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Funai em xeque

Denúncias apontam para a crescente falta de autonomia do órgão frente às prioridades definidas pelo governo federal.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 18/12/2015 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46
Em 2013, um grupo de 140 índios mundurukus se reuniu no prédio da Funai em protesto contra a construção da usina Tapajós Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom - ABr

"A orientação é no sentido de que nenhum processo de demarcação em nenhum estágio, delimitação, declaração ou homologação, tramite sem a avaliação do Ministério da Justiça e da Casa Civil". A afirmação é de Maria Augusta Assirati, ex-presidente interina do órgão, e foi feita em entrevista concedida à Agência Pública no início de 2015. À frente da Funai por um ano e quatro meses, Assirati saiu após perder a queda de braço envolvendo o licenciamento da usina de São Luiz do Tapajós, no Pará. O projeto previa a construção de uma barragem que alagaria parte da Terra Indígena (TI) Munduruku. Outras alternativas foram apresentadas, mas pastas como Minas e Energia e Planejamento, segundo Assirati, não reconheciam a existência de indígenas na área e defendiam um licenciamento rápido para que o leilão de concessão da usina fosse feito em 2014. A essa denúncia se somam outras e, aos poucos, o quebra-cabeça vai delineando os vetores institucionais que contribuem para o cenário de violência extrema a que estão submetidos os povos indígenas em todo o país. A reportagem da EPSJV/Fiocruz foi atrás de um fio dessa meada.

Em 2007, o Ministério Público Federal firmou um Compromisso de Ajustamento de Conduta com a Funai. O CAC, como é conhecido, é um instrumento jurídico que tem objetivo e data de cumprimento. O prazo para concluir os trabalhos e encaminhar o resultado para o Ministério da Justiça era 2010. A meta era obrigar a Funai a constituir Grupos Técnicos (GTs) para identificar e delimitar sete Terras Indígenas: Iguatemipegua, Amambaipegua, Douradopegua, Dourados-Amambaipegua, Brilhantepegua, Ñandeva e Apapegua, totalizando 33 territórios, dentre eles áreas nacionalmente conhecidas pela gravidade dos conflitos, como Pyelito Kue e Mbarakay. Em 2012, a campanha ‘“Somos todos Guarani Kaiowá’” viralizou nas redes sociais depois que os indígenas dessas áreas publicaram uma carta em que reagiam à ordem de despejo judicial: “Já aguardamos esta decisão. Assim, se é para decretar a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay pedimos que nos enterrem todos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos desse local com vida e nem mortos. Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo de modo acelerado”, denunciaram.

Levi Marques coordenou o grupo técnico da TI Dourados-Amambaipegua. Professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), o antropólogo ajuda a entender por que desde 2008, quando os GTs foram lançados, até hoje o trabalho previsto pelo CAC é inconclusivo. Segundo ele, o funcionamento dos GTs do CAC foi "completamente diferente" do procedimento normal. "Nos anteriores, a Funai assegurava o acesso dos índios às áreas que estavam sendo identificadas. O antropólogo não sabe onde é a terra, mas os índios vão apontando os elementos que dão sustentação à tradicionalidade da área, à proposta de limite”, explica. Contudo, nem indígenas nem antropólogos puderam entrar nas fazendas. Os produtores passaram a pedir liminares na Justiça contra os estudos. Nas palavras de Levi, um “clima de tensão” e “pressão política” contra as demarcações tomou conta do estado.

“Em 2007, quando houve a assinatura do compromisso, paralelamente tínhamos o processo de demarcação da Raposa Serra do Sol, que talvez tenha gerado o primeiro grande movimento de mobilização anti-indígena. Várias suposições de Raposa foram transpostas para Mato Grosso do Sul, como a questão da demarcação contínua. Houve uma propaganda falsa de que os ‘municípios iriam desaparecer’ e isso causou uma reação desproporcional das pessoas em geral, não só dos produtores”, lembra Marco Antônio Delfino, procurador responsável pelo acompanhamento do CAC. “E a Funai não bancou a entrada nas terras particulares”, resume Levi Marques, que continua: “Em outros GTs que coordenei também havia oposição dos proprietários. Quando isso acontecia, a Procuradoria da Funai ou o Ministério Público entravam na Justiça com um pedido para assegurar a execução dos trabalhos. Desta vez não pode ser feito assim porque os proprietários criaram um clima hostil que acabou intimidando o governo. A Funai e o Ministério Público também não tiveram força política para assegurar o acesso aos índios. Todo o ambiente em que se desenvolveu o estudo foi extremamente adverso”.

