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Participação social e democracia no Brasil

Pesquisadores e representantes de diferentes entidades da sociedade civil discutem medidas do governo federal que descaracterizam o modelo de controle social no país
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 10/07/2019 11h52 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Passadas mais de três décadas, o texto do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal voltou a ser lembrado, citado e usado como argumento na discussão sobre as formas de participação da sociedade civil no aparelho de Estado brasileiro. De tão emblemático, recentemente ele figurou dos dois lados de uma briga jurídica em torno do tema: foi a base da alegação do Partido dos Trabalhadores na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.121, apresentada ao Supremo Tribunal Federal contra o decreto 9.759/2019, e foi também citado na peça da defesa do governo, feita pela Advocacia Geral da União (AGU).

Esse foi o capítulo mais comentado sobre a queda de braço que vem se travando entre o governo e os espaços institucionalizados de participação social. O decreto 9.759, editado em abril, extinguiu todos os colegiados ligados à administração pública federal anteriores a 2019 que não foram criados por lei, com a promessa de recriar aqueles que, após avaliação do governo, fossem considerados essenciais. Um mês e meio depois da sua publicação, ele foi alterado por outro, de nº 9.812, que redefiniu, pelo menos, o escopo: agora, a extinção não atingia mais aqueles colegiados que, mesmo não tendo sido criados por lei, foram mencionados em alguma lei. Muito antes, logo no primeiro dia de governo, a publicação da medida provisória 870 (transformada na lei 13.844), que apresentava a nova estrutura administrativa do Executivo, trouxe como novidade a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, criado em 1993 e recriado em 2003. Em decreto específico (nº 9.806), editado no dia 28 de maio, a presidência mudou também a composição do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), que funciona desde 1990, reduzindo o número de membros de 96 para 23. No dia 7 de maio, por meio do decreto 9.784, foi a vez de acabar com 55 colegiados ligados à Casa Civil, entre eles o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (CNDES), o famoso ‘Conselhão’. Um dia antes de o decreto 9.759 começar a valer, em 27 de junho veio uma nova surpresa: dezenas de decretos foram emitidos de uma só vez, instituindo mudanças em 52 colegiados de áreas as mais diversas, como, por exemplo, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa.

 

A Constituição é bastante explícita de que a gestão pública deve se dar em articulação com o controle social e a participação da sociedade civil
Wagner Romão

 

As justificativas para essas mudanças variaram de acordo com quem e onde a explicação foi dada. Formalmente, a peça de defesa apresentada pelo advogado geral da União ao STF em relação ao decreto 9.759 alega que é preciso “combater a proliferação excessiva de colegiados no âmbito da administração pública federal, a fim de racionalizar a utilização dos recursos, estrutura e mão de obra no setor público, em atendimento ao princípio da eficiência”. Já o presidente Jair Bolsonaro, em tweet publicado no dia em que o decreto veio a público, acrescentou outras razões: “Gigantesca economia, desburocratização e redução do poder de entidades aparelhadas politicamente usando nomes bonitos para impor suas vontades, ignorando a lei e atrapalhando propositalmente o desenvolvimento do Brasil, não se importando com as reais necessidades da população”, escreveu.

Apesar do discurso que visa associar os conselhos e outros colegiados a uma pauta de ‘esquerda’, é na Constituição de 1988 que muitos estudiosos do tema têm encontrado a origem do modelo de participação social que existe hoje no Brasil – ou existia, dependendo do que terá restado no momento em que você estiver lendo esta reportagem. Na Carta, o incentivo à participação da sociedade vai muito além do parágrafo que abre esta matéria: no texto ‘Sociedade civil e participação social no Brasil’, o professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Leonardo Avritzer cita, por exemplo, os artigos 29, 194, 204 e 227, que tratam, respectivamente, da organização dos municípios, da seguridade social, da assistência social e dos programas voltados à família, criança, adolescente e idoso, sempre dando atribuições à participação da sociedade. “Em algumas políticas, a Constituição é bastante explícita de que a gestão pública deve se dar em articulação com o controle social e a participação da sociedade civil”, complementa Wagner Romão, professor da Unicamp e um dos coordenadores do Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva da mesma universidade.

