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Educação Profissional no campo

Programas com diferentes formatos e concepções compõem uma política fragmentada, protagonizada pela Confederação Nacional da Agricultura
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 11/06/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Aula do curso técnico de meio ambiente da EPSJV/Fiocruz em assentamento no Paraná Foto: Viviane Tavares

"Transformar qualquer propriedade em um excelente negócio. Esse é o nosso compromisso". A frase é da senadora Katia Abreu, líder da Frente Ruralista do Congresso Nacional e presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). E está estampada no material de divulgação do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), braço do Sistema S ligado à CNA dedicado à educação profissional no campo brasileiro. Desde que se tornou executor do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), financiado com recursos do Ministério da Educação (MEC), o Senar criou, inclusive, um módulo sobre empreendedorismo que integra todos os seus cursos. "Não basta mais apenas plantar e colher. É necessário conhecer as técnicas básicas de administração dos funcionários, do dinheiro, das máquinas e equipamentos, enfim, de todos os recursos usados para produzir mais e melhor", diz a senadora no texto de apresentação do Manual do Empreendedor, material didático dos cursos.

O problema, como alertam movimentos sociais ligados ao campo, é que nem todo mundo tem "funcionário" e "dinheiro" para administrar, a dependência de "máquinas e equipamentos" para a produção varia e, por incrível que possa parecer, há muitas famílias de camponeses que não sonham em transformar a sua pequena propriedade num "grande negócio". De certa forma, esse é o alerta que uma carta produzida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) fez ao Ministro da Educação. "A inserção do Senar, pelo Ministério da Educação, como executor de políticas, programas e ações da educação do campo, é uma tentativa de negar ou omitir as contradições que envolvem esta luta. Não é possível que o mesmo projeto que serve ao agronegócio, que expulsa os trabalhadores do campo ou que os torna meramente técnicos para o exercício de uma função pontual na produção (na condição de empregado), conviva, de forma naturalizada, com a perspectiva defendida pelos movimentos que lutam pela permanência de homens e mulheres do campo, na produção familiar, na produção de saberes e conhecimentos e que reafirmam o campo como lugar de vida, de cultura, de valores e de produção", afirma o documento, que questionava a participação do Senar no Programa Nacional de Educação do Campo (Pronacampo), do qual o Pronatec é parte.

As "contradições" a que a carta se refere ficam evidentes quando se olham as diferentes iniciativas que compõem, de forma fragmentada, a atual política de educação profissional para o campo. Mais recentemente, parte dos esforços nessa área têm sido concentrados no Pronatec Campo, uma modalidade do programa em que o MEC faz uma dobradinha com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que assume a responsabilidade de mapear a demanda e contribuir com a pactuação de cursos. O MDA, por sua vez, já desenvolve, desde 1998, muito antes da criação do Pronatec, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), que financia cursos em diversos níveis, inclusive educação profissional, a partir da demanda dos movimentos sociais do campo. Hoje, essas duas iniciativas, que têm formato e alcance muito distintos, convivem no mesmo ministério. "Neste momento estamos tentando nos aproximar do Pronera, que segue uma linha que já chega ao nosso público", diz Raquel Martins, assessora do gabinete do Ministro do Desenvolvimento Agrário, reconhecendo o risco da superposição dos programas. Roseli Caldart, doutora em educação e integrante do setor de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que acompanha a construção conjunta de cursos pelo Pronera, destaca o fato de o governo ter optado pelo Senar na discussão e formulação do programa, mas ter precisado chamar o MDA, que tem relação com os movimentos sociais, para garantir os números e metas que o Pronatec precisa cumprir. "O Senar fez a proposta, mas não daria conta de conseguir trabalhadores para fazerem os cursos porque ele não tem a tradição dos outros ‘S'. É muito mais ideologia do que quantidade", aposta.

