Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Ensino Médio em debate

Especialistas consideram que revogação de medidas do Novo Ensino Médio é positiva, mas insuficiente; e que Ensino Profissional e Técnico continua capturado pela lógica privada
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 06/11/2023 16h14 - Atualizado em 07/11/2023 11h15

O governo federal enviou ao Congresso Nacional, em 24 de outubro, o Projeto de Lei 5.230/23, que redefine a Política Nacional de Ensino Médio no Brasil. O texto começa a tramitar na Câmara dos Deputados em caráter de urgência, devendo ser apreciado dentro de 45 dias.

O PL é uma alternativa à chamada “reforma” do Ensino Médio (Lei 13.415/17), cuja implementação vem sendo alvo de inúmeras avaliações da EPSJV. O atual Novo Ensino Médio (NEM) foi implantado sem discussão entre educadores e estudantes. Sua aprovação ocorreu por Medida Provisória, interditando o tempo de debate e, de acordo com o MEC, em 2022 – quando o modelo do NEM passou a vigorar - 48% das unidades federativas ainda não haviam iniciado sua implementação nas turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), 15% nas turmas do ensino noturno e 22% em escolas indígenas.

Quatro meses após tomar posse, sob pressão dos movimentos organizados da Educação para revogar o Novo Ensino Médio, o governo Lula suspendeu a implementação do mesmo por 60 dias e abriu consulta pública – de abril a julho de 2023 – para ouvir a sociedade sobre o tema e formatar uma proposta a ser enviada ao parlamento.

As principais alterações previstas no PL 5.230/23 dizem respeito a disciplinas obrigatórias, carga horária e formação de professores. O PL torna obrigatórias, em todo o ciclo do Ensino Médio, as disciplinas de História, Geografia, Química, Física, Biologia, Inglês e Espanhol – além das atuais Língua Portuguesa, Matemática, Educação Física, Arte, Sociologia e Filosofia.

O projeto também retoma as 2.400 horas anuais para disciplinas obrigatórias, sem integração com o Ensino Profissional e Técnico. No caso destes cursos, prevê 2.100 horas de disciplinas básicas e, no mínimo, 800 horas de aulas técnicas. Na legislação que está em vigor atualmente, as escolas devem destinar 1.800 horas anuais para as disciplinas obrigatórias e 1.200 horas para os chamados “itinerários formativos” (Matemáticas; Linguagens; Ciências da Natureza; Ciências Humanas e Formação Técnica e Profissional).

Em substituição aos itinerários formativos, o PL 5.230/23 propõe que o ensino médio seja composto por formação geral básica e “Percursos de Aprofundamento e Integração de Estudos” que combinem pelo menos três áreas de conhecimento, com a oferta de:

  • Linguagens, Matemática e Ciências da Natureza;
  • Linguagens, Matemática e Ciências Humanas e Sociais;
  • Linguagens, Ciências Humanas e Sociais e Ciências da Natureza; e
  • Matemática, Ciências Humanas e Sociais e Ciências da Natureza.

Pela nova proposta do governo federal, todas as escolas de ensino médio precisarão ofertar no mínimo dois destes percursos, tendo o MEC poder de definir parâmetros nacionais para a organização interna de cada um deles.

O PL mantém em aberto a possibilidade de contratação de profissionais “com notório saber”, condicionando esta atuação a situações excepcionais, que serão regulamentadas.

Consensos e críticas ao PL

Para marcar a assinatura do Projeto de Lei, o governo federal reuniu representantes do Conselho Nacional de Educação (CNE), do Fórum Nacional de Educação (FNE), do Fórum Nacional dos Conselho Estaduais e Distrital de Educação (Foncede), do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). No evento, o ministro da Educação, Camilo Santana, declarou que “na busca pelo consenso, o que nos une é a certeza de que nossa juventude merece mais oportunidades, com Ensino Médio atrativo e de qualidade”.

Para pesquisadores do Ensino Médio, o Projeto de Lei é um avanço diante do Novo Ensino Médio mas a “busca pelo consenso” pode ter ido além do necessário.

“Esperávamos que essa nova lei trouxesse uma redação que contemplasse as demandas dos movimentos sociais, dos estudantes e das entidades científicas do campo que pesquisa o tema. O PL está no meio do caminho, esses percursos de aprofundamento são decorrentes do conjunto de forças que defendiam a reforma anterior, não consigo fazer grande diferença entre o itinerário formativo e essa proposta. Foi uma forma de conciliação”, avalia a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás e diretora da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), Miriam Fábia Alves.

Fernando Cásio, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e integrante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, também tem avaliação semelhante. “Prevaleceu a ideia de que revogar é algo forte demais e que podemos ‘reformar a reforma’. A solução do MEC é uma tentativa de apaziguamento de tensões que existiam, existem e continuarão existindo. Os problemas mais graves [do PL 5.230/23] estão na educação profissional. Continuo com o entendimento de que nós deveríamos revogar a reforma do ensino médio, sem prejuízo de debater uma proposta.”, afirma ele.