É verdade que nem tudo que existe hoje nasceu em 1988. O primeiro conselho criado no Brasil data de 1911 e hoje se chama Conselho Nacional de Educação (CNE). O Conselho Nacional de Saúde (CNS), por exemplo, existe desde 1937, e não é o único que remete à Era Vargas. Mas, de acordo com Avritzer, em entrevista à Poli, esses eram conselhos num sentido “muito genérico” do termo, apenas porque contavam com integrantes externos ao governo. O CNS, inclusive, era um órgão apenas consultivo – hoje ele é deliberativo –, para o qual o presidente da República escolhia pessoas de renome. Evidência dessa diferença de sentido, segundo o pesquisador, é que, pelo mesmo motivo, a instituição criada em 1951 para fomentar a pesquisa no país, sem qualquer pretensão de promover a participação social, recebeu a mesma palavra no nome: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq.

Avritzer explica que a Constituição garantiu caminhos tanto para a “participação direta” – principalmente no artigo 14, que estabelece que a “soberania popular” se dará também por meio de referendos, plebiscitos e iniciativa popular (projetos que chegam ao Legislativo por mobilização da sociedade) – quanto para o que ele chama de “fontes de democracia participativa”, exemplificadas principalmente pelos conselhos. “É uma forma de democracia que amplia a participação dos indivíduos, mas não tem a proposta de ser alternativa à democracia representativa, pelo contrário”, explica.

O que surgiu a partir da Constituição de 1988, continua Avritzer, foi o chamado “modelo de fórum”, muito particular do Brasil exatamente porque tem sua história intrinsecamente ligada ao processo de redemocratização do país. Segundo o pesquisador, o modelo não tem autoria clara, mas remete, principalmente, às demandas apresentadas pelo movimento sanitário na 8ª Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu em 1986. Esse, aliás, talvez seja o maior exemplo de efetividade da participação social na condução das políticas públicas no Brasil, já que foi nessa conferência que se desenhou o que dois anos depois se tornaria o Sistema Único de Saúde (SUS), exposto no capítulo de Saúde na Constituição Federal.

Conselhos e conferências são as principais expressões desse modelo, que se caracteriza, segundo Avritzer, pelo “debate público de diferentes opiniões”. Nesse sentido, ele se distingue, por exemplo, do que o pesquisador identifica como “modelo de gueto”, aquele em que as decisões dos políticos – seja do Executivo ou do Legislativo – têm como referência principal a manifestação das redes sociais, por meio do monitoramento das reações a postagens de Twitter, Instagram ou Facebook, ou por meio das transmissões ao vivo, as lives, que colocam parlamentares em contato direto com o público nos momentos de votação, uma prática que tem se ampliado na atual composição do Congresso Nacional. “As redes sociais são lugares para reafirmar posições já existentes. É muito difícil encontrar iniciativas no sentido de debater ideias e argumentos diferentes nesse modelo. E isso não é só no Brasil”, diz.

O professor diferencia ainda os espaços de participação social dos processos propriamente de “democracia deliberativa”. Ele explica que, para ser legitimada, a participação requer que se conte com um número razoável de pessoas. “Você não pode dizer que fez uma Conferência Nacional de Saúde que foi ótima com 50 pessoas”, exemplifica. Para se ter um parâmetro, a 15ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2015, contou com mais de quatro mil participantes, sendo quase três mil delegados. Já os espaços de democracia deliberativa se legitimam não pela quantidade, mas pela “qualidade de determinados processos de argumentação”. Avritzer cita como exemplo a Assembleia Cidadã, chamada pelo governo da Columbia Britânica, em 2004, em que 160 pessoas se reuniram para deliberar sobre a reforma eleitoral da província canadense. Mas e no Brasil? “Aqui alguns conselhos ficam numa situação intermediária. Os conselhos não são legítimos porque envolvem um grande número de pessoas, mas porque os atores fundamentais estão ali representados, diferentemente de uma conferência nacional”, explica.

Com as mudanças que estão sendo implementadas neste momento, no entanto, segundo alguns entrevistados pela Poli, inicia-se uma disputa tanto sobre o que se considera como “debate público de opiniões” quanto sobre o entendimento de quem são os tais “atores fundamentais”. Principalmente porque o decreto 9.759 não só extingue um número ainda desconhecido de colegiados, como estabelece mudanças na composição e no funcionamento daqueles que forem recriados.

