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O complexo por trás da campanha

Vacinação nacional expõe desafios do Brasil na produção de equipamentos e insumos farmacêuticos
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 01/03/2021 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Foto: Carlos Magno

Passaram-se poucos minutos entre as autorizações para uso emergencial das vacinas. CoronaVac e AstraZeneca e a aplicação da primeira dose de um imunizante contra o novo coronavírus no Brasil. A imagem da enfermeira Mônica Calazans sendo vacinada no Hospital das Clínicas, em São Paulo, emocionou o país, e ampliou as expectativas para o começo da campanha nacional de vacinação. Os próximos dias, no entanto, foram dominados por incertezas à medida que a população entendia que, para acelerar a imunização, precisaríamos de doses e ingredientes farmacêuticos que estavam longe, na Índia e na China.  

Não era a primeira vez que a sombra da escassez pairava sobre a vacinação contra o SARS-CoV-2. No último dia de 2020, estourou a crise das seringas e agulhas, que mobilizaria atenções no início de janeiro. Uma licitação aberta pelo Ministério da Saúde para comprar 331 milhões de itens acabou arrematando 7,9 milhões.
Tudo isso serviu para expor mais didaticamente do que nunca que, para tirar uma campanha nacional de vacinação do papel, é necessário um conjunto de produtos – que, por sua vez, são fabricados por empresas, a partir de matérias-primas e componentes que podem ser importados. E que tudo isso se agrava num momento em que o resto do mundo está atrás das mesmas coisas.  

“Temos um problema conjuntural derivado da crise sanitária global e da falta de planejamento e coordenação na esfera federal, mas também temos um problema estrutural de dependência tecnológica no Brasil”, resume Julia Paranhos, professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do grupo de pesquisa ‘Economia da Inovação’.

“Em 2020, a importação de matérias-primas, produtos e tecnologias da saúde atingiu 20 bilhões de dólares – o equivalente ao orçamento inteiro do Ministério da Saúde”, situa Carlos Gadelha, coordenador das ações de prospecção da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), citando levantamento próprio, feito com base em dados do Ministério da Economia. Desse total, 12 bilhões de dólares corresponderam à compra de insumos, medicamentos e vacinas.

Três letrinhas roubam a cena

O IFA, sigla para insumo farmacêutico ativo, é o componente responsável por gerar a resposta imunológica em medicamentos e vacinas. De acordo com o mesmo levantamento da Coordenação de Ações de Prospecção da Fiocruz, produzimos por aqui apenas 5% dos ingredientes necessários para atender às demandas nacionais, importando o restante. Por enquanto, essa também é a realidade dos imunizantes que compõem o cardápio da campanha de vacinação contra a Covid-19.

No caso da CoronaVac – vacina desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac que, no Brasil, tem acordo com o Instituto Butantan –, o IFA é o coronavírus inativado. Por enquanto, esse ingrediente é importado da própria Sinovac, cabendo ao Butantan diluí-lo para, em seguida, envasar a vacina. O acordo firmado entre o instituto e a empresa, contudo, prevê a transferência de tecnologia para que o IFA seja fabricado aqui.

Mas, hoje, o Butantan não dispõe da infraestrutura necessária para essa produção. Isso será solucionado em breve: uma fábrica dedicada à CoronaVac começou a ser construída em novembro passado e a previsão é que fique pronta em setembro deste ano. Enquanto a obra não termina, o cumprimento do cronograma acordado entre o centenário instituto, vinculado ao governo de São Paulo, e o Ministério da Saúde, depende da regularidade no envio do IFA da China. O contrato prevê a entrega de 100 milhões de doses ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) até agosto.

Essa também é a situação da AZD1222, nome oficial da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca que, por aqui, tem acordo com a Fiocruz para a produção de 210,4 milhões de doses este ano. A matéria-prima do imunizante é um vírus de resfriado humano (adenovírus) enfraquecido e geneticamente modificado para ensinar nosso sistema imunológico a reconhecer o SARS-CoV-2.

