta.

Carla Cleto/Agência AlagoasA questão é que a falta desses conhecimentos não pode ser encarada como um problema individual – e a solução tem mais a ver com política de formação do que com a busca pessoal por qualificação. “Acho que um grande atraso nosso é essa possibilidade de construir uma política de formação de recursos humanos para o país adequada às suas necessidades”, analisa José Ricardo Ayres, professor do curso de medicina da Universidade de São Paulo (USP).

No que diz respeito aos fundamentos científicos da educação básica e da educação profissional, isso depende dos planos de curso elaborados pelas instituições de ensino e das diretrizes apontadas nas políticas educacionais. Já no que tange aos conteúdos de saúde pública nos currículos dos profissionais da área, existe um adendo: o artigo 200 da Constituição Federal estabelece que cabe ao SUS “ordenar a formação de recursos humanos na área da saúde”. Por isso, ao longo do tempo, muitos programas, políticas e até referenciais curriculares de cursos contaram com a participação e mesmo o protagonismo do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais e municipais e de instituições de ensino e pesquisa desse campo.

Ayres lembra que, na sua profissão, uma proposta nessa direção foi trazida pelo extinto ‘Mais Médicos’. “O Programa não queria só colocar mais médicos, era muito mais ambicioso. Tinha outros aspectos. E um deles era aumentar a formação dos médicos na área de atenção primária, regulando não só a porcentagem da carga curricular, mas também a residência, [garantindo] em qualquer área, um ano de atenção primária”, resgata.

De fato, a contratação de profissionais, pela qual o programa ficou conhecido, é tratada apenas no quarto capítulo da lei 12.871/2013, que instituiu o ‘Mais Médicos’. Dos oito objetivos listados, um fala em reduzir as desigualdades regionais na oferta de médicos e outro em fortalecer a prestação de serviços de atenção básica. Todos os demais tratam da formação, troca de conhecimentos e pesquisa: entre eles, está explícita a intenção de “ampliar a inserção do médico em formação nas unidades de atendimento do SUS, desenvolvendo seu conhecimento sobre a realidade da saúde da população brasileira” e “aperfeiçoar médicos para atuação nas políticas públicas de saúde do país e na organização e no funcionamento do SUS”. “Mas isso nunca foi implementado”, lamenta Ayres.

No caso dos médicos, ele avalia que, mesmo quando o estudante tem contato com o SUS, isso acontece principalmente pela atuação em hospitais. “É importantíssimo, mas não dá conta da grande demanda de saúde, que, entre 80% e 90% dos casos, pode ser resolvida na atenção primária”, pondera. Como se sabe, um debate que vem sendo travado no campo da saúde pública ao longo desse mais de um ano de pandemia é exatamente sobre o quanto hoje parece limitada a aposta na atenção hospitalar como principal resposta à Covid-19, subutilizando-se o potencial da atenção básica.

A ampliação desses conteúdos na formação tem sido um dos objetivos das últimas reformulações curriculares feitas no curso de medicina da USP, segundo Ayres. Outra preocupação, mas que de acordo com ele enfrenta resistência, é com a introdução de conteúdos mais “humanísticos”, que envolvem “contribuições” da filosofia e das ciências sociais, que permitam discutir, entre muitos outros, aspectos como gênero, raça e classe. “É para que se possa desenvolver a perspectiva de valorização da ciência, mas também dos aspectos não estritamente científicos. Para se fazer um bom uso da ciência: é a ideia de cuidado, para além do diagnosticar e prescrever”, justifica.

Já na história da formação dos profissionais de nível médio em saúde, o problema foi, de certa forma, oposto: sobrava proximidade com o serviço de saúde, mas faltava, ao mesmo tempo, SUS – que ainda estava sendo construído – e ciência. Era ainda a década de 1980 quando a enfermeira Izabel dos Santos foi chamada a resolver o dilema: um enorme contingente de trabalhadores ‘leigos’, que já atuavam no sistema de saúde, mas sem nenhuma qualificação. “O Larga Escala veio para tentar qualificar essa força de trabalho que não tinha nem formação geral nem profissionalizante”, explica Milta Torrez, referindo-se ao programa que formou mais de 200 mil trabalhadores da saúde.

Segundo ela, eram dois os principais objetivos da iniciativa: contribuir com a construção do SUS, que viria a nascer em 1988, e levar a esses trabalhadores o maior nível possível de conhecimento técnico, tecnológico e científico, mesmo diante de todas as limitações daquele contexto especifico. “Se não tivéssemos essas duas intencionalidades, não precisávamos nem ter feito aquilo. Porque já existiam soluções: existia o supletivo, com suas provinhas, era só [os trabalhadores] fazerem aquilo e nós teríamos todo mundo qualificado sem precisar ser expulso da força de trabalho”, ressalta e completa: “A luta foi exatamente para contribuir para superar isso, não recorrendo ao currículo mínimo, às ‘noções de’”.

Juntando o aprendizado de ontem e a experiência ‘a quente’ de hoje, ela conclui: “Há muitos e diferentes modos de apropriação da realidade. O conhecimento é um deles. Dentro do conhecimento, a ciência é um deles, a filosofia é outro, a arte... O problema não é só ausência da cientificidade, mas ausência de aprofundamento e amplitude nos mais diferentes modos de apropriação da realidade”.