Os números, no entanto, mostram que essa realidade pode estar mudando. E como o desenho do Pronatec pressupõe que a instituição que vai ofertar o curso é definida a partir de uma pactuação com o demandante, o Senar vinha "conseguindo" alunos principalmente entre estudantes da rede pública cadastrados pelas secretarias de educação. Em 2013, veio um reforço do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) que, no contexto do Pronatec Brasil Sem Miséria (ver revista edição 32 da Poli), demandou cursos para moradores de áreas rurais que são usuários de programas de transferência de renda, principalmente o Bolsa Família. Com isso, o número de matrículas do Senar no Pronatec mais do que dobrou em relação ao ano anterior, chegando a 37 mil, de acordo com Janei Resende, coordenadora do Pronatec Senar. Para se ter uma ideia do que isso significa como "quantidade", no mesmo ano, o Pronatec Campo, via MDA, totalizou pouco mais de 8 mil matrículas.

O volume de recursos públicos destinados a esse representante do sistema S também pode dar a dimensão da importância que essa instituição vem assumindo. O Pronera, que é o programa reconhecido por movimentos como o MST e a Contag como uma conquista para a educação do campo, executou em 2013, R$ 29,2 milhões, segundo dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal, para todos os cursos e não apenas os de educação profissional. Já o Senar, no mesmo ano, recebeu, sozinho, mais de R$ 57 milhões, para ações de "apoio à formação profissional, científica e tecnológica", além de outros R$ 121.624 se somados os repasses específicos para as unidades de Ceará, Pará e Mato Grosso do Sul.

"O Pronatec tenta dizer que a política de democratização do acesso à educação profissional também está chegando ao campo. Mas é uma armadilha"

Roseli Caldart

Se a diferença de números impressiona, a caracterização dos alunos que o braço educativo da CNA tem alcançado não é menos significativa. O MDA reconhece como público do Pronatec Campo agricultores familiares, assentados da reforma agrária, assalariados e povos e comunidades tradicionais. Com o objetivo principal de "fortalecer a agricultura familiar na perspectiva do desenvolvimento rural sustentável", o programa tem priorizado matrículas no eixo de ‘recursos naturais', que envolve cursos como agricultor orgânico, auxiliar técnico em agropecuária, piscicultor e bovinocultor de leite, entre muitos outros. Mais de 60% das vagas preenchidas em 2013 e quase 80% das vagas pactuadas para o primeiro semestre de 2014 pelo MDA são desse eixo. Mas quando se olha o conjunto dos cursos de ‘recursos naturais' oferecidos em todas as modalidades do Pronatec, 55,6% - mais de 43 mil matrículas - foram realizadas pelo Senar. "Os pequenos produtores, o público que o MST representa, são o público que nós atendemos. Temos curso em quilombos e assentamentos", enumera a coordenadora do Pronatec Senar. E ela não identifica divergência de projetos entre uma instituição formadora ligada à CNA e alunos que estão inseridos na luta pela reforma agrária. "Na nossa leitura, não há conflito nenhum. Muito pelo contrário. O público que a gente atende é essencialmente rural, são pequenos produtores adultos e os filhos dessas famílias. Às vezes ele tem só duas vacas de leite e o curso é uma forma de ele fazer melhor e conseguir ter a geração de renda com uma atividade que pode desenvolver dentro da sua propriedade", diz. E completa: "E a questão da agricultura de baixo carbono percorre todos os nossos ensinamentos, em todos os conteúdos que desenvolvemos temos trabalhado o uso sustentável, conservando os recursos naturais".


Armadilha?

Para Roseli Carldart, todo esse cenário evidencia um papel muito importante e complexo que a educação, principalmente básica e profissional, tem desempenhado nas lutas do campo brasileiro hoje. "O Pronatec tenta dizer que a política de democratização do acesso à educação profissional também está chegando ao campo. Mas é uma armadilha", opina. Ela explica que o agronegócio precisa do trabalhador assalariado e, por isso, requer algum grau de instrução e capacitação técnica, mas são poucos os empregos gerados. Por um lado, diz, a formação profissional ajuda a formar um exército industrial de reserva (ver edição 27 da Poli).

