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O Estado é laico?

Com avanço da bancada religiosa no Brasil, pesquisadores apontam como isso tem influenciado nas políticas públicas, principalmente no campo da saúde.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 17/11/2013 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O  avanço  da  bancada  religiosa no Congresso Nacional tem  preocupado  os  defensores  do Estado  laico  e  das  políticas públicas,  principalmente, na  área da saúde. Por  conta  disso,   'Teocracia  e fundamentalismos  na contemporaneidade:  ameaças  à  cidadania  e  ao  Estado  laico'  foi  tema  do  grande  debate  que encerrou  as  atividades  do  dia  15  de  novembro no  VI Congresso Brasileiro  de Ciências  Sociais  e Humanas  em  Saúde,  organizado  pela  Associação  Brasileira    de  Saúde  Coletiva  (Abrasco), no Rio de Janeiro.

A pesquisadora Sonia Côrrea, do Observatório de Sexualidade e Política da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, informou que  a principal  área  em que os reflexos deste movimento da religião  nas  políticas  de  Estado  estão  sendo  enfrentados  é  a  da  saúde.  “Já  tivemos  materiais censurados que falam sobre os direitos dos gays, das prostitutas, do bullying homofóbico, aborto, é uma censura atrás de censura. É importante nos organizarmos porque o inimigo é grande”, indicou.

A professora apresentou ainda que esta realidade não é particular do Brasil: segundo ela, na Índia, por exemplo, já se pediu o fim da sodomia. Ela defendeu que o problema não é de uma  religião particular nem do fundamentalismo, mas sim do moralismo. “As pessoas têm usado a religião como  obstáculo  para  a  sexualidade,  mas  esse  debate  é  pouco  produtivo.  Temos  concepções seculares  na medicina  que  não  dizem respeito  à religião,  como  o sexo significar  homem  e mulher, quando  hoje  temos  muitas  vozes  transexuais  que  não são  representadas  neste  enquadramento”, debateu.

Sônia disse ainda que culpar o fundamentalismo neste cenário não englobaria as ações em todo o mundo,  que  não  poderia ser  transplantado  para  o  conservadorismo  católico,  para  o  hinduísmo, para  o  judaísmo,  e  tantas  outras religiões  que  também  interferem  nas  políticas  públicas.  “Marx falou  que  a  religião  é  o  ópio  do  povo,  e  essa  visão  continua  conosco,  mas  tem  sido  pouco produtiva. A persistência da pobreza e da desigualdade, enquanto existem atores políticos fazendo o  uso  político  da  religião, só  deixam  esse  cenário  mais  grave.  Em  que  momento  vivemos  essa separação do Estado e religião? O laicismo foi posto na ponta da baioneta de Napoleão Bonaparte? hoje na França as mulheres muçulmanas não podem usar véu”, exemplificou.

Roger Raupp, juiz de direito do Tribunal Regional Federal do Rio Grande do Sul, apresentou dois tipos  de  laicidade:  a  neutra,  praticada  na  França,  que  mantém  o  distanciamento  da religião  em qualquer decisão de fragmentação de bens públicos, como saúde e educação, e a pluriconfessional, oriunda dos Estados Unidos da América e mais próxima do que é praticado no Brasil hoje, que traz o respeito à diversidade religiosa e brechas para que elas influenciem em doutrinas do Estado. No entanto,  ele  explicou  que  essa  influência  deve  respeitar  principios  básicos,  como  a  liberdade religiosa, igualdade dentro da esfera pública. Então, o argumento da fé em uma religião não pode ser determinante.

Diferentemente  da  nossa realidade  atual, Raupp listou  uma séria  de  decisões  do  STF  em  que  o argumento se baseava em aspectos religiosos para a decisão final, entre eles a decisão da união de pessoas do mesmo sexo, a de pesquisa com células tronco, o aborto por conta da anencefalia, além do direito de mudança de sexo no Sistema Único de Saúde. “Por serem argumentos de fé, não são passíveis  de debate.  Isso não significa  o afastamento da  religião do debate público, mas significa que todos têm que estar no debate, com argumentos que sirvam para o coletivo”, explicou, apontando ainda um risco maior: “O problema é quando essas pessoas utilizam a igreja e o poder adquirido para agir de má ­fé, como vem acontecendo recentemente”.

O deputado federal (PSOL-­RJ) Jean Wyllys contou que seu  enfrentamento dentro da Câmara dos Deputados tem sido uma batalha árdua. Ele já apresentou três projetos que não foram adiante por conta de argumentos religiosos: o PL 4211/12 – projeto Gabriela Leite –, que regulamenta a profissão de prostituta? o PL 5002 -Lei João Nery, que estabelece o reconhecimento da identidade de  gênero,  permitindo  a  retificação  de  documentos  de  identificação,  e  o  PL  5120/2013,  que reconhece o casamento civil e  união estável entre pessoas do mesmo sexo, que segundo ele está regulamentado, mas não legalizado.

Para o deputado federal, embora o Brasil seja um país pluriconfessional, as outras religiões não estão representadas ou não representam tanto poder como as cristãs. De acordo com ele, a bancada evangélica  já  soma  70  deputados  e  tem  prevalência  dos  partidos  PR  e  PSC,  ligados  às  igrejas Universal e Assembleia de Deus, respectivamente. “Existem projetos que tentam ainda acabar com outras  religiões,  como  a  apresentada  por  Marcelo  Crivella  (PRB­RJ)  que  trata de peixes ornamentais, mas  em  um  dos  artigos fala sobre  o sacrificio  de  animais,  que  atinge  as religiões africanas  que  têm  isso  como  prática.  A  moral  de  uma  religião  não  pode  ser  imposta  a  uma sociedade tão diversa”, refletiu Jean Wyllis.

Para o deputado,  a separação  entre Estado  e religião é mais  complexa, mas  ele  conclui  que  o problema  vai  ainda  para  o  campo moral,  político  e  cultural.  “A  nossa  própria  noção  de  direitos humanos tem como fundamento o cristianismo. Estamos impregnados de influência religiosa em nossas datas comemorativas, nomes de ruas, nomes de filhos”, pontuou e indagou: “O que significou o  pré-­candidato Lindbergh Farias (PT­-RJ) com o pastor Silas Malafaia? Isso mostra o grau de influência econômica e política que essa bancada tem. Que fique claro que eu não sou contrário aos  cristãos,  como muitos  tentaram  manipular  minha  imagem  recentemente,  eu  sou  contra aqueles que são contra e atacam as minorias. E o mais interessante é que essas mesmas pessoas que tantam  se  incomodam  com  as  minorias  não  falam  dos  judeus,  mas  das  religiões  de  matrizes africanas. Isso para mim é preconceito. E os preconceitos estão arraigados em todos nós, mesmo naqueles que não têm religião”, disse.