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Gerente de unidade de saúde chega ao Norte e Nordeste em meio à crise

Portaria do Ministério da Saúde garante mil vagas para o cargo, mas pesquisadores questionam como estes trabalhadores serão absorvidos dentro do contexto de corte de verba e redução de equipe
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 27/01/2020 11h35 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Elza Fiúza/ABrMônica Nunes é enfermeira e atua hoje como gerente de unidade básica de saúde no município do Rio de Janeiro. Entre suas tarefas está o monitoramento dos processos de trabalho da Unidade Básica de Saúde e a atualização de dados nos sistemas de informação. O cargo de gerente foi criado em 2017 pela Nova Política de Atenção Básica (PNAB) com intuito de desafogar outros trabalhadores da área clínica, como os enfermeiros, de incubências gerenciais. Mas, na prática, isso ainda não acontece.

Na última semana de dezembro de 2019, por meio da portaria 3288/2019, o Ministério da Saúde credenciou cerca de 300 municípios, principalmente no Norte e Nordeste do país, para receber incentivo financeiro para a contratação desse tipo de profissional.  Ao todo, serão cerca de mil vagas nesta função, que exige experiência na área de saúde e dá preferência a quem tenha ensino superior - embora não seja uma obrigatoriedade, de acordo com a portaria 2979 de 12 de novembro de 2019. Segundo nota do Ministério quando anunciou as contratações, serão repassados R$ 18,5 milhões para financiar a ação ao longo de 2020.

Em entrevista ao site EPSJV/Fiocruz,  Lucas Wollmann, diretor de projetos da Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde, afirma que a expectativa é de que, com a inserção do gerente na Unidade de Saúde da Família, as atividades administrativas sejam tomadas integralmente por este profissional. “Que este profissional possa assegurar, em conjunto com a equipe, a organização da agenda, dos fluxos de comunicação, avaliação, monitoramento e planejamento, assim como a estruturação do cuidado através da gestão da clínica baseada em evidências”, aposta.

De acordo com o Programa de Melhoria de Acesso e Qualidade (PMAQ), somente  205 das Unidades Básicas de Saúde contam com a figura do gerente e, segundo o Observatório de Recursos Humanos em Saúde da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais, em estudo publicado em 2009, unidades com a presença de gerentes tinham melhores resultados em saúde. De acordo com o levantamento, quando as unidades não têm gerente exclusivo, outros profissionais como enfermeiros e médicos gastavam, em média, cinco a quinze horas semanais em atividades administrativas. “Isso significa que esses profissionais, que muitas vezes são os únicos nas suas especificidades para o cuidado clínico, deixam de realizar contato com os usuários por estarem em atividades gerenciais. Portanto, não há dúvida da importância de ter um financiamento específico para que os gestores contratem ou aloquem profissionais para essa função”, avalia Claunara Mendonça, professora adjunta da medicina de família no departamento de medicina social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e  ex-diretora Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde.

No entanto, num contexto de restrição de financiamento por conta da PEC 241 - que congela recursos principalmente da educação e saúde -,  as unidades de saúde têm se desdobrado para garantir a permanência dos que já fazem parte da equipe. Este recurso anunciado pelo governo gira em torno de R$ 713 por gerente cadastrado em municípios que possuem apenas uma equipe de saúde da família e R$ 1.426 para aqueles com o número maior.

Para Carlos Leonardo Cunha - professor Adjunto da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal do Pará e Coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa em Atenção Primária à Saúde na Amazônia - a PNAB, ao reconhecer a participação de um profissional específico para a função de gerente, assume uma postura de reconhecimento do problema e traz possibilidades de financiamento para esse cargo. “No entanto, a questão se desdobra na capacidade financeira da gestão local em identificar e custear um profissional de nível superior para exercer a função, visto que, os incentivos financeiros hoje ofertados pelo Ministério da Saúde são muito baixos. Os municípios de pequeno porte são a maioria no Brasil, com pouco poder de arrecadação e de contrapartida salarial, o que pode afastar, devido à baixa remuneração, os profissionais com os perfis desejados”, explica.