Mas, segundo Roseli, por conta das especificidades, a versão do Pronatec no campo traz "embutido" um outro projeto: subordinar à lógica do agronegócio o não-assalariado, ou seja, o agricultor familiar e o pequeno agricultor. "Está muito claro para a CNA a importância de avançar sobre a agricultura familiar. Ela faz a leitura das agendas que estão sendo construídas pelos movimentos sociais do campo e tenta bloquear o avanço desse setores ocupando esses espaços", concorda André Búrigo, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que integrou a coordenação de quatro cursos da instituição voltados para a população do campo, inclusive pelo Pronera, e concluiu, no final de 2013, duas turmas do curso técnico de meio ambiente no Paraná e Ceará, com recursos da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, do Ministério da Saúde.

No que diz respeito à educação profissional, por um lado, isso se manifesta na oferta de cursos claramente voltados para atividades ligadas ao agronegócio - o curso de "operador de máquinas e implementos agrícolas", que pertence ao eixo de ‘recursos naturais', por exemplo, ensina a operar máquinas e equipamentos agrícolas para a otimização da produção e da mão de obra; atuar no manejo dos solos, das sementes, plantio direto, semeadura, colheita, aplicação de adubos e defensivos agrícolas", como consta do Guia Pronatec de cursos FIC. "O Pronatec tem um grande rol de cursos do agronegócio. Há regiões do Paraná onde predomina a plantação de pinos que têm cursos de operadores de motosserra, tratorista, profissionais para fazerem pequenos consertos em grandes máquinas. A CNA tem conseguido pautar", conta Alessandro Mariano, integrante do setor de educação do MST Paraná.

Mas Roseli chama atenção para a presença da mesma perspectiva em cursos que a princípio seriam de interesse dos próprios movimentos sociais do campo. "O que se faz num curso de agroecologia com 160 horas? Transforma-se a agroecologia em meia dúzia de técnicas", exemplifica. E completa: "Não se pode abordar um tema como esse dessa forma rebaixada. Parece que se consegue colocar no mesmo programa o agronegócio e a agroecologia, tudo remendado". A partir das experiências que acompanha no Paraná, Alessandro explica que, pela abordagem desses cursos, a agroecologia é ensinada como uma forma de agregar valor à produção, conseguindo produtos que são mais caros no mercado. "Nós pensamos a agroecologia como uma forma de se cuidar melhor da terra e se construir melhores condições de vida", compara, ressaltando que os cursos do Pronera se aliam a essa perspectiva. "Mas acaba sendo pouco. Hoje temos três turmas de cursos técnico de agroecologia. É pouca a juventude que tem acesso a essa formação", lamenta.

Mesmo com todas essas críticas, o braço educacional da CNA tem se feito presente não só junto a pequenos proprietários em geral como também entre os assentados da reforma agrária, inclusive de militantes do MST

O descompasso entre os cursos que têm sido oferecidos e essa visão alternativa de campo é ainda mais dramático porque, segundo ele, falta aos produtores uma formação adequada que ajude a levar adiante esse outro projeto. "A prática de agricultura orgânica hoje exige recuperar o solo, pensar a dimensão da semente, melhorar a variedade da produção... E isso requer um conjunto de conhecimentos que o agricultor não consegue sozinho. Até os cursos FIC poderiam ajudar, mas o que o Senar oferece não é isso", diz, destacando que se ‘vende' nos cursos a ideia de um "pacote da agricultura orgânica", incentivando o produtor a comprar, no mercado, adubos orgânicos que são produzidos pelo agronegócio. "O agricultor precisa entender esse conjunto de relações, as diversas cadeias produtivas que ocorrem", opina. Para o secretário de políticas sociais da Contag, José Wilson Gonçalves, uma educação profissional que vise realmente fortalecer a agricultura familiar e o modelo agroecológico precisa partir dos conhecimentos que o homem do campo já tem. "Ele tem conhecimentos extraordinários, mas é preciso qualificar isso para que ele consiga produtividade sem agredir o meio ambiente, sem usar os pacotes tecnológicos que o agronegócio usa, para que ele aprenda a colocar seu produto no mercado dos municípios, feiras, enfrentando desafios que parecem verdadeiras barreiras para a gente, como a própria legislação sanitária", diz.