Quem produz o IFA utilizado pela Fiocruz é o laboratório chinês Wuxi Biologics. Isso porque o contrato firmado com a AstraZeneca em setembro é de encomenda tecnológica, que prevê que a fundação faça o processamento final, que envolve formulação, envase, embalagem e rotulagem do produto. O compartilhamento dos conhecimentos necessários para a fabricação do IFA é objeto de outro contrato, de transferência tecnológica, que até o fechamento desta edição ainda estava em andamento. De qualquer forma, a unidade produtora de imunobiológicos da fundação, Bio-Manguinhos, já prepara sua infraestrutura para a fabricação própria do IFA.
Por conta do atual quadro de dependência em relação a esses ingredientes, o mês de janeiro foi marcado por expectativas – e também questionamentos de ordem diplomática. Trâmites burocráticos, como a emissão da licença de exportação, justificaram atraso na remessa dos ingredientes ativos necessários à fabricação das duas vacinas. As cargas ficaram algumas semanas retidas na China, e à certa altura até parlamentares brasileiros resolveram entrar em campo para tentar acelerar a liberação. Ministros de pastas-chave na relação com o país, como Agricultura e Comunicações, também foram escalados para lidar com o problema.

A demora não chegou a alterar o cronograma de entrega do Butantan ao PNI, já que o instituto vinha recebendo lotes do ingrediente ativo – e também doses prontas da CoronaVac – desde novembro. No caso da Fiocruz, o primeiro lote do IFA – suficiente para a produção de 2,8 milhões de doses – só chegou ao Brasil no dia 6 de fevereiro, e o prazo para entrega ao PNI passou a ser março.

Em paralelo, o governo federal adquiriu dois milhões de doses do Instituto Serum, sediado na Índia. Maior fabricante de vacinas do mundo, a empresa já tinha acordo com a AstraZeneca de transferência de tecnologia para a produção do IFA. Foi esse lote que garantiu que as primeiras doses da vacina de Oxford fossem aplicadas por aqui.

Resultado: a campanha nacional de vacinação começou oficialmente no dia 18 de janeiro a partir da distribuição de seis milhões de doses da CoronaVac que vieram prontas da China. No dia 22, o Instituto Butantan concluiu a produção de mais 4,1 milhões com parte do IFA que já tinha. E, no dia 23, as duas milhões de doses fabricadas no Serum reforçaram os estoques, num total de 12,1 milhões de doses disponibilizadas em janeiro. Ambos os imunizantes serão aplicados com reforço de uma segunda dose.

A quarta edição do Plano Nacional de Operacionalização da Vacina contra a Covid-19, lançada em meados de fevereiro, prevê a imunização de 77,2 milhões de pessoas pertencentes a 29 grupos prioritários em 2021. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país tem 212 milhões de habitantes.

Tony Wilston / MS

Vacina “perdeu ingenuidade”

Por trás dessa sequência de fatos e números, existem um conceito e um histórico que ajudam a explicar as dificuldades deste início de campanha. O conceito já apareceu nas páginas da edição nº 71 da Poli, quando o debate público estava mobilizado pela falta de ventiladores mecânicos, equipamentos de proteção individual e reagentes usados nos testes para detecção do novo coronavírus. Trata-se do complexo econômico-industrial da saúde (CEIS), um conjunto interligado de bens e serviços que estão na base do funcionamento dos sistemas de saúde.

Entender o complexo é parecido com aplicar o recurso cinematográfico do flashback. Vamos supor que estamos assistindo à cena de uma pessoa sendo vacinada. O que tornou possível essa ação de saúde preventiva? Para começo de conversa, a pesquisa e desenvolvimento do imunizante, sua produção e distribuição em larga escala... “Essa parte corresponderia ao subsistema de base química e biotecnológica, que tem na indústria farmacêutica sua liderança”, explica Carlos Gadelha. O segundo subsistema é o de base mecânica e eletrônica, e nele estão inseridas as empresas que produzem equipamentos e materiais: frascos, seringas, refrigeradores para conservar as vacinas e, inclusive, máquinas usadas na produção desses imunobiológicos.

“Os serviços prestados à população, como diagnóstico, atenção básica e tratamento hospitalar, estão reunidos em um terceiro subsistema, movido pelas chamadas tecnologias do cuidado”, continua ele – que, junto com um grupo de outros pesquisadores, vem defendendo a introdução de um quarto subsistema que dê conta da indústria 4.0. Ou seja, serviços ligados à informação e conectividade, como inteligência artificial e manejo de gigantescos bancos de dados. “O grande pilar da concepção do complexo é que a saúde constitui um sistema produtivo altamente intensivo em conhecimento, crítico para o Sistema Único de Saúde e para a soberania nacional”, explica Gadelha.

