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Educar (e lutar) para os direitos humanos

Maioridade penal e educação para os adultos trabalhadores são discutidos em mesas sobre direitos humanos.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/06/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Não existe neutralidade na noção de direitos humanos. Faz diferença, por exemplo, se você entende essa luta por uma perspectiva mais liberal, que foca no indivíduo e se expressa em pautas como o direito do consumidor, ou se você adota uma concepção mais coletiva e emancipatória. Esse foi o principal ponto abordado pelo professor Moacir Gadotti, da Universidade de São Paulo e do Instituto Paulo Freire na conferência intitulada ‘Direitos humanos e cidadania: desafios para a educação profissional e tecnológica’, realizada no último dia do 3º Fórum Mundial de EPT. “Muitas vezes esse chapéu dos direitos humanos inclui um monte de coisas. É preciso ter clareza política para entender essa defesa a partir de um projeto de sociedade em que não haja oprimidos nem opressores”, disse. E completou, tratando especificamente do processo educacional que valoriza essa luta: “Será que a gente quer uma Pátria Educadora que se paute pela competitividade empresarial ou que a referência seja a cidadania emancipadora?”.

Para o professor, a clareza sobre essa não-neutralidade dos direitos humanos é fundamental num momento como o atual, em que, na sua avaliação, estamos vivendo um processo de exacerbação do individualismo semelhante ao que antecedeu ao fascismo. “Temos que nos preocupar porque isso é a barbárie”, alertou. A boa notícia, segundo o palestrante, é que, junto com essa “intolerância”, tem crescido também a institucionalização dos direitos humanos no Brasil.

A variedade de programas e espaços institucionais que a luta pelos direitos humanos conquistou no Brasil foi destaque da fala da representante da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Salete Valesán, que integrou a mesma mesa-redonda. Ela citou como exemplos de institucionalização os estatutos da Criança e do Adolescente, da Juventude e da Pessoa Idosa, os programas de proteção a testemunhas e as secretarias nacionais de juventude e direitos humanos, mas reforçou que isso encontra obstáculos num congresso nacional que “ainda não entendeu que essas pessoas têm direitos garantidos e que eles não têm o nosso mandato para retroceder”.

Exatamente por isso, Salete fez um chamado para que, especialmente os jovens, se engajem numa pauta urgente e atual: a luta contra a redução da maioridade penal, que tramita no congresso na forma de uma proposta de emenda constitucional (PEC). Na ação junto ao parlamento, essa pauta deve se complementar, segundo ela, com a mobilização contra a alteração do estatuto do desarmamento e pela defesa da desmilitarização da polícia no mundo inteiro. Denunciando a ação da bancada “BBBJ” (Boi, Bala, Bíblia e Jaula), ela ressaltou a importância desses recados aos políticos. “Temos que dizer a eles que não aceitaremos nenhum direito a menos nem nenhuma morte a mais no nosso planeta”, explicou.

No dia anterior, a discussão sobre a violação de direitos no Brasil, e o destaque à gravidade da PEC da redução da maioridade penal já tinha aparecido na fala do representante do Movimento Nacional de Direitos Humanos, Rildo Marques, que participou da seção de Observatório Mundial intitulada ‘Gestão democrática, participação social e desenvolvimento humano na Educação Profissional e Tecnológica’. Apesar de fazer referência à proposta que tramita no parlamento e, mais especificamente, à “bancada da bala”, Rildo ressaltou o quanto essas pautas conservadoras se entranham na própria sociedade civil organizada. “É muito ruim ver um grupo que luta por moradia ser a favor da redução da maioridade penal, ou integrantes de um movimento LGBT que acham que a população de rua enfeia a cidade”, exemplificou, destacando o quanto a sobrevivência de uma “cultura de exclusão” se caracteriza também pelo fato de um segmento social não reconhecer o outro. Como mais um dos elementos desse cenário, ele mencionou o desserviço produzido pela grande mídia no Brasil. “Temos que dizer um basta à meia dúzia de famílias que mandam na comunicação e usam a desinformação para enfraquecer a democracia neste país”, disse.

Direito à educação para o adulto trabalhador

Na conferência que tratou especificamente dos direitos humanos e cidadania, a professora Silvia Manfredi, da Unicamp, abordou a educação de jovens e adultos, especialmente na sua relação com a educação profissional, como uma dimensão do direito dos trabalhadores. Discutindo a partir de números oficiais que indicam um aumento de 140% no total de vagas desse segmento nos últimos dez anos, ela reconheceu que o Brasil teve um avanço no acesso à educação profissional nesse período. Mas alertou: “Estou preocupada com os programa de Educação Profissional e Tecnológica para os sujeitos que vivem do trabalho”. E mostrou que, nesse quesito, o cenário não parecia tão positivo.

Segundo ela, somados, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional à Educação de Jovens e Adultos (Proeja) e o Projovem Trabalhador, que atende o jovem que não está na escola e não concluiu a educação básica, formaram pouco mais de 484 mil pessoas, enquanto a “clientela potencial” é de 45 milhões. Segundo ela, portanto, estamos aumentando as possibilidade de acesso principalmente aos jovens de classe média, mas mantendo a “dívida histórica” com a classe trabalhadora e seus filhos.

Tendo sempre como pano de fundo não só o referencial como também o “sonho” de Paulo Freire, de que se construísse no Brasil um “sistema de EJA”, ela elogiou vários dos programas de formação de jovens e adultos trabalhadores criados nos últimos anos, mas os classificou também como um conjunto de “ações pulverizadas” que não dialogam entre si e, muitas vezes, disputa, o mesmo público. “Acho que perdemos a perspectiva do sistema”, lamentou.

Silvia Manfredi, no entanto, dedicou boa parte da sua fala a apresentar a história da educação de jovens e adultos desde o Programa Nacional de Alfabetização (PNA), inspirado em Paulo Freire, até os anos 2000, para mostra que houve, antes, um conjunto de opções que fizeram chegar até aqui. Ela lembrou, por exemplo, como, a partir da ditadura militar, houve uma intencional separação entre educação formal e não-formal, o que, segundo ela, fez com que todo o trabalho de mobilização que o PNA tinha desenvolvido fosse canalizado para o espaço da escola. “Na ditadura, o controle sobre a escola foi imenso”, explicou. E concluiu: “Isso tudo foi o pano de fundo da dificuldades de 2002 para cá”.