Alessandro ressalta ainda que a lógica do agronegócio tem se feito presente mesmo em processos formativos que não são executados pelo Senar. Ele conta o caso de um curso de agricultura orgânica pactuado com Institutos Federais do Paraná em que, como só havia opção de formação inicial e continuada, a proposta foi organizar o conteúdo em três fases de 160 horas cada. "A ideia era ir pensando um conjunto que acompanhasse o experimento dos agricultores, fazendo a transição do convencional para o agroecológico. Onde esse curso saiu, o Instituto não conseguiu absorver essa demanda nem no número de agricultores nem na necessidade formativa. Em outros lugares, como a região de Ortigueira, ele simplesmente não saiu e acabou virando curso de agronegócio", relata. E conclui: "O Senar já oferecia esses cursos antes do Pronatec, inclusive nos assentamentos. Como ele ajudou a montar o Pronatec, o desenho do programa vem atender ao que ele já fazia".

E o que dá unidade a esse desenho é, segundo ele, a ideia de "empreendedorismo rural" - exatamente aquele compromisso assumido pela presidente da CNA, Kátia Abreu, na fala que abre esta matéria. Segundo ele, ensina-se ao agricultor como produzir melhor para disponibilizar seus produtos no grande mercado. "Procura-se, por exemplo, melhorar a qualidade do leite produzido para entregar nas cooperativas do agronegócio", diz. E analisa: "Isso faz com que o agricultor fique refém. Ele perde a autonomia de lidar com a terra e produzir variedade de alimentos". Com essa crítica ele não nega a necessidade dos produtores de venderem seus produtos, ao contrário, mas aponta a necessidade de se pensar isso a partir de outras relações. No Paraná, por exemplo, existem 15 cooperativas que produzem e vendem alimentos para merenda escolar, em feiras agroecológicas, participando inclusive de programas governamentais de incentivo ao pequeno agricultor. Já a lógica do empreendedorismo, pensando a pequena propriedade como um negócio, pode, na avaliação de Alessandro, trazer consequências importantes, como o fim da estrutura de trabalho familiar na terra, a partir da contratação de "funcionários", e a criação de um padrão de produto selecionado, desconsiderando-se toda a diversidade de produção possível. Na sua opinião, o "empreendedorismo rural" que tem orientado os cursos de educação profissional no campo financiados pelo dinheiro público tem como objetivo final aliar o pequeno produtor ao grande. "No Paraná, temos regiões inteiras em que o agronegócio introduziu o pinos. Hoje, as empresas arrendam a terra do pequeno agricultor para fazer essa plantação. Ele só mora lá, rodeado de eucalipto. A tendência é que essa família venda a terra", exemplifica.

Mesmo com todas essas críticas, o braço educacional da CNA tem se feito presente não só junto a pequenos proprietários em geral como também entre os assentados da reforma agrária, inclusive de militantes do MST. Raquel diz - e os números até agora comprovam - que no caso do Pronatec Campo, que tem a mediação do MDA e portanto consegue garantir alguma discussão com os movimentos sociais, as instituições públicas de ensino têm sido apontadas como prioritárias na execução dos cursos. Alessandro garante que, no Paraná, o MST "não faz parceria com o Senar", mas identifica regiões em que, por falta de opção, as lideranças procuram o Senar para demandas específicas, tentando ajudar a pautar o curso, principalmente através do contato direto com os professores, que muitas vezes são conhecidos e reconhecidos pelo conhecimento que têm. "Não se trata de ser contra alguém fazer um curso para aperfeiçoar a horticultura, por exemplo. Não se trata também de rechaçar em bloco o programa. O problema é a lógica embutida, porque a pessoa pensa que está melhorando, mas está sendo capacitada para ser destruída como camponês", define Roseli Caldart. E completa: "Não existe agronegocinho".