E não é preciso ir muito longe para ver como um dos braços mais conhecidos desse complexo – a indústria farmacêutica – atravessa não só o Brasil e o SUS, mas outros países e sistemas de saúde. Nas últimas décadas, houve um intenso processo de aquisições e fusões, que deixou poucas e grandes empresas na liderança desse setor. Na seara das vacinas, o afunilamento foi ainda maior, com quatro grupos econômicos de matriz norte-americana e europeia concentrando 90% do mercado: Glaxo SmithKline (GSK), Merck, Pfizer e Sanofi.

Hoje, as vacinas respondem pelo quinto maior faturamento de produtos da área farmacêutica. E, nos cálculos de Carlos Gadelha, com a pandemia devem ser catapultadas ao segundo nicho mais lucrativo, atrás apenas dos produtos oncológicos. O faturamento do mercado como um todo é de cerca de 1 trilhão de dólares, com medicamentos contra câncer respondendo por 150 bilhões desse montante. Calculando por baixo o preço das 8,6 bilhões de doses de imunizantes contra o novo coronavírus prometidas para 2021 no mundo, o pesquisador projeta um faturamento adicional de 40 bilhões de dólares para as vacinas, num total de 80 bi. “A vacina perdeu a ingenuidade, é um grande negócio e fator-chave na geopolítica da inovação”, analisa ele.

Esse fenômeno criou distorções que têm custado caro aos sistemas nacionais de saúde e descolado os esforços de inovação das necessidades da maior parte da população mundial. Hoje, 80% das receitas globais de vendas de imunizantes vêm de países ricos, embora essas nações só representem 20% do volume anual de doses fornecidas no mundo. A explicação? Eles têm condições de implementar vacinas de ponta – caras – e isso influencia também as apostas das empresas, deixando a inovação mais longe de doenças que atingem mais as populações vulneráveis.

As farmacêuticas líderes ficam com as duas principais pontas da cadeia global de valor: pesquisa & desenvolvimento e marca – o que se traduz em patentes e domínio de mercado. “Para fazer o que vou chamar de ‘meião’, elas vão contratando ou terceirizando serviços. Fica mais fácil de entender se a gente lembrar o que acontece com a Apple. O iPhone não é fabricado pela Apple, mas por empresas de manufatura. Acontece que a tecnologia e o mercado são da Apple”, compara Gadelha.  

Também nas últimas décadas, houve desconcentração da atividade fabril, que migrou dos EUA e da Europa para outros lugares. No caso da saúde, principalmente para dois países que não saem do noticiário das vacinas: Índia e China. Segundo um relatório da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 37% dos ingredientes farmacêuticos ativos usados no Brasil vêm da Índia, e 35% da China.

“Hoje a maior parte dos fabricantes de IFA estão na China e na Índia, mas é importante entender que há todo um controle por parte das farmacêuticas líderes também da cadeia de IFAs”, observa Felipe Carvalho, coordenador da Campanha de Acesso a Medicamentos da organização não-governamental Médicos sem Fronteiras no Brasil. Isso porque essas empresas detêm as patentes dos ingredientes ativos e podem organizar sua cadeia global de produção da forma como quiserem. “A multinacional dá autorização para um único fabricante produzir aquele ingrediente, ao invés de vários. Ou define para quem a terceirizada pode vender”, explica.

Mesmo que as empresas chinesas e indianas que prestam serviços para as líderes não fiquem com a fatia mais lucrativa do mercado, sua existência diz muito sobre como esses países souberam aproveitar as brechas do sistema. É da economista Julia Paranhos um exemplo que ilustra bem isso.

No âmbito global, cabe à Organização Mundial do Comércio (OMC) arbitrar disputas comerciais entre empresas e países. Na década de 1990, o organismo negociou a adoção de um acordo sobre propriedade intelectual que ficou conhecido pela sigla em inglês: TRIPS. Foi combinado que os países ricos, históricos apoiadores desse acordo que fortalece regras sobre patentes, teriam um período de transição de um ano, e os países em desenvolvimento e nações pobres mais tempo para se adaptar. O Brasil abriu mão disso e, em 1996, aderiu ao TRIPS junto com os países que sediam as grandes farmacêuticas, maiores detentoras das patentes e, por isso, muito beneficiadas pelo TRIPS. “Já a Índia aproveitou os dez anos de transição e, durante esse período, investiu no fortalecimento da indústria local, não só na produção, mas também na pesquisa – e na interação entre essas duas pontas”, compara ela.