A disputa

São vários os ringues em que essa disputa está sendo travada. O primeiro round foi o pedido de medida cautelar votado no STF por meio da ADI 6.121 mas o resultado – que ainda não é o final porque não se julgou o mérito da questão – ajudou a entender apenas o que não poderia ser atingido pelo decreto. A decisão reforçou que não podem ser extintos colegiados criados ou citados em lei – já que um ato menor e unilateral do presidente da República não pode contrariar o que foi aprovado pelo Legislativo. Isso garante, por exemplo, a sobrevivência da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), um colegiado que não é de participação social, mas é reconhecido como espaço de pactuação que expressa o princípio de descentralização do SUS, já que conta com representes de gestores dos municípios, estados e da União. Ao suspender o parágrafo 2º do artigo 1 do decreto 9.812 (que modificou parte do 9.759), o Supremo estabeleceu também que, se um colegiado foi criado por lei, mas seu ‘regimento’ – com composição e formas de funcionamento – foi definido por atos infralegais, como portarias e resoluções, ainda assim, essas regras não podem ser modificadas por decreto do Executivo. Essa decisão garante, por exemplo, que a representação paritária que marca a história do Conselho Nacional de Saúde – 50% de usuários, 25% de gestores e 25% de governo – não esteja em risco.

Mídia NinjaMas se ajudou a esclarecer algumas coisas, a decisão do STF também produziu áreas de sombra. Isso porque não há consenso jurídico sobre se esse resultado, que respondia a uma ADI referente a um decreto específico, pode ser automaticamente estendido para outros atos do governo. Dois dos casos citados no início desta matéria – os conselhos nacionais de Meio Ambiente e de Segurança Alimentar e Nutricional – dependem dessa interpretação jurídica para saber o que será do seu futuro. Ambos foram criados por lei. Assim, se a decisão do Supremo for vinculante, a extinção do Consea perderia validade. “A visão que a gente tem hoje é de que o Consea existe. A lei está vigendo na íntegra. Só não existe uma vinculação, um lugar onde ele está alocado”, diz Marília Leão, secretária-executiva do conselho.

O advogado Thiago Campos, especialista em direito sanitário, diz que como a ADI se referia apenas ao decreto 9.759, no seu entendimento, a princípio, haveria necessidade de uma ação específica junto ao Tribunal para estender essa decisão a outros casos. Ele ressalta, no entanto, que a decisão publicada pelo STF já estabelece que o resultado vale também para atos posteriores que estejam alicerçados naquele decreto. Portanto, é preciso ver caso a caso. No caso do Conama, entidades ambientalistas já entraram com representação na Procuradoria Geral da República alegando a inconstitucionalidade do decreto que mudou a sua composição. Via assessoria de imprensa, a reportagem questionou a Casa Civil e, depois, a Secretaria Geral da Presidência – para onde migrou a Secretaria de Assuntos Jurídicos, que está acompanhando esse processo relativo aos colegiados – sobre essa interpretação, mas não obteve resposta. Já a assessoria da AGU enviou a manifestação de defesa apresentada ao STF, mas respondeu que “a análise sobre a extinção de cada conselho deve ficar a cargo do órgão instituidor”.

Paralelamente à ação no STF, parlamentares se manifestaram contra a iniciativa do governo, apresentando projetos de decretos legislativos – ferramentas utilizadas para sustar atos normativos do presidente quando se considera que passaram por cima do Legislativo. Até a conclusão desta matéria, só na Câmara dos Deputados havia 15 projetos desse tipo, de pelo menos sete partidos diferentes, relativos ao decreto 9.759. Embora em menor número, há propostas semelhantes tramitando também no Senado.

Do que estamos falando

Mas, afinal, que espaços especificamente são atingidos por todas essas medidas? A dificuldade é que, em relação ao decreto 9.759, o método adotado foi um tanto inovador: os colegiados que seriam extintos foram caracterizados mas não nomeados. O máximo de precisão que o texto apresenta é uma categorização dos espaços a que a medida se aplica: conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas e “qualquer outra denominação dada ao colegiado”. A peça de defesa apresentada pela AGU ao STF cita a exposição de motivos do decreto afirmando que a situação de “excesso” é “tão grave” que “não se conseguiu realizar levantamento confiável sobre o total de colegiados existentes na administração pública federal”. Diz ainda que “os colegiados interministeriais superam o número de 300”, mas que, considerando as estruturas internas a cada Pasta ou entidade, a contagem é “praticamente impossível”.