O rural entrou na agenda

Todo esse cenário mostra, de acordo com a análise de Roseli Caldart, que o rural "entrou na agenda" na educação. Essa importância, que os movimentos sociais organizados reclamaram desde a 1ª Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, em 1998, veio, no entanto, segundo ela, pelas mãos das grandes empresas que participam do processo recente de modernização capitalista na agricultura, embora com apoio governamental. "Isso é expressão de uma fase do capitalismo. Essa relação de domínio das empresas transnacionais no campo é recente. O antigo latifúndio se caracterizava pela dominância de relações pré-capitalistas e, portanto, não precisava da ampliação da instrução dos trabalhadores", explica.

E os exemplos desse novo interesse pela educação no campo vão além da educação profissional no sentido estrito. O próprio Senar, que, como integrante do Sistema S tem sua identidade nesse nível de ensino, desenvolve, pela sua unidade do Paraná, um projeto integrado à educação básica em escolas públicas e privadas. Trata-se do ‘Agrinho', um programa que, entre outras iniciativas, oferece capacitação docente, produz livros didáticos que propõem e subsidiam o trabalho de pesquisa dos estudantes em temas (e abordagens) previamente selecionados e promove um concurso de redação que premia alunos e professores. Iniciado em 1995, o programa hoje já abrange todos os municípios do Paraná e se expandiu para outros oito estados e o Distrito Federal.

SenarSegundo a revista comemorativa dos 15 anos do programa, o Agrinho nasceu como uma resposta à "preocupante questão dos agrotóxicos", que se apresentava naquele momento com alto número de intoxicações. O objetivo do programa, que criou até personagens próprios para seu material didático, era buscar formas de "conscientização da população". Para isso, o Senar encontrou uma solução ‘diferente': buscou a parceria de empresas como a Zêneca Brasil LTDA, que é fabricante de agrotóxicos, e "no primeiro ano do programa atuou nos cinco municípios-piloto orientando as escolas a elaborarem uma pesquisa envolvendo os alunos e agricultores sobre a realidade do manuseio, aplicação, proteção individual e destinação das embalagens". Um exemplo da abordagem incentivada é a primeira redação de aluno premiada pelo Agrinho, em 1996, que contava a história de uma embalagem de agrotóxico que se sentiu culpada por ter prejudicado o meio ambiente. "Na formação na área da saúde, o Senar tem um papel muito forte, por exemplo, no tratamento das questões relativas ao agrotóxico", reconhece André Búrigo. E, evidenciando a coerência com a proposta do Agrinho, que atua sobre a educação básica, ele destaca que a abordagem dos cursos voltados para os trabalhadores é a de incentivar a proteção individual. Vários depoimentos de alunos que passaram pelo Agrinho, destacados na publicação comemorativa do programa, confirmam a linha: "Mesmo sendo muito novo, tinha oito anos, consegui mudar alguns hábitos do meu pai. Antes ele só queimava as embalagens de veneno, com o Agrinho ele aprendeu a fazer a tríplice lavagem e a armazená-las", diz um deles. Búrigo critica: "Não se questiona o modelo que depende e defende o uso de agrotóxicos. Opta-se por culpabilizar os indivíduos pelos problemas de saúde gerados por essas substâncias". O caráter de treinamento rápido que os cursos adquirem acaba por justificar, na opinião do pesquisador, a ausência das discussões de fundo. "O Senar desenvolve ações de prevenção de câncer de colo de útero, por exemplo. Mas não apresenta o debate sobre o que produz esse câncer. Uma das possíveis causas, inclusive, pode ser a ingestão de agrotóxicos", cita.


O papel dos Institutos Federais

A partir do momento em que, com o Pronatec, a execução de cursos rápidos no campo brasileiro virou meta a ser cumprida, os institutos federais, principais instituições públicas envolvidas com o programa, se viram diante do desafio de dar conta de todas essas especificidades do meio rural. Até porque na modalidade em que o MDA é demandante, e que conta com mais participação dos movimentos sociais, a tendência tem sido escolher essas instituições - e não o Sistema S - como ofertantes. Clarice dos Santos, do Pronera, testemunha a dificuldade dos Institutos Federais em atender ao Pronatec Campo. "Eles alegam não ter recursos para levar os professores aos assentamentos nem para contratar quem já foi formado nos assentamentos. Isso são questões que precisam ser resolvidas porque mostra que os IFs não estão preparados para atender à necessidade da população do campo como ela se configura", avalia.