Por aqui, os anos 1990 foram de desestruturação da indústria em várias frentes: equipamentos, farmoquímica, farmacêutica... Com o fim da política de substituição das importações, em vigor entre as décadas de 1950 e 80, e que tanto dava estímulo à produção local quanto aplicava tarifas altas para produtos fabricados lá fora, empresas fecharam as portas. A professora da UFRJ ressalta que, a partir de 2003, houve políticas voltadas ao fortalecimento da indústria nacional, mas em áreas como a farmoquímica a reversão da tendência de importações não foi possível. Dados da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia compilados pelo grupo de pesquisa que ela coordena revelam que, entre 2003 e 2019, o país mais que dobrou seu déficit comercial em relação aos IFAs, indo de 700 milhões de dólares para 1,8 bilhão.

Ao mesmo tempo, o Brasil dispõe de vantagens no segmento das vacinas. Na esteira da criação do PNI, em 1973, veio o fortalecimento do controle de qualidade dos imunizantes que iriam parar nos braços da população. Com isso, a maior produtora de imunobiológicos do país, uma multinacional chamada Sintex, resolveu encerrar suas atividades depois de ter linhas de produção fechadas. Diante dessa crise, o governo federal estimulou a produção nacional, investindo em instituições públicas centenárias – Butantan e Fiocruz – e outros laboratórios estatais. Como resultado dessa aposta feita em 1985, a maior parte das doses adquiridas pelo PNI passou a vir desses produtores públicos. Nos últimos dez anos, Fiocruz e Butantan foram responsáveis por mais da metade do estoque do programa.

Isso não quer dizer que o país domine todas as pontas da cadeia de produção, mas que encontra portas no mercado farmacêutico que estão fechadas a outras nações, seja porque dispõe de infraestrutura e conhecimento técnico, seja porque tem um comprador poderoso, o PNI, que responde por 90% da demanda por vacinas humanas no país, e que já adquiria, anualmente, por volta de 300 milhões de doses de imunizantes diversos antes da pandemia. É nesse contexto que se situam as estratégias de transferência de tecnologia entre farmacêuticas e laboratórios públicos – caso também da CoronaVac e da vacina Oxford/AstraZeneca.

“A gente está no jogo. Não saímos até agora, mas temos risco de sair no futuro. Para evitar isso, essas parcerias são fundamentais porque entram nas vacinas de última geração, de base genética, como é a de Oxford/AstraZeneca”, defende Carlos Gadelha, fazendo referência aos processos usados para desenvolver vacinas, as chamadas plataformas tecnológicas, algumas das quais estão sendo usadas pela primeira vez em produtos registrados contra a Covid-19. Esse também é o caso das vacinas de RNA mensageiro, das farmacêuticas Moderna e Pfizer/BioNTech. Apesar de terem oferecido seus imunizantes ao governo federal, essas empresas não toparam assinar acordos de transferência de tecnologia.

“No caso das vacinas, não só a fórmula é patenteada. Os ingredientes ativos são patenteados e muitas vezes as plataformas tecnológicas, também. Isso dificulta a vida de grupos de pesquisa e mesmo de outras empresas que poderiam desenvolver imunizantes com as mesmas plataformas. Normalmente são alvo de litígio ou bloqueio”, pondera Felipe Carvalho.

Em meio à maior crise sanitária em um século, ONGs, entidades e pesquisadores vêm defendendo, desde o início da pandemia, que esse problema seja solucionado. Em outubro, o debate ganhou tração a partir de uma proposta da Índia e da África do Sul, hoje encampada por cerca de cem países. Com ela, laboratórios em todo o mundo poderiam fabricar imunizantes contra a Covid-19, por preços mais baixos e num volume que daria conta de acelerar as campanhas de imunização. Para isso, essa proposta invoca as chamadas “flexibilidades do TRIPS”, introduzidas em 2001, na esteira de outra grande crise de saúde pública: a epidemia de HIV-Aids. Na época, foram aprovadas mudanças que permitiram a fabricação e importação de medicamentos genéricos ou biossimilares para o tratamento do HIV.

A discussão acontece na Organização Mundial do Comércio, onde encontra resistência dos países que sediam as grandes empresas farmacêuticas, como Estados Unidos e Suíça, que argumentam que não haveria laboratórios com capacidade para produzir as vacinas e matéria-prima suficiente nos países em desenvolvimento, mesmo que as patentes estivessem livres.