Apesar desse argumento jurídico, em entrevista a jornalistas na saída da audiência do STF, o advogado geral da União André Luiz Mendonça citou um número exato: 2.593. Essa seria a quantidade de colegiados identificados por um levantamento feito pela Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, e enviado à reportagem da Poli pela sua assessoria de imprensa. Se o número dessa vez parecia bem preciso, o mesmo não se pode dizer sobre o conteúdo da lista: na infinidade de linhas e colunas da planilha gerada, os espaços de controle social se perdem em meio a uma variedade de estruturas que nada têm a ver com a participação da sociedade na formulação e acompanhamento das políticas públicas.

Entre os mais de 2,5 mil colegiados listados, há de tudo um pouco: conselhos de ensino de instituições federais, conselhos editoriais, conselhos diretores, delegações brasileiras em comitês internacionais e muitos outros espaços que passam longe do exercício do controle social. Da relação, 237 são conselhos ou comitês de empresas públicas ou de economia mista, inclusive os conselhos fiscais e de administração. A lista traz ainda uma estrutura chamada “jurídico regional” da Caixa Econômica Federal que aparece 25 vezes, cada uma identificada com um município, em várias regiões do país.

Tratando especificamente da participação social, o documento oficial mais recente que contabiliza e lista essas estruturas é o ‘Guia dos Conselhos Nacionais’, lançado pela Secretaria Geral da Presidência da República em 2013. A publicação se concentra nos conselhos e comissões que são “responsáveis pela discussão, formulação e controle das políticas públicas nas suas áreas”: lista 38 conselhos, duas comissões e outros 58 colegiados.

Na tabela do Ministério da Economia que estaria subsidiando as decisões do governo, há uma identificação dos colegiados criados por “ato interno” ou por “lei/decreto”. A Pasta, no entanto, não tem a informação discriminada de quais foram criados por decreto e quais são resultado de lei – o que faz toda diferença, tendo em vista que uma das poucas certezas que se tem é que as estruturas criadas por lei não poderão ser mexidas. De todo modo, se deixarmos na planilha apenas os colegiados que foram criados por lei ou decreto, o número cai para 865. Se excluirmos as empresas públicas e de economia mista, restam 782. Excluídas, por fim, as autarquias e fundações públicas – categorias nas quais estão, por exemplo, os conselhos internos de Capes, CNPq e das agências reguladoras – ligados à administração direta, sobram 653. Mesmo assim, figuram ainda vários conselhos de gestão – um deles, o conselho de previdência social, aparece na lista 95 vezes: uma com escopo nacional e as outras associadas a cidades do país inteiro. “Tem de tudo”, resume Wagner Romão, depois de analisar a relação. Ele ressalta que a maioria das estruturas listadas são de gestão e, principalmente, de execução das políticas. E alerta que, mesmo não sendo espaços de participação social, a extinção dessas comissões pode provocar a paralisia de um conjunto de políticas públicas que estão em andamento no país.

O governo nega esse risco. Na defesa apresentada pela AGU, argumenta-se que, nos casos em que os colegiados forem de fato extintos, as suas “competências” serão assumidas pelos órgãos a que eles estavam vinculados, “sem que disso advenha a perda do arcabouço de informações acumulados ao longo dos anos, tampouco a interrupção do exercício de competências públicas ou de políticas setoriais”.

O argumento, no entanto, não é suficiente para tranquilizar quem acompanhava a política de perto e agora vai ter que assistir à execução exclusivamente pelos órgãos de governo. O engenheiro agrônomo Rogério Dias, que foi servidor do Ministério da Agricultura (MAPA) durante 35 anos e se aposentou em 2017, teme que, para a Política Nacional de Agroecologia, o custo seja dobrado – na participação e na gestão. Criada pelo decreto 7.794, em 2012, a Política previu duas instâncias colegiadas: a Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica (Ciapo), que reunia gestores de diferentes Pastas do governo federal, e a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), que trazia a sociedade civil para o diálogo. As duas instâncias se complementavam, na avaliação de Dias, que representava o governo no colegiado aberto à sociedade e falava em nome do MAPA no encontro de gestores. Este último servia para o governo discutir internamente os problemas apontados pela sociedade civil e encaminhar soluções. A CNAPO sequer aparece no levantamento feito pelo Ministério da Economia. A Ciapo foi extinga na mesma leva do Conselhão, em maio.

