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Fator Previdenciário é considerado inconstitucional

Juiz de São Paulo determina que trabalhador tenha aposentadoria recalculada sem a utilização do mecanismo que aumenta o tempo de contribuição para a previdência
Leila Leal - EPSJV/Fiocruz | 21/12/2010 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

No início deste mês, uma decisão da 1ª Vara Federal Previdenciária, em São Paulo, reacendeu os debates sobre a aplicação do fator previdenciário no Brasil. O juiz Marcus Orione julgou procedente uma ação, movida por um segurado do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que solicitava o recálculo do valor de seu benefício de aposentadoria sem a incidência do mecanismo. Na sentença, o juiz afirmou que a lei que instituiu o fator previdenciário (9876/99) utiliza, para o cálculo da renda mensal inicial do segurado, elementos não permitidos pela Constituição – o que, segundo sua avaliação, viola o próprio direito do cidadão ao benefício.

Entendendo o fator previdenciário

O fator previdenciário foi instituído em 1999, um ano depois da primeira reforma realizada no sistema previdenciário brasileiro, e exige que os trabalhadores contribuam por mais tempo com a previdência para que recebam seus salários integralmente ao se aposentarem. Ele é aplicado para o cálculo de todas as aposentadorias por tempo de contribuição, e pode também, opcionalmente, ser utilizado nas aposentadorias por idade. Funciona a partir de quatro elementos: taxa de contribuição do trabalhador, idade, tempo de contribuição e expectativa de sobrevida do cidadão, que é definida de acordo com tabela formulada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao ser aplicado, somam-se, ao total de anos de contribuição do segurado, cinco anos para as mulheres, cinco anos para professores e dez para professoras do ensino básico, fundamental e médio, respectivamente.

Na prática, funciona assim: uma fórmula baseada nesses quatro elementos produz um número, o fator previdenciário, pelo qual a média dos maiores salários do trabalhador deve ser multiplicada. Dessa forma, quando um segurado completa o tempo necessário para pedir a sua aposentadoria com valor integral (35 anos para os homens e 30 para as mulheres), ele não terá esse direito garantido: a média de seus salários será multiplicada pelo fator e, dessa multiplicação, sairá o valor de seu benefício. Um exemplo apresentado na Revista Poli n° 14, que teve matéria de capa sobre a previdência social, ajuda a esclarecer: “O fator previdenciário para um homem que se aposenta aos 55 anos de idade e 35 anos de contribuição é de 0,723. Se a média de seus maiores salários era de R$ 3 mil, como ele completou o tempo necessário para pedir a aposentadoria integral, deveria se aposentar recebendo os mesmos R$ 3 mil. No entanto, esse valor deve ser multiplicado por 0,723. Ou seja: aposentando-se nessas condições, ele vai receber apenas R$ 2.169”.

Para Sara Granemann, professora e pesquisadora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ), o próprio mecanismo utilizado para a obtenção do valor das aposentadorias afasta os trabalhadores de seu direito: “A fórmula passou a ser muito sofisticada, quase impossível de ser compreendida pela maioria dos trabalhadores. Para checar se o cálculo está correto, os segurados acabam dependentes de advogados, contabilistas e vários outros oferecedores desse tipo de trabalho, que cobram valores altíssimos para tal. Ao mesmo tempo, há uma instituição, o INSS, que arbitra as condições de aposentadoria e seus valores sem que o usuário da política social tenha controle sobre isso. Então, o cálculo do fator previdenciário excluiu a imensa maioria dos trabalhadores do controle sobre o seu próprio direito”, avalia. E completa, destacando que as consequências da implementação desse fator não param por aí: “Isso já seria suficientemente grave para o condenarmos. Entretanto, há mais do que isso: o fator previdenciário, com essa sofisticação de contas, imputou aos trabalhadores um acréscimo de, em média, sete anos no seu tempo de trabalho para que consigam o benefício que teriam, sem o fator, no tempo previsto. E há, também, reduções graves dos valores das aposentadorias”.

