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Os descaminhos do financiamento do SUS

Palestrantes analisam o impacto da Emenda Constitucional 95 para o financiamento do SUS e cobram sua revogação imediata
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 06/08/2019 11h44 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

A terceira e última mesa de debates realizada durante a 16ª Conferência Nacional de Saúde na tarde desta segunda-feira se debruçou sobre um desafio histórico do Sistema Único de Saúde desde sua criação, e que vem se agravando de maneira acelerada nos últimos anos, principalmente após a aprovação da Emenda Constitucional 95, em 2016. ‘Financiamento adequado e suficiente para o SUS’ foi o tema do debate que reuniu o ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde e atual presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos, Ronald Ferreira, o coordenador da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS, André Luiz de Oliveira, o subsecretário de Planejamento e Orçamento do Ministério da Saúde, Arionaldo Rosendo, e a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane Pinto.

Desigualdade aumenta

Ronald destacou que no Brasil, diferentemente de outros lugares do mundo, a maior parte da carga tributária incide sobre o consumo, e as classes trabalhadoras são mais tributadas em relação aos mais ricos. “Somos nós que formamos os recursos públicos. É fundamental compreender isso” destacou. Segundo Ronald, o Brasil vai na contramão do que é praticado em outros países do mundo em quesitos como o gasto público em saúde e a tributação da riqueza, o que em parte explica a enorme desigualdade de renda existente no país.   “No Brasil os impostos sobre a propriedade contribuem com apenas 1,3% do PIB. Nos Estados Unidos, esse percentual chega a 12%. Ao mesmo tempo, os recursos públicos na saúde no Brasil são duas ou três vezes menores do que em países com sistemas universais como o Reino Unido. O SUS precisa de mais recursos para aprimorar a gestão e melhorar a qualidade do atendimento a partir da atenção básica”, reivindicou Ronald. Hoje, no Brasil, são os estados e municípios quem proporcionalmente acabam arcando com a maior parte do gasto em saúde, já que o aumento da arrecadação de tributos federais nas últimas décadas não significou um maior aporte de recursos no SUS pela União, que é o ente que mais arrecada. “Mas para onde vão esses recursos? Para os bancos, através do pagamento da dívida pública, e mais ainda após a aprovação da Emenda Constitucional 95, que significou mais dinheiro para pagamento de juros e amortização da dívida pública e menos para as políticas sociais. É isso que estamos enfrentando”, apontou o ex-presidente do CNS. “A desigualdade de renda no Brasil vem aumentando nos últimos 17 trimestres. Precisamos ter claro que vivemos, não só no Brasil, mas no mundo, sob a égide de um sistema em que a produção de riqueza é coletiva, mas a apropriação é privada. A alta concentração de renda é um resultado concreto desse modelo, que precisa ser questionado”, apontou Ronald, lembrando dos muitos outros desafios que juntamente com a EC 95 competem para o agravamento da desigualdade nos próximos anos, como a reforma trabalhista, a terceirização irrestrita, a proposta de reforma da Previdência, entre várias outras. “Precisamos dar resposta a tudo isso, mas também ao financiamento da saúde. Mas qual saúde queremos? Planos populares de saúde? Atenção básica pobre? Manicômios? Contratos precários? Tecnologias a serviço do mercado? Não creio que seja isso”, ressaltou, completando: “Tenho certeza que as propostas dessa conferência são um elemento central para mobilizar o povo, como fez a 8ª CNS. A luta é pela democracia, pela soberania e pelos direitos”.

Arionaldo Rosendo, subsecretário de Planejamento e Orçamento do Ministério da Saúde, lembrou que, recentemente, o Congresso Nacional aprovou o orçamento impositivo, que torna a execução das emendas parlamentares apresentadas pelas bancadas dos partidos obrigatória. Segundo ele, se as emendas hoje consomem 0,6% das receitas correntes líquidas da União, em 2021 o número saltará para 1%. “Isso também deverá impactar em ações e serviços públicos de saúde”, disse, sublinhando que precisa haver um “casamento” entre as necessidades dos gestores e as prioridades dos parlamentares.

Arionaldo ressaltou que ao longo dos últimos 18 anos não houve redução dos recursos destinados ao financiamento do SUS pelo Ministério da Saúde quando comparados ao PIB. “Ainda que pese todo o crescimento do PIB no período, em 2018 a saúde participava com 1,7% do PIB, mesmo patamar de 2000”, afirmou.

Subfinanciamento e desfinanciamento

Já André Luiz Oliveira distinguiu dois problemas sérios do Sistema Único: subfinanciamento e desfinanciamento. “São dois termos que não existem no dicionário. Subfinanciamento é asfixia orçamentária que o SUS vem sofrendo. Desfinanciamento é a retirada de recursos a partir da fatídica Emenda Constitucional 95. Ela vai congelar os gastos públicos por 20 anos. Esquecemos de combinar com a população para ela parar de crescer”, ironizou.