Foi das discussões na CNAPO, afirma Dias, que saíram dois planos nacionais com medidas concretas para, por exemplo, ampliar a produção de alimentos saudáveis para a população. Com os planos, o governo federal assumia responsabilidades como fornecer assistência técnica para os agricultores que quisessem fazer a transição agroecológica e apoiar núcleos de agroecologia nas universidades e institutos federais, favorecendo que os profissionais formados tivessem acesso ao conhecimento sobre o que é a agricultura orgânica e agroecológica. “A chance de acertar com a política pública é muito maior quando você constrói junto com a sociedade. O Brasil tem uma diversidade enorme. Se você não constrói a política ouvindo essas diferenças, a chance de fazer políticas que depois não têm eficácia nenhuma é muito grande”, analisa, a partir da sua experiência.

O documento da AGU em defesa do governo reconhece que esses espaços são de “participação popular” e até que enriquecem os “debates e proposições pela pluralidade de percepções e experiências”. Afirma, no entanto, que o enxugamento da máquina pública vai permitir “a tomada de decisões mais célere, em benefício – e não prejuízo – da qualidade da atuação dos colegiados”. “O processo democrático não é rápido e deve ser exatamente assim. As pessoas precisam se sentir parte e discutir. Ao discutir muito, eu construo soluções melhores e evito que amanhã haja uma grita na imprensa e eu tenha que revogar o que fiz a partir de um decreto ou de uma decisão do STF, por exemplo. Para construir política, precisa ter democracia, participação, reunião, diálogo”, pondera Thiago Campos, que foi chefe de gabinete da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde entre 2015 e 2016, participou da Mesa Nacional de Negociação Permanente e teve assento, como governo, em outros dois colegiados: o Conselho Nacional de Imigração e o Comitê Nacional para Refugiados.

O argumento tem sido que ‘participação demais’ pode atrapalhar. E esse “excesso” se mede tanto pela quantidade de colegiados existentes como pelo número de pessoas que os integram. “É muito claro que, sem a participação social adequada, pode-se haver um custo maior, em virtude de decisões equivocadas. Já a participação excessiva, em conselhos muito grandes, também pode resultar em medidas que podem ser muito lentas”, justificou o representante do governo e coordenador-geral da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, Dante Cassiano Viana, em audiência pública no Senado no dia 27 de maio. Tanto o diagnóstico como a solução, no entanto, estão longe de ser consensuais. “Acho que não é possível reduzir a sete [o espaço de discussão de] um tema que requer uma rede inteira para ser enfrentado”, diz Patrícia Sanfelici, procuradora que representa o Ministério Público do Trabalho (MPT) na Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, a Conaeti. Segundo informações que ela diz ter recebido do governo de forma não oficial, a comissão voltaria a existir, embora modificada exatamente na sua composição. Dessa forma, a Conaeti passaria a funcionar com a presença de apenas três ministérios: Economia, Agricultura e Família, Mulher e Direitos Humanos. Além disso, entidades como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o próprio MPT também ficariam de fora. “Não temos certeza de que o tripé fundamental para discutir trabalho infantil, que é educação, trabalho e assistência social, vai ser garantido”, alerta. A Conaeti é resultado de compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, principalmente por meio das convenções 138 e 152 da OIT, que visam eliminar o trabalho infantil. Estruturas semelhantes, diz Patrícia, existem em toda a América Latina. “O debate sempre foi enriquecedor. Ele sempre permitiu, por conta das diferentes instituições, o encontro de soluções e não de mais problema. Tanto é que nós tivemos condições suficientes para elaborar um Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, que é um resultado prático e inegável: tem metas, indicadores, objetivos, ações e pessoas responsáveis”, analisa.

