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Estudo aponta que mais de 4,5 mil profissionais de saúde morreram durante o auge da pandemia de Covid-19

Levantamento realizado pela Internacional de Serviços Públicos (ISP) e produzido pela Lagom Data mostra que desses, 70% eram auxiliares ou técnicos de enfermagem e 24% eram enfermeiros
Erika Farias - EPSJV/Fiocruz | 18/11/2022 15h59 - Atualizado em 18/11/2022 16h22

Não há dados oficiais sobre quantas pessoas trabalharam na linha de frente no combate à pandemia de Covid-19, mas o que se sabe é que mais de 4,5 mil profissionais de saúde morreram no Brasil entre março de 2020 e dezembro de 2021. Os números fazem parte de um levantamento realizado pela Internacional de Serviços Públicos (ISP) que avaliou o impacto da Covid-19 entre profissionais da saúde do Brasil. A pesquisa produzida pelo estúdio de inteligência de dados Lagom Data utilizou dados do Ministério da Saúde (MS) e do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS). Em meio a uma das piores crises sanitárias do século e a todo desconhecimento sobre a doença, enquanto os profissionais de saúde se equilibravam entre salvar vidas e preservar suas próprias, era gritante o paradoxo do reconhecimento: aplausos de desconhecidos – isolados em suas residências – por diversas cidades do país, ao mesmo tempo em que, ainda sem contar com a disponibilidade da vacina, precisavam lidar diariamente com a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados para poderem trabalhar. Um quadro que, segundo revelou o estudo, levou esses trabalhadores a registrarem o dobro de mortes em relação à média dos dois anos anteriores. E mais: as médias de mortes extras entre os profissionais eram mais altas do que as do total de profissões no Brasil.

Para a secretária sub-regional da ISP para o Brasil, Denise Motta Dau, os números estão vinculados às péssimas condições que esses profissionais enfrentaram para trabalhar. “Esses dados complementam a pesquisa nacional Trabalhadores Protegidos Salvam Vidas que a ISP realizou no Brasil entre março e junho de 2020. Detectamos, por exemplo, que 63% dos trabalhadores da saúde não possuíam EPIs em número suficiente, 69% não haviam recebido capacitação técnica para realizar o protocolo de atendimento à Covid-19 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e 54% estavam enfrentando algum tipo de sofrimento psíquico. A maioria, mesmo ao manifestar sintomas de Covid, não tinha acesso rápido à testagem, o que, em se tratando de um serviço essencial, é um absurdo pois expôs ao contágio colegas e a própria população atendida”, explica. A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Márcia Valéria Morosini, também reforçou a importância do papel governamental na condução da pandemia. “Há que se destacar a responsabilidade pela gestão nacional da resposta do Sistema Único de Saúde (SUS), que teve um papel muito importante no agravamento dos efeitos da pandemia tanto para os trabalhadores, quanto para os profissionais da saúde. A descoordenação, o atraso na compra e distribuição de vacinas, a difusão de informações não validadas cientificamente, a não provisão dos recursos necessários em tempo hábil entre outros aspectos cumpriram um papel nefasto nesse processo, agravando os efeitos deletérios da pandemia e criando obstáculos à proteção dos trabalhadores”, afirma.

Se a desvalorização já é ruim para qualquer área, para o setor saúde, que lida com vidas e mortes, é lamentável e bastante prejudicial para que os serviços essenciais oferecidos tenham boa qualidade

Precarização do trabalho

O que se observa com o estudo produzido pela Lagom Data é que 70% dos 4,5 mil profissionais que morreram em 2020 contaminados pela Covid 19 eram auxiliares ou técnicos de enfermagem e 24% eram enfermeiros. “Sabemos que o processo de trabalho em saúde reproduz a divisão social do trabalho em geral nas formações sociais capitalistas e, de modo mais exacerbado, nas sociedades de capitalismo dependente, como é o caso do Brasil. É um processo de trabalho bastante marcado por desigualdades relativas à remuneração, condições e relações de trabalho. Em nosso país, os chamados técnicos em saúde são inseridos de modo subordinado e subalternizado no processo de trabalho em saúde. Seu trabalho tem menor visibilidade, valorização social e eles são mais facilmente substituíveis, devido à qualificação mais frágil e por haver maior oferta de trabalhadores”, explica Morosini.
Tais desigualdades escancaram a realidade de que aqueles que atuaram mais próximos aos pacientes com Covid-19 foram também os mais impactados.  “Isso demonstra a importância de melhorar as condições de trabalho e valorizar a enfermagem. Atualmente, esta área luta pela implementação do piso salarial aprovado no Congresso Nacional. Os valores, embora tragam avanços para valorização da categoria, não são altos. Mesmo assim os empregadores do setor privado estão questionando o piso no STF, alegando - embora estejam entre os setores que mais lucram - que não tem verbas para arcar com o pagamento”, argumenta Denise Dau. Segunda ela, outro exemplo de desvalorização é que as categorias de trabalhadores da saúde não conquistaram reivindicações fundamentais,  como a regulamentação da jornada máxima semanal de 30 horas, a carreira multiprofissional e o direito à negociação coletiva efetiva. “Se a desvalorização já é ruim para qualquer área, para o setor saúde, que lida com vidas e mortes, é lamentável e bastante prejudicial para que os serviços essenciais oferecidos tenham boa qualidade”, destaca Dau.

Desigualdades

As mulheres compõem majoritariamente o setor saúde. Mais expostas ao contágio, o estudo mostrou que oito a cada dez profissionais da saúde que morreram de Covid no país eram mulheres. Além disso, 47% dos profissionais que morreram eram mulheres e negras, o que comprova o peso das desigualdades de oportunidades de gênero, raça e classe. “Historicamente, a tarefa de trabalhos domésticos e cuidados familiares com doentes, idosos e crianças sempre foi imposta às mulheres e no mundo do trabalho há uma transferência subjetiva dessa concepção. A função é tratada como ‘dom natural’, para justificar que não há necessidade de formação técnica, capacitação, ascensão e valorização profissional e salarial.  Ademais, a questão racial demonstra, junto com os dados de precarização, que existe maior número de mulheres negras em situações informais ou com contratos temporários. E os baixos salários no setor obrigam o conjunto de profissionais do setor a terem duplo (ou até triplo) vínculo de trabalho”, explica Dau.

Há muita luta pela frente que exigirá organização e participação política da classe trabalhadora para que possamos reverter esse quadro

Desafios

O estudo demonstra ainda que o total de mortes de Covid na saúde é 67% maior do que as mortes informadas entre os com emprego formal, indicando o alto número de pessoas que atuaram neste período sem carteira assinada. Uma precarização que já se mostrava antes da pandemia, mas que tem se alastrado ainda mais.  “Há os desafios acumulados pelo desfinanciamento do SUS e pela precarização das relações e condições do trabalho que precisam ser enfrentados com urgência, como prioridade na pauta política da saúde. Além disso, os desafios se ampliaram uma vez que houve uma piora das condições sociais e econômicas, assim como sanitárias. Condições clínicas dos usuários do SUS se agravaram pela descontinuidade do acompanhamento durante a pandemia e novas condições clínicas (derivadas ou não da Covid) associadas à deterioração das condições econômicas e sociais têm se apresentado aos serviços de saúde. Há muita luta pela frente que exigirá organização e participação política da classe trabalhadora para que possamos reverter esse quadro”, conclui Márcia Valéria Morosini.