Exigências para o cargo

O texto da PNAB é claro quando especifica a função do gerente da unidade. Seu papel é de  garantir o planejamento em saúde, de acordo com as necessidades do território e comunidade, a organização do processo de trabalho, coordenação e integração das ações. O material ressalta ainda que o gerente não pode acumular funções, o que, na prática - diante da escassez de profissionais e orçamento cada vez mais restrito -, não é possível levar a cabo. “Acumulamos diversas funções. Não é incomum pararmos um trabalho administrativo e fazer um atendimento e vice-versa”, afirma Mônica Nunes.

De acordo com Carlos Leonardo Cunha, apesar de a PNAB ter diversos pontos críticos, a inclusão da figura do gerente é um elemento positivo para o funcionamento das unidades. “Sabe-se que, no Brasil, a gerência de UBS tem sido exercida por enfermeiros em diversas realidades do país. Por vezes, inclusive numa sobreposição de funções com a assistência, com baixo reconhecimento profissional, inclusive relativa à remuneração profissional”, diz.

De acordo com os profissionais ouvidos nesta matéria, as atribuições do Gerente da UBS são complexas e requerem um grande conhecimento da rede de serviços. “Espera-se que o profissional possa contribuir para o aprimoramento e qualificação do processo de trabalho. A flexibilização do cargo para o profissional técnico em gerência em saúde pode ser uma saída, caso o mesmo apresente as competências e habilidades para o cargo", avalia Carlos Leonardo.

Claunara avalia que, via de regra, não há formações específicas para essa função. “O aprendizado é informal, tácito, baseado na experiência, e bons gestores podem ter somente nível técnico. Creio que esse financiamento pode apontar mudanças na formação de níveis técnicos e superiores como os profissionais da Saúde Coletiva, por exemplo, para que adquiram as habilidades que serão exigidas nessa função dentro do Sistema Único de Saúde”, reflete.

Entre as competências estão três áreas fundamentais: gestão de pessoas (relações interpessoais), gestão dos processos de trabalho e  educação permanente baseada nas necessidades de aprendizado da equipe.

Sobre a PNAB

A terceira versão da PNAB foi duramente criticada por diversos setores e instituições. Entre as principais críticas estão a falta de diálogo com as categorias, a limitação de ações e redução de equipes, como, por exemplo, a não obrigatoriedade do agente comunitário de saúde. “Os profissionais de saúde se encontram perante um novo modelo de organização da Atenção Básica, no qual a insegurança é inevitável e o impacto dessa política ainda é desconhecido. É admissível, porém, prever que o financiamento de uma nova modalidade de equipe de AB sem a obrigatoriedade da presença do ACS coloca em xeque a prioridade da ESF, principalmente no atual contexto de retração do financiamento e sem perspectivas de recursos adicionais”, argumenta Carlos Leonardo.

Outro ponto crítico da nova PNAB, segundo ele, refere-se à flexibilização da carga-horária de trabalho dos profissionais das equipes de atenção básica, o que contraria as prerrogativas da ESF ao inviabilizar a construção de vínculos e a longitudinalidade do cuidado. “Atrelada a essa modificação, a atribuição na supervisão do ACS exclusiva ao enfermeiro e a descaracterização do papel do ACS com o aumento de suas atribuições geram prerrogativas e desdobramentos legais do exercício profissional da Enfermagem no país”, conclui.

Para Claunara, as mudanças são principalmente conceituais. “A mensagem que o Ministério da Saúde pode estar dando é que a forma de organização, a composição das equipes, já tão comprovadamente mais efetivas que outros modelos tradicionais de atenção primária que temos hoje no país, já não tem mais reconhecimento por parte do Governo. Esse modelo de atenção  abrangente  já não é tão importante”.

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