Até o fechamento desta reportagem, a Conaeti não tinha sido recriada, mas outra comissão muito semelhante, de combate ao trabalho escravo (Conatrae), foi ressuscitada pelo decreto 9.887, de 27 de junho, já com as modificações previstas no decreto 9.759. E a diminuição da representação se confirmou: antes eram 18, sem contar os observadores, agora passarão a ser oito. Da mesma forma, estão valendo as novas regras estabelecidas no ‘decreto-mãe’, de que as reuniões devem ser convocadas com horário para início e término, garantindo-se que as votações aconteçam no intervalo máximo de duas horas e de que os integrantes que estiverem fora do Distrito Federal devem participar das reuniões à distância, por videoconferência. O fato é que, em algum ponto da curva, essas mudanças se complementam já que uma parte das entidades que compunham esses colegiados em geral não dispõem da infraestrutura necessária para atender a esse requisito legal. Patrícia Sanfelici diz que o MPT faz reuniões por videoconferência com procuradores de todo o Brasil e que, de fato, essa poderia ser uma medida de economia. “A questão é haver tecnologia disponível”, ressalta, referindo-se à necessidade de que a disponibilidade seja para todas as entidades.

Exatamente por isso, a secretária-executiva do Consea defende que o recurso da videoconferência seja opcional, sob o custo de se negar a diversidade de espaços que contam – e precisam continuar contando – com a participação de indígenas, quilombolas e outros segmentos com especificidades. “Como se faz quando não existe sinal [de internet] numa aldeia?”, questiona Marília Leão.

Para Wellington Mello, coordenador da bancada dos trabalhadores da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, que funcionava na SGTES, do Ministério da Saúde, e foi extinta por ato específico (mas em atenção ao decreto 9.759), a combinação dessas regras vai gerar muitos problemas. “Nós levávamos dois dias para discutir todos os assuntos e faltava tempo. Agora você imagina isso por videoconferência e durando duas horas. Não vai funcionar de jeito nenhum”, diz, apostando, no entanto, que o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, entenderá esses prejuízos e tentará evitá-los. “Quando era secretário de Saúde do município de Campo Grande, o ministro valorizou tanto o conselho municipal de saúde como a mesa municipal. Ele valorizou os protocolos produzidos pela Mesa [Nacional]”, conta. Na avaliação de Lenir Santos, especialista em direito sanitário e conselheira nacional de saúde, a Mesa é o único colegiado de participação ligado ao Ministério da Saúde que ainda corre o risco de deixar de existir.

Mas quanto custa?

Embora o principal argumento do governo para todas essas mudanças seja a economia de recursos públicos, nunca foi apresentado um cálculo sobre quanto custa manter a estrutura de participação social que o Brasil tem hoje. Perguntadas pela reportagem, nem a Casa Civil nem a Secretaria Geral da Presidência da República responderam a essa questão. Também não existe uma rubrica de participação social para todo o Executivo.

No caso dos conselhos nacionais ligados a políticas públicas, a busca, em geral, é mais fácil porque uma luta histórica desses colegiados tem sido pela garantia de uma rubrica própria no orçamento do ministério a que estão vinculados. Mesmo assim, essa não é uma regra sem exceção. Uma pesquisa no Portal da Transparência do Governo Federal, assim como o acesso ao relatório de gestão de alguns desses colegiados, mostra que o gasto principal desses espaços é com passagens e diárias, na maioria das vezes para garantir o deslocamento e permanência dos seus membros nas reuniões. Em alguns casos, há gasto com funcionários para manter a estrutura funcionando; em outros, como acontecia com o Consea, esse trabalho é feito por servidores cedidos ou emprestados de outro órgão federal. Outra despesa encontrada – mas sempre num valor muito abaixo – é com a produção gráfica de material informativo ou educativo.

Especificamente na Presidência da República, por exemplo, existe uma ação orçamentária chamada ‘Funcionamento dos conselhos e comissões da Presidência da República’, mas isso não se mantém para todas as Pastas do governo federal. De acordo com o Portal da Transparência, em 2018 essa rubrica teve um orçamento de R$ 3,69 milhões, mas apenas R$ 2,32 milhões de despesas foram executadas. Desse total, 6,3% foram gastos de gráfica e 17,69% com uma empresa de eventos. Todo o restante são custos de passagem e diária, a maior parte (65,62%) paga a uma empresa de turismo e uma menor parte a uma companhia aérea específica e a pessoas físicas.