O coordenador da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento do CNS afirmou que o número de nascimentos gira em torno de 2,9 milhões ao ano, enquanto o de óbitos é de 1,3 milhão. “A cada 20 segundos aumenta uma pessoa na conta do SUS. Não podemos pensar em um horizonte estagnado por 20 anos”, alertou André Luiz, lembrando que mais de 160 milhões de pessoas são atendidas exclusivamente pelo SUS. “Mas mesmo quem tem plano de saúde vai precisar da vigilância sanitária, vai precisar da vigilância epidemiológica. Quando lutamos pelo SUS é para todos, não só para quem não tem plano de saúde”, destacou.

Segundo André Luiz, o país vive hoje cinco transições, que em conjunto devem colocar pressões enormes sobre a saúde nos próximos anos. São elas a transição demográfica, com o envelhecimento populacional; a transição epidemiológica, com o aumento da prevalência das doenças crônico-degenerativas e das causas externas, como a violência e o trânsito, nos indicadores de morbimortalidade; a transição nutricional, com cada vez mais pessoas com dietas prejudiciais à saúde; a transição cultural, com o aumento do numero de pessoas sedentárias, que trabalham sentadas, sob condições propicias para o desenvolvimento de doenças como as lombalgias e as lesões por esforço repetitivo; e, por fim, a transição tecnológica, que faz com que a inflação da saúde seja, segundo André Luiz, 1,5 vez maior do que a inflação medida sobre o consumo.  “Tudo isso vai demandar o SUS nos próximos anos”, alertou.

Nesse cenário, revogar a EC 95 é uma pauta urgente, assim como a destinação de mais recursos da União para a saúde, como pretendia o movimento Saúde+10, que como lembrou André Luiz, há exatos cinco anos, em agosto de 2013, entregava ao Congresso Nacional um documento com mais de dois milhões de assinaturas de pessoas favoráveis ao projeto de destinação de 10% das receitas correntes brutas da União para a Saúde. “Revogar a EC 95 e aprovar aquilo que o povo quer, que é o Saúde+10. Estas são as bandeiras do CNS”, disse André, lembrando da greve marcada para o dia 13 de agosto na educação. “A educação está na rua. Quando a saúde vai para a rua?”, questionou.

Inconstitucionalidade é a regra

Élida Graziane defendeu que as receitas do Estado devem ser claramente disputadas, pois o país convive desde a aprovação da Constituição Federal, em 1988, com uma situação de ilegalidade, já que nunca se cumpriu o que determina a Carta Magna: que 30% do orçamento da Seguridade Social vá para a saúde. “Qual é a razão de ser das contribuições sociais? Vivemos um estado de coisas inconstitucional no SUS. O problema não foi EC 29, a EC 86, etc. Desde 1988 a regra não foi cumprida e ninguém obrigou que fosse cumprida. De lá para cá, um esvaziamento sucessivo se instalou”, disse Élida. A procuradora considera falacioso o argumento frequentemente utilizado para justificar mudanças no texto constitucional ao longo das últimas três décadas, de que a Constituição não cabe no orçamento. “É o orçamento que só é legítimo à luz da Constituição”, salientou. Segundo Élida, se a Constituição fosse cumprido com relação a destinação de 30% do orçamento da Seguridade Social para a saúde, isso teria significado dobrar os recursos para a área. “Aí sim a gente poderia falar em um sistema equivalente ao NHS, com capacidade de fazer carreiras de Estado”, afirmou.

Élida também chamou atenção para a necessidade de reivindicar para o SUS parte dos recursos que serão arrecadados com o leilão do pré-sal. “Estamos na expectativa de um megaleilão do pré-sal que deve render mais de R$ 100 bilhões. Uma parcela disso deve ir para o SUS. Mas isso se não houver uma mudança nessa destinação. O governo já fala em utilizar esses recursos para o setor privado, para construção de gasodutos. Precisamos disputar essas receitas”, disse.

A procuradora lembrou, ao fim, que as conferências nacionais de saúde são um “instrumento poderoso de multiplicação de ideias”, e defendeu que as instâncias de participação e controle social somem esforços com os órgãos de controle para fiscalizar a aplicação dos recursos no SUS. “Precisamos construir um rede de controle. Os órgãos de controle não vão substituir o cidadão. Não podemos partir do pressuposto de não tem compromisso com a população. Se a arrecadação crescer sem que esses recursos sejam destinados ao financiamento dos direitos sociais significa que o Estado está arrecadando fora das suas finalidades constitucionais”, defendeu, concluindo em seguida. “Não podemos ficar inertes diante do esvaziamento paulatino do SUS”.