Se, por um lado, essa dificuldade remete ao modelo fechado do Pronatec, que por sua vez esbarra na falta de recursos para flexibilizar de acordo com as especificidades do campo, por outro, existe um certo consenso sobre problemas em relação aos próprios Institutos Federais.Ricardo José Marinho, professor da Universidade do Grande Rio que estuda a história dessas instituições, explica que a tal expansão da rede federal, que se formalizou num arranjo legal a partir de 2008, se valeu de uma série de instalações que já existiam, com vínculos e graus de dependência distintos, como é o caso das escolas agrotécnicas. "Acontece o óbvio: uma instituição que ganha autonomia vira uma boutique de cursos e se desresponsabiliza pela sua relação com o campo", explica. Ele exemplifica com o Instituto Federal do Rio de Janeiro, que se formou a partir de uma escola técnica agrária da região do Médio Paraíba, que era ligada à Universidade Federal Fluminense. De acordo com Ricardo, quando se tornou IF, ela ganhou autonomia, passou a oferecer curso superior e tem um polo de Educação à Distância, que oferece inclusive cursos de nível médio que concorrem com os cursos presenciais, e ainda tem que atender à demanda do Pronatec, que atinge toda a rede. "Resultado: uma instituição que até pouco tempo funcionava como escola agrotécnica hoje tem dificuldade de se ver assim", resume. Para completar o cenário, segundo ele, algumas dessas unidades estão sendo tensionadas por uma mudança no "arranjo produtivo local", como é o caso do Instituto Federal localizado na região satélite de Volta Redonda, também no Rio de Janeiro. "O arranjo local já foi agrário, e ainda é em parte, mas hoje é também urbanóide, siderúrgico", exemplifica.

O problema, segundo ele, é que tanto o Pronacampo como o Pronatec Campo acabaram não atendendo à demanda rural ou agrária porque não construíram um perfil real de cada unidade rural criada ou transformada em IF. "É preciso saber qual é a demanda naquela região, se é que tem", aponta Ricardo. E essa é, na sua avaliação, uma discussão "bastante fina" que envolve a questão demográfica no campo.

A tensão entre as referências do campo e da cidade está presente também na análise que o secretário da Contag faz do papel dos IFs nesse cenário. "Os profissionais que estão nos IFs são formados pelo modelo de educação que está aí, olham para o centro urbano. A grande maioria não tem capacidade de fazer a crítica ao atual modelo de agricultura, de focar na agroecologia, por exemplo. Não é qualquer profissional que está preparado para dar aula no campo", diz José Wilson. Mas completa: "Houve uma expansão significativa da rede federal. E nós temos que ocupar esses espaços. Eles não podem estar a serviço do agronegócio".


Formato padrão campo-cidade

Muitas dessas dificuldades, no entanto, também costumam ser atribuídas ao modelo fechado do Pronatec, que foi ‘importado' da cidade para o campo. José Wilson conta que a Contag fez uma parceria com o Instituto Federal de Brasília para desenvolver, pelo Pronatec, um projeto-piloto com cinco turmas, mas, segundo ele, precisou bancar mais de 50% dos custos reais dos cursos. "Porque o Pronatec não está estruturado para atender à realidade do campo", avalia. Ele enumera alguns problemas: em primeiro lugar, apesar da grande expansão dos últimos anos, não existem IFs em todas as cidades do campo; e os recursos, repassados no mesmo formato da bolsa-formação que atende às outras modalidades do Pronatec, não dão conta das necessidades de deslocamento e alimentação no campo. Segundo José Wilson, a Contag, junto com outras instituições, já entregou um documento à presidente Dilma Rousseff defendendo a necessidade de se implementar no Pronatec Campo a pedagogia da alternância, e de se garantir recursos, por exemplo, para a hospedagem das pessoas. "O recurso que está previsto para deslocamento obriga o homem do campo a andar cinco, dez quilômetros. Na alimentação, só dá para um lanche. É desumano", conclui. Alessandro resume o problema: "O Pronatec é um programa padrão para atender ao conjunto cidade-campo, e isso é um limitador".