Na última reunião sobre o assunto, no início de fevereiro, a África do Sul rebateu esses argumentos, dizendo que há capacidade científica e técnica e que a escassez de vacinas é também resultado de uso inapropriado de proteção da propriedade intelectual. “Os países estão começando a questionar mais como estão montadas as cadeias de produção de medicamentos e vacinas, onde tem excesso, onde tem abuso, onde tem controle excessivo das multinacionais e quais as consequências disso”, observa Carvalho, que faz parte do grupo da sociedade civil brasileira que acompanha as discussões da OMC de perto.

Além da vacina

Tânia Rego / Agência Brasil

Mas são necessários muitos outros produtos para que as vacinas cheguem aos braços dos brasileiros. Sem eles, não dá para tocar a campanha. E a crise das seringas e agulhas ilustra bem isso. Em dezembro, o Ministério da Saúde abriu um pregão para se abastecer desses produtos. A compra, contudo, fracassou: foi adquirido apenas 2,4% do total pretendido. O governo federal culpou o preço.

A pasta pedia 13 centavos por seringa; as companhias queriam entre 22 e 48 centavos, argumentando que os preços foram influenciados pelo choque de demanda mundial e pela alta do dólar. O polipropileno, plástico com que são feitas as seringas, teria aumentado 40%, com a tonelada indo de 1,1 mil dólares em junho passado para 1,56 mil no início de 2021. No dia 6 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro chegou a anunciar que as compras seriam suspensas até que os valores voltassem “ao normal”.

Nesse mesmo dia, o imposto de importação de agulhas e seringas, que era de 16%, foi zerado. A decisão, aprovada durante uma reunião extraordinária do comitê-executivo da Câmara de Comércio Exterior (Camex), órgão ligado ao Ministério da Economia, vale até 30 de junho.

Outra medida tomada pelo governo federal foi a requisição administrativa. No mesmo dia do pregão fracassado, o Ministério da Saúde enviou ofício às fabricantes brasileiras, pedindo que 30 milhões de kits de agulhas e seringas fossem disponibilizados até 8 de janeiro. A ação está prevista na Constituição Federal quando há “iminente perigo público” – que foi a justificativa usada no ofício.

A medida, contudo, desencadeou conflito com governos estaduais que tinham avançado em seus próprios pregões para comprar esses materiais. No caso de São Paulo, o estado já tinha até pagado uma parte dos produtos. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), e o relator da ação, ministro Ricardo Lewandowski, decidiu em favor dos estados, argumentando que a requisição administrativa de um ente da federação não pode prejudicar os demais.

No país, apenas três empresas produzem seringas e agulhas. São elas: SR (Saldanha Rodrigues), com fábrica em Manaus; Becton Dickinson, com fábricas em Curitiba e Juiz de Fora; e Injex, com fábrica em Ourinhos. Procurada pela Poli, a Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos e Odontológicos (Abimo) – que as representa – respondeu que esse cenário é o ápice da produção no Brasil e que “são pouquíssimos os países no mundo que têm quatro fábricas de seringas”.

Ainda segundo a entidade, em 2019, a produção nacional foi de 1,3 bilhão de seringas – e 10% desse volume foi destinado à exportação, mesmo porcentual que saiu daqui em 2020, de acordo com a Abimo. A entidade ainda não tem o total produzido no ano passado, mas se o número de 2019 tiver se mantido, terão saído do Brasil por volta de 130 milhões de seringas – o equivalente a mais de um terço dos itens pretendidos no pregão.

Foi só depois desse pregão que o Ministério da Saúde pediu à Economia para que agulhas e seringas fossem inseridas no rol de itens essenciais no combate à pandemia, com barreiras à exportação. Pela decisão da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), a venda destes produtos para outros países passou a exigir licença especial, como já tinha acontecido com ventiladores pulmonares.

Mas o Brasil importa bem mais agulhas e seringas do que exporta. Segundo o Ministério da Economia, em 2019, compramos 61,9 milhões de dólares contra 4,6 milhões em vendas. De acordo com a Abimo, “o mercado internacional é muito competitivo” e as empresas instaladas por aqui “estão dimensionadas para atender o mercado brasileiro e não têm planos de aumentar a capacidade produtiva”. Dentre outras justificativas, a entidade cita o “custo Brasil, que nunca deixa o produto fabricado aqui tão competitivo quanto os indianos e chineses”.

Já as empresas que produzem alguns dos equipamentos mais importantes no contexto da vacinação demonstraram mais ambição diante de outra discussão que mobilizou a opinião pública: a adaptação da infraestrutura da chamada Rede de Frio, componente fundamental para o sucesso de qualquer campanha por garantir conservação adequada das vacinas ao longo do seu caminho – por vezes longuíssimo – do laboratório produtor aos locais onde as doses serão aplicadas. As salas de vacinação brasileiras estão equipadas para refrigerar a temperaturas que variam entre 2° C e 8° C – o suficiente para as vacinas AstraZeneca e CoronaVac. 