Desdobramentos

A sentença do juiz Marcus Orione também critica a dificuldade do cálculo do fator: “A fórmula constante do fator previdenciário, extremamente complexa – complexidade absurda, considerando em especial a capacidade de sua compreensão pelo destinatário final, o segurado -, passou, com o advento da Lei 9876/99, como visto, a ser determinante para o cálculo do valor inicial das aposentadorias por idade e por tempo de contribuição”, diz o texto. A sentença ainda chama a atenção para o argumento, comumente utilizado, de que a instituição do fator previdenciário não modifica a possibilidade de o segurado aposentar-se com o mesmo tempo de contribuição: “Nem se diga que uma coisa é requisito para a obtenção do benefício – que continuaria a ser apenas o tempo de contribuição – e outra, totalmente diversa, é o cálculo de seu valor inicial. Ora, o raciocínio é falacioso: somente é possível se obter o benefício a partir da utilização dos elementos indispensáveis para o cálculo da renda mensal inicial”, argumenta o juiz que, por meio da assessoria de imprensa da Justiça Federal de São Paulo, informou à reportagem que está impedido, pela legislação, de conceder entrevistas sobre sua sentença.

Para Sara Granemann, a decisão do juiz pode ser um passo importante para a luta pelo fim do fator previdenciário: “Essa sentença é uma vitória que tem que ser saudada. Pensando nas perspectivas que ela abre, utilizo como referência a obra ‘O Capital’, de Karl Marx. No capítulo em que analisa a jornada de trabalho, Marx chama a atenção para a importância de lutas contra essas medidas específicas. Garantir esse tipo de reivindicação (no caso, derrubar o fator previdenciário) não altera significativamente as relações capitalistas, mas modifica as condições de vida do trabalhador. E qualquer conquista que tenha uma categoria, ou mesmo um trabalhador individualmente, abre espaço para que seja estendida a toda a classe”, aponta, lembrando que ainda haverá, provavelmente, outras etapas nessa discussão: “É provável que o Estado brasileiro recorra, em outras instâncias, contra essa sentença do juiz. Mas, mesmo assim, a sentença por si já auxiliou na luta, repondo a questão em outro nível. Especialmente porque, provavelmente, estamos novamente às portas de uma nova contrarreforma previdenciária no Brasil”, diz.

A Confederação Brasileira dos Aposentados e Pensionistas (Cobap) também avalia positivamente a decisão da Vara Previdenciária de São Paulo: “Consideramos o fator previdenciário um grande prejuízo trazido pela atual legislação. Inclusive, a sua extinção foi aprovada no Congresso [em junho deste ano], mas a medida foi vetada pelo presidente Lula. No próximo ano, continuaremos mobilizados pelo fim do fator previdenciário e, entre nossas ações, está o acompanhamento da sentença do juiz Marcus Orione. Acreditamos que, depois do período de apelações, essa decisão possa terminar nos tribunais superiores, e certamente a nossa Confederação entrará como parte interessada no assunto”, afirma Nelson Osório, diretor financeiro da entidade.

O fim do fator previdenciário foi aprovado através de uma emenda à Medida Provisória 475/09 , de autoria do deputado Fernando Coruja (PPS-SC). A emenda, que previa a extinção do fator a partir de 1° de janeiro de 2011, foi vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo Nelson Osório, a Cobap tem expectativas de que o governo reabra a discussão a partir de projetos de lei que hoje tramitam na Câmara, como o 3299/08 , proposta por Paulo Paim (PT-RS) no Senado Federal. O substitutivo proposto por seu relator na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara, o deputado Pepe Vargas (PT-RS), indica uma nova forma de cálculo dos benefícios da aposentadoria. “Ela se baseia no chamado cálculo do 85-95. A aposentadoria integral para mulheres seria garantida quando tempo de contribuição e idade, somados, chegassem a 85 anos. E, no caso dos homens, a soma teria que dar 95 anos”, explica. Ele ressalta, no entanto, que a regulamentação da aposentadoria precisa levar em conta as condições de vida do trabalhador brasileiro: “Defendemos uma regulamentação na aposentadoria, mas achamos que o tempo de trabalho precisa levar em consideração que o trabalhador no Brasil tem condições, muitas vezes, precárias. Não podemos comparar nossa realidade com a de um trabalhador da Europa, por exemplo. Lá, os trabalhadores têm assistência à saúde desde que nascem, bons salários e um patamar de vida superior ao nosso. Aqui, há muitos trabalhadores que chegam aos 60 anos sem condições de exercerem suas profissões. E isso precisa ser levado em conta”, pondera.