"Que tipo de democracia se está fortalecendo quando se passa a investir um volume de recursos nunca antes destinado para a Educação do Campo junto a uma instituição vinculada a latifundiários, que oferece cursos baseados em estudos que não tiveram a participação das populações do campo?"

André Burigo

Mesmo antes do Pronatec, no entanto, o Senar já se organizava de forma a ir ao encontro do produtor e do trabalhador rural, sempre sob demanda. "O Senar não tem sala de aula. A comunidade não precisa ir, o Senar vai", explica Janei Resende. Mas essa experiência - e essa estrutura - tem se restringido, até hoje, a cursos de formação inicial e continuada, de curta duração. O Senar está agora tentando implementar pelo Pronatec o curso técnico de floresta, o único de nível médio que ele já desenvolveu, de forma experimental, em parceria com o Instituto Federal do Tocantins. "É uma nova etapa do Senar", anuncia.

Essa limitação da carga horária não tem sido uma exclusividade do Senar. Em 2013, o MDA também não conseguiu nenhuma matrícula em curso técnico pelo Pronatec Campo. Para 2014, segundo Raquel Martins, estão previstas duas turmas de 30 alunos cada, na modalidade concomitante. "Cursos FIC não resolvem os problemas da população do campo", opina Clarice. Segundo ela, o MDA vai aproveitar o Pronatec Campo porque há muitos recursos envolvidos, mas vai tentar integrar as ações e articulá-las com o processo de escolarização dessa população, até para que se abra caminho para a realização de cursos técnicos. O ideal, diz, é que o Pronatec funcione como complemento a essa formação mais sólida, com cursos voltados para práticas específicas. André Búrigo concorda que é preciso avançar na realização de cursos técnicos, mas sem eliminar a possibilidade de pessoas que não têm escolaridade ou condições práticas para um curso mais longo poderem aprender técnicas específicas, que podem ser ensinadas em cursos FIC.


Opções da política

Búrigo defende que o mais importante não é analisar os cursos no varejo, mas criticar as opções que têm sido feitas pela política. "Não tenho dúvida de que existe muita gente boa trabalhando nos cursos do Senar. Já vi isso em assentamento de Reforma Agrária no Paraná, por exemplo", reconhece. Mas pondera: "Por um lado, isso mostra também a efetividade da estratégia. Mas, para mim, a grande questão é que não deveria caber ao Senar tocar uma política pública de educação profissional. No caso da saúde, por exemplo, temos uma Rede de Escolas Técnicas do SUS que deveria estar à frente disso, até para que esses cursos estivessem alinhados aos princípios e diretrizes do SUS e, mais especificamente, à Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Afinal, cabe ao Senar ou ao SUS fazer prevenção de câncer de colo de útero?".

Para o pesquisador, o Pronatec, tanto na versão Campo, tocada pelo MDA, quanto na versão Senar, significa um retrocesso em relação às conquistas que a população e os movimentos sociais do campo tinham alcançado. "Desde 1998, quando o movimento ‘Por uma Educação do Campo' se expressou de forma mais organizada, houve um acúmulo de discussões protagonizado por quem de fato organiza e faz um debate democrático, construindo isso com as comunidades e os educadores do campo que estão lá nas escolas do campo, no interior. E isso é completamente ignorado quando o MEC chama o Senar para construir um programa e ainda por cima nos moldes do Pronatec", critica, e pergunta: "Que tipo de democracia se está fortalecendo quando se passa a investir um volume de recursos nunca antes destinado para a Educação do Campo junto a uma instituição vinculada a latifundiários, que oferece cursos baseados em estudos que não tiveram a participação das populações do campo?".