Em nota enviada ao Portal EPSJV, o Ministério da Educação afirma que “o Governo Federal encaminhou para o Congresso Nacional o projeto de lei (PL) - que estabelece diretrizes de reestruturação da Política Nacional do Ensino Médio - e seguirá os trâmites da Casa. A proposta foi construída em diálogo com diversos setores conectados ao tema, inclui aumento da carga horária mínima e prevê retomada de todas as disciplinas obrigatórias da Formação Geral Básica”.

Miriam e Fernando consideram que o projeto de lei também tem pontos positivos. “A proposta de carga horária é uma vitória para conter o esfacelamento da formação geral. A retomada de disciplinas para a formação geral também é benéfica”, avaliou a diretora da Anped. O professor da USP observa que um dos pontos mais relevantes é a questão da carga horária. “Atualmente, a formação geral básica está limitada a um máximo de 1800 horas letivas totais, é algo inédito, uma lei [a da “reforma”] para limitar o quanto as escolas podem ensinar de História, de Física, de Geografia. É uma anomalia! O PL também coloca como obrigatoriedade que esse ensino seja presencial, isso também é um avanço considerando o a desregulamentação profunda que o Novo Ensino Médio trouxe ao permitir o ensino a distância, suscitando mecanismos de privatização da oferta escolar direta no âmbito das redes estaduais”, ressalta o integrante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

O que fazer no período de transição?

A professora da UFG acredita que o PL possa reduzir a atual fragmentação curricular, mas é preciso olhar para os estudantes que estão no Ensino Médio hoje. “A juventude que já entrou na roda merece ter um reforço na formação geral básica e as redes precisam fazer um investimento significativo nisso. E também é preciso remontar toda a organização escolar da rede, porque a fragmentação curricular a desmontou”, afirma.

Para o pesquisador da USP, a implementação do NEM no Estado de São Paulo pode servir de exemplo sobre o que - e como – não fazer a transição entre as diferentes legislações. “São Paulo é um estado que se orgulha de ser a vanguarda do atraso em termos de política educacional e já propôs fazer uma ‘reforma da reforma’ do Ensino Médio antes da publicação desse PL que acabou de ser protocolado. Isso mesmo após o estado ter feito cinco mudanças curriculares no Ensino Médio desde 2019. Nos últimos anos, as fundações empresariais estão utilizando as redes de ensino estaduais como um laboratório de política educacional, fazendo reforma sobre reforma, atropelando as comunidades escolares e a elaboração de um currículo estadual”, destaca.

Além da transição na rede e seus impactos na vida escolar de alunos e profissionais da Educação, a tramitação do PL ocorre em paralelo às etapas locais e regionais da próxima Conferência Nacional de Educação (Conae), que ocorrerá em janeiro de 2024; e ao processo de acúmulo de propostas que comporão o próximo Plano Nacional de Educação (PNE) 2024-2034. Miriam e Fernando temem por uma desconexão entre o que o Congresso Nacional aprovará e o documento que será formulado pelo conjunto da sociedade. “Podemos ver uma desconexão entre o que a Conae proporá, o que essa conferência acumulará para a formulação do próximo PNE e o que será aprovado no PL. São muitas forças em disputa, então a Conae precisa ser um espaço para pressionar a favor não apenas de um melhor ensino médio”, propõe Miriam.

“Acabamos de ter a reunião anual da Anped e estava lá a secretária de Educação Básica do MEC, em um auditório lotado demandando em coro a revogação da reforma do Ensino Médio. Por outro lado, você tem um campo empresarial vinculado a institutos, fundações financiadas por bilionários, grupos de interesse econômico direto ou indireto que desejam a manutenção desse modelo de Ensino Médio, pois foram eles que elaboraram e colocaram essa proposta de pé durante o governo de Michel Temer. A Conae deveria ser o espaço para pautar o Ensino Médio e propor o projeto de lei, não uma consulta pública do MEC. O processo político é complexo e traz essas contradições, termos uma Conferência Nacional de Educação para debater o PNE enquanto um PL sobre a estrutura do Ensino Médio corre no Congresso para virar lei. Ou seja, continuaremos atolados sob os mesmos problemas e debatendo a mesma pauta”, complementa Fernando, para quem “isso tem a ver com a falta de coragem do Ministério da Educação de pautar as discussões e de colocar o debate na sociedade de maneira forte”.