Marco Antonio corrobora que chegaram ao MPF relatos de perseguição de antropólogos. Alguns foram ameaçados fisicamente. Segundo ele, o Ministério Público denunciou presidentes de sindicatos rurais identificados como autores das ameaças. Mas ficou por aí.  “Não houve por parte da Funai ou do governo federal uma atuação adequada no sentido de proteger essas pessoas e também não houve, apesar de ter sido várias vezes acordado, a formação de uma força-tarefa jurídica para a proposição de medidas cautelares em massa [para garantir a realização dos trabalhos]. Optou-se por uma solução política que quis conciliar partes inconciliáveis”, avalia.

De acordo com Levi, a orientação da Funai passou a ser que se fizesse “um trabalho discreto”, com levantamento bibliográfico e entrevistas com os indígenas sem pisar nos territórios reivindicados. Outro problema elencado pelo antropólogo foi a desmobilização dos GTs. Com isso, o trabalho foi interrompido por anos. E com o passar do tempo, os critérios da Funai para avaliação dos relatórios foram mudando, acrescenta Levi. “Por isso também se responsabilizam os GTs por não terem entregado os relatórios ou não terem feito trabalhos conclusivos, mas as condições necessárias ao desenvolvimento do trabalho não foram asseguradas, foram muito ruins”, reforça.

Em que se pese todo o processo, alguns GTs concluíram seus relatórios.  É o caso da primeira parte do estudo Dourados-Amambaipegua, feito por Levi. Contudo, a publicação não aconteceu. “Por que não são publicados? Imagino que é porque a Funai está completamente atrelada a outras instância de poder acima – Ministério da Justiça, Casa Civil – e toda decisão administrativa só é tomada se tiver a anuência das esferas mais centrais do poder, o que não acontece”, analisa o antropólogo.

Procurada pela repórter, a Funai se defendeu e argumentou que as dificuldades enfrentadas pelos GTs  “estão associadas às limitações financeiras e de recursos humanos, aos inúmeros entraves jurídicos para o prosseguimento dos estudos, somado ao contexto político desfavorável”. Marco Antonio Delfino contrapõe essa informação. A partir de 2010, o Ministério Público partiu para a aplicação da multa prevista no CAC, R$ 1 mil por dia. Segundo o procurador, a tese do MPF era, inclusive, propor a penalização financeira do próprio presidente da Funai, que na época era Márcio Augusto Freitas. “Ele disse em juízo que não havia limitação de recursos humanos ou materiais para a realização do CAC. E aí, hoje, um dos motivos alegados para o descumprimento é falta de recursos materiais e humanos. Em suma, não houve priorização orçamentária e suporte jurídico adequado para que as ameaças não tivessem prejudicado o trabalho”, afirmou, ponderando: “Por outro lado, houve descumprimento por parte de alguns antropólogos dos contratos celebrados com a Funai. Os dois lados estão de alguma forma contando parte da verdade”.

A Funai também respondeu que uma parte dos relatórios apresentados não atendiam os dispositivos legais “necessitando de complementações e adequações que têm sido realizadas com morosidade” pelos antropólogos e caracterizou como “temerário” o encaminhamento de relatórios inadequados “diante das dificuldades institucionais para avanço dos procedimentos de identificação e delimitação das Terras Indígenas no Mato Grosso do Sul”. A Funai garante que “todos os relatórios efetivamente finalizados foram encaminhados para publicação”. Contudo, segundo Marco Antonio, o MPF chegou a uma conclusão bem diversa: “Quando houve o pagamento da multa, verificamos que havia um relatório específico – Ypo´i /Triunfo – que estava há dez meses na mesa do presidente da Funai com determinação, ainda que não oficial, de não assinatura. Essa determinação teria vindo do Ministério da Justiça e foi confirmada informalmente pela ex-presidente da Funai [Maria Augusta Assirati] em conversa com indígenas e, depois, em entrevista. Da mesma forma quando Flávio Chiarelli assume a presidência da Funai, o relatório permaneceu onde estava. E está lá até hoje, mesmo não tendo qualquer obstáculo técnico ao seu cumprimento”. Essa informação deu sustentação à abertura de um processo de improbidade administrativa que tem como réus o presidente da Funai e o ministro da Justiça. Chiarelli, que deixou a Funai para assumir o posto de assessor especial do ministro da Justiça para a questão indígena, respondeu por e-mail que não é correto imputar ao Ministério a demora na conclusão dos trabalhos, “uma vez que os próprios antropólogos que coordenaram os GTs demoraram anos para concluírem os seus trabalhos”. Em nota, a Funai afirma que a análise técnica do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Y’poi/Triunfo foi concluída e que os estudos mencionados por Levi Marques da TI Dourados-Amambaipegua estão em fase final.