Roseli Caldart confirma que, do ponto de vista da discussão da política, nem o MST nem a Contag nem outras organizações representativas dos trabalhadores do campo foram chamadas. Búrigo compara: "É como se a gente agora fosse fazer no caso da educação do campo o que se faz em relação à agricultura como um todo: o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que tem muito dinheiro, é o ministério do agronegócio, e o MDA, que tem pouco dinheiro e está completamente sucateado, é o ministério dos agricultores pobres. Agora o Ministério da Educação assume a sua camisa de Mapa quando vai construir essa política com uma entidade que pertence à classe patronal". Procurado, o MEC não enviou informações sobre a política nem teve disponibilidade para dar entrevista.

Quando fala das conquistas que esse movimento pela educação do campo teve, o pesquisador se refere, principalmente, ao Pronera, que também integra o Pronacampo e é muito anterior ao Pronatec. Para Clarice dos Santos, coordenadora do programa, a construção do conteúdo e do formato dos cursos em parceria com os movimentos organizados de trabalhadores do campo é, de fato, um diferencial dessa iniciativa. "A primeira vez que se teve camponeses e trabalhadores discutindo sobre educação do campo, por uma perspectiva dos seus interesses, foi com o Pronera", diz. Ela conta que o programa nasceu a partir, principalmente, de uma grande mobilização política que o MST conseguiu fazer em 1997, logo depois da chacina de Eldorado dos Carajás, em que 19 integrantes do Movimento foram mortos pela polícia no Pará. E o lugar encontrado para abrigar essa política, curiosamente, não foi o MEC, mas o Ministério do Desenvolvimento Agrário. O diferencial do programa, explica Clarice, é que o Pronera reconhece a participação dos movimentos sociais não só como demandantes, mas em todo o processo, inclusive na coordenação dos cursos.

No caso do Pronatec, os demandantes são os ministérios ou secretarias de educação. A coordenadora do programa no Senar explica que, em geral, essa demanda se pauta por estudos realizados por outros órgãos ou instituições, como o Ministério do Desenvolvimento da Indústria e Comércio (MDIC), sobre necessidade de mão de obra em cada região. Identificada a carência, todos os envolvidos saem a campo para mobilizar os possíveis beneficiários. Na versão específica do Pronatec Campo, segundo Raquel Martins, os movimentos sociais têm sido chamados pelas delegacias federais do desenvolvimento agrário, que o MDA mantém nos estados, para uma ou duas reuniões por semestre em que se discute a demanda de cursos. O militante do MST no Paraná, no entanto, narra uma experiência negativa mesmo nesse nível de participação. "Fomos chamados para uma primeira reunião estadual para discutir a demanda com os Institutos Federais. Quando esse processo se descentralizou para as regiões, mudou tudo. Na reunião de pactuação, fomos chamados apenas para testemunhar o que já estava resolvido", conta Alessandro.

O processo de discussão a ação conjunta que os movimentos sociais reconhecem no Pronera se expressa de forma concreta no formato dos cursos. Um exemplo é que, diferente do Pronatec nas suas diferentes modalidades, o Pronera utiliza a pedagogia da alternância, em que os cursos são divididos em dois momentos principais: um é o tempo-escola, em que os educandos ficam reunidos no mesmo espaço, tendo aulas práticas e teóricas, participando do planejamento e da avaliação das atividades; o outro é o tempo-comunidade, em que eles voltam para seu local de origem para pesquisar a sua realidade e registrar essa experiência. Esse formato garantiria uma maior procura e uma evasão menor, já que não afasta completamente o camponês do seu trabalho e da sua terra. Com isso, viabiliza a realização de cursos mais longos, de formação técnica, por exemplo, diferente do Pronatec, que tem oferecido quase que exclusivamente cursos de formação inicial e continuada, que têm, em sua maioria, 160 horas. "Os camponeses transformaram o Pronera. No início, era só Educação de Jovens e Adultos, alfabetização e anos iniciais. Hoje temos graduação e até pós-graduação. O que isso está produzindo de mudança no campo? As pessoas estão estudando para continuar trabalhando na roça", resume Clarice.