Ensino Profissional e Técnico capturado pela lógica privada

Para a diretora da Anped, a formação profissional e técnica, da forma como está colocada no PL, especialmente com cursos de curta duração e de formação inicial continuada, continuará enfrentando problemas graves e manterá a possibilidade de uso de verbas públicas financiando cursos ruins da iniciativa privada. Ela defende a experiência do Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade Educação de Jovens e Adultos (Proeja) como uma possibilidade a ser inserida no projeto de lei enviado ao Congresso. “Ele foi um programa bastante interessante e. na época de sua implementação, houve todo um esforço do governo federal de induzir uma política para as redes. Qual era a ideia? Uma formação integrada, entre a geral e a profissional. Apesar da crítica de que isso é utópico, para mim é um princípio que poderia balizar novas experiências de educação profissional integrada ao Ensino Médio. Especialmente para os jovens trabalhadores, há um impacto muito significativo ao final do curso”, defende.

O modelo dos institutos federais (IFs), segundo ela, só seria viabilizado com a elevação considerável do orçamento para a educação das redes estaduais, responsáveis – a partir do pacto federativo – pela oferta de matrículas no Ensino Médio. “O modelo dos IFs demanda investimentos curriculares e financeiros. Os professores dos IFs têm dedicação exclusiva e outra condição de trabalho, diferente dos professores das redes estaduais, que, em larga medida, trabalham em mais de uma escola. E, nos IFs, a infraestrutura de laboratórios para o desenvolvimento de tecnologias é muito superior”, complementa Miriam.

De acordo com Fernando, os problemas mais graves deste PL dizem respeito à educação profissional e esse é o grande ponto de disputa que está colocado. “Ele mantém um modelo que tem educação profissionalizante precária, feita por professores ‘privatizados’, em uma escola técnica pública, que vai continuar atendendo 0,9% dos estudantes do Ensino Médio. Na verdade, não se pretende investir dinheiro em educação pública de qualidade para pobres. Por isso não se debate, ao mesmo tempo, a ampliação do acesso ao ensino superior. Não vai se mexer um milímetro no acesso ao ensino superior de alta qualidade”.

De acordo com ele, os modelos públicos bem-sucedidos em curso no país são os dos institutos federais, que participam do debate reivindicando suas experiências formativas e seus modelos de ensino médio público de alta qualidade, mas estão sendo invisibilizados por aqueles que querem, simplesmente, precarizar a formação técnico profissional. “Isso ocorre porque o modelo de Ensino Médio público integrado com educação profissional tecnológica de alta qualidade tem custo elevado. O custo por aluno no Instituto Federal é muito maior do que o do aluno em uma rede estadual regular. A lógica da reforma do ensino médio foi a de reduzir o custo da educação para os mais pobres”, observa Fernando.

O PL, bem como outras políticas adotadas pelo MEC, na visão do pesquisador, não reverte essa tendência, mantendo ilhas de excelência que contrariam o princípio constitucional de que o Estado deve tratar todos de forma isonômica.

“É ideológico. Muitas das reformas educacionais neoliberais são profundamente calcadas em crenças. Elas são tão ideológicas quanto as demandas do movimento social, estas que são acusadas de serem ideologizadas. Há uma visão de que a educação pública precisa caber nos orçamentos e, portanto, a gente tem que fazer o que é possível com o ‘cobertor curto’ e aí as pessoas mais pobres vão ter acesso a uma escolinha mais humilde, mais frugal, que é o que é possível. Claro, existe um projeto societário aí, uma visão do que deve ser o a divisão da sociedade. As pessoas que vão ter acesso a uma educação de qualidade melhor, que vão usufruir do direito à educação, e aqueles que não farão isso por várias razões, inclusive, porque o Estado não pretende colocar recursos para viabilizar, por exemplo, a ampliação substantiva de vagas no ensino profissional tecnológico qualificado”, aponta ele.

O professor da USP complementa: “Veja esses modelos de educação em tempo integral, e é importante usar essa nomenclatura porque não estamos falando de educação integral. Essa escola de jornada ampliada vem sendo adotada como um modelo preferencial para a implementação da reforma do Ensino Médio. Esses modelos são excludentes, criam escolas para um número pequeno de alunos e, privilegiam aqueles com maior acesso ao capital cultural. Há acúmulo de evidências empíricas e científicas disponíveis que apontam que esses modelos são calcados em um princípio de justiça que viola a Constituição Federal. A Constituição define que uma das funções do estado brasileiro é reduzir desigualdades e observamos políticas educacionais que criam escolas para um número pequeno de estudantes mais brancos e mais ricos dentro de uma rede pública. Esse é o pano de fundo”, analisa.

Para a maioria dos estudantes continuará sobrando, de acordo com Fernando, a opção de uma formação voltada aos interesses do mercado. “Há um grande conjunto de atores políticos provenientes do setor privado, com projeto societário claro e diretriz para a formação profissional, atuando sobre qual deve ser o destino dos jovens egressos do Ensino Médio. São eles os promotores dos chamados cursinhos e cursos FIC [Formação Inicial e Cotinuada]. O texto do PL não prevê Ensino Médio integrado ao técnico em tempo integral em três anos ou Ensino Médio integrado em turno parcial em quatro anos, opções que seriam mais viáveis para os filhos das classes subalternizadas”.