Embora a China já estivesse vacinando públicos específicos desde julho com o imunizante da estatal Sinopharm através do que se chama de uso compassivo – quando se aplica um tratamento antes do fim dos testes clínicos – e a Rússia tenha começado oficialmente sua campanha com a Sputnik V em 5 de dezembro, a imagem que cristalizou o início da vacinação no mundo foi a de Margaret Keenan, senhorinha de 90 anos que recebeu a agulhada no dia 8 de dezembro, no Reino Unido. A vacina que ela recebeu foi a desenvolvida pelas empresas Pfizer e BioNTech, primeira a ser aprovada por agências reguladoras com resultados de fase 3 – com 95% de eficácia na prevenção à Covid-19. 

Desde que as farmacêuticas divulgaram esse e outros números, em novembro, o debate sobre a compra desta vacina se acirrou. Isso porque o imunizante da Pfizer precisa ser mantido a -75° C, embora a empresa tenha divulgado que poderia vender junto com a vacina uma caixa térmica especial com gelo seco, onde as doses poderiam ficar por até 15 dias – teoricamente, o suficiente até chegarem a locais de vacinação e serem aplicadas. A segunda vacina com resultados de fase 3 a ser aprovada por agências reguladoras, da farmacêutica Moderna, também exige temperaturas baixas, de -20° C.

Consultada pela Poli, a Associação Brasileira de Refrigeração, Ar-Condicionado, Ventilação e Aquecimento (Abrava) afirmou que a indústria brasileira tem capacidade de fabricar câmaras frigoríficas, caminhões com baús frigorificados e congeladores de ultra baixa temperatura e até projetou um prazo que varia de 30 a 90 dias, dependendo da quantidade de projetos. “Por não ser uma aplicação comum, não há muita experiência na sua fabricação, montagem e operação. A tecnologia é conhecida, mas os detalhes vão exigir um aprendizado”, reconheceu a Abrava.

A entidade diz representar praticamente toda a cadeia de frio para o armazenamento de vacinas, mas não tem estimativa de quantas empresas atuam na área ou quantas fábricas existem no país. “Entram diversas empresas fabricantes de diferentes tipos de equipamentos de refrigeração, que por sua vez são montados com uma infinidade de componentes, fabricados por inúmeras empresas distribuídas pelo Brasil”, explicou a Abrava.

Segundo a entidade, praticamente toda a cadeia de produção foi afetada pela alta do dólar, já que as empresas dependem de componentes e matérias-primas importadas. No caso de algumas companhias, a variação cambial representou um aumento de 32% no custo de produção. A Abrava projeta para 2021 um cenário positivo, na medida em que “os planos saiam do papel”. Mas, apesar disso, não soube dizer que políticas públicas seriam necessárias para incentivar o setor.

Em meio aos debates sobre escassez de insumos para a campanha nacional de vacinação, havia um produto que saiu incólume das preocupações: o algodão usado para desinfetar o local da injeção. Segundo a Associação Brasileira de Indústria Têxtil e Confecção (Abit), somos o quarto maior produtor dessa commodity no mundo e não há risco de desabastecimento.

“Algodão é um dos milhões de itens necessários tanto para o Programa Nacional de Imunizações, quanto para o atendimento no SUS em todo o Brasil”, observa Julia Paranhos. E continua: “Apesar de sermos o 6º mercado farmacêutico do mundo, sermos um país com mais de 210 milhões de habitantes, termos um sistema público de saúde que tem o objetivo de ser universal e integral, ainda existe uma vulnerabilidade muito grande para esse sistema funcionar – e ela está fortemente baseada nessa dependência produtiva e tecnológica nas diversas áreas de produtos que são necessários para o funcionamento do SUS”.

Essa também é a avaliação de Carlos Gadelha: “Metade dos 20 bilhões de dólares que a gente importa estão no nosso horizonte tecnológico em um prazo curto – e a outra metade teremos que investir como agenda de futuro. Ter uma base produtiva industrial pública e privada é fundamental para a soberania do SUS. Se a gente forma essa base, temos as condições mínimas para nos posicionarmos para acompanhar mais de perto os avanços tecnológicos e, num horizonte de dez anos, nos aproximarmos da fronteira no complexo da saúde”.

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