As diferenças de responsabilidade e o modo de funcionamento dos colegiados, principalmente no caso dos conselhos, também se expressam orçamentariamente. Estruturas que são responsáveis pela organização de conferências temáticas – como o CNS e o Consea, entre outros – administram um orçamento extra nos anos em que esses eventos e encontros preparatórios acontecem. O relatório de gestão do Consea 2018, por exemplo, mostra que naquele ano o conselho gastou pouco mais de R$ 449 mil para a realização do ‘Encontro Nacional 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional + 2 anos’, que acontece nos intervalos entre as conferências para monitoramento das decisões. De acordo com a secretária-executiva do Conselho, Marília Leão, em média são realizadas seis plenárias por ano, com a participação de cerca de cem pessoas. Ao todo, incluindo a organização do evento, o Consea teve um gasto total de R$ 1,1 milhão em 2018. “A democracia tem um custo. Ouvir a voz da sociedade, botar a sociedade próxima dos governantes, tem um custo. Mas é muito baixo”, opina Marília. Agora, em 2019, deveria acontecer a 6ª Conferência Nacional. As etapas estaduais e municipais estão sendo realizadas em várias regiões do país. De acordo com Maria Emília Pacheco, ex-presidente do Consea, diante do cenário de indefinição, uma das propostas que está sendo discutida por entidades e movimentos sociais ligados ao tema é promover, provavelmente em 2020, uma Conferência Nacional Popular de Segurança Alimentar e Nutricional.

Os colegiados cujas funções demandam assessoria técnica também têm especificidade. O caso da saúde é exemplar. “O Conselho Nacional de Saúde tem a atribuição legal de dar o parecer conclusivo sobre o relatório anual de gestão. Isso está na lei 141, que também estabelece que compete ao conselho a avaliação dos relatórios quadrimestrais e a indicação de medidas corretivas, se for necessário. Os conselheiros não têm competência técnica para fazer isso sozinhos, precisam de assessoria ou consultoria para subsidiar a decisão que vão tomar”, explica Francisco Funcia, especialista em orçamento e assessor do CNS.  Lenir Santos completa: “Nós estamos falando de um pacto social. E por isso tem que se arcar com o custo. Não tem custo o Legislativo? Não tem custo o Judiciário? Não tem custo o Executivo? Também tem custo a participação da sociedade”.

Na quase totalidade dos conselhos nacionais ligados a políticas públicas, além de todos os outros colegiados citados nesta reportagem, não há pagamento de qualquer tipo de remuneração aos integrantes. “A questão da remuneração a conselheiros somente poderia existir em cada caso específico e determinado por lei. Nenhuma remuneração pode ser criada por decreto. Caso exista uma lei dispondo sobre remuneração de conselheiro, ela foi aprovada pelo Legislativo e, assim, nenhum decreto poderia alterá-la. Isso põe por terra o argumento de que o decreto [9.759] visa diminuir esse tipo de despesa”, explica Lenir Santos.

Trazendo o exemplo do Consea, Marília explica e analisa a dinâmica: “Geralmente os grupos e coordenações trabalhavam à distância. Quem era da mesma cidade se encontrava por conta própria. O trabalho é voluntário. Esses especialistas doam o seu tempo para o governo”. Entre os espaços que foram pesquisados pela reportagem, o único que prevê algum tipo de remuneração é o Conselho Nacional de Educação, que paga um “jeton” no valor de 1/25 de um DAS 6, o que hoje corresponde a R$ 677,80 por cada sessão em que o conselheiro estiver presente. Ordinariamente, o CNE realiza sete sessões por mês, em quatro dias de trabalho. Mesmo que seja necessário realizar uma sessão extra, esse é o máximo de remuneração permitida, que totaliza pouco mais de R$ 4,7 mil brutos.

De modo geral, compete ao governo manter a estrutura dos colegiados ligados à administração federal. Mas, no que diz respeito aos custos, o que não faltam são exceções a essa regra. Um exemplo é o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI), que foi recriado em 27 de junho pelo decreto 9.893 – com modificações importantes, como a redução dos integrantes de 34 para seis, o estabelecimento de que seu regimento deve ser aprovado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e não mais por votação do próprio conselho, e a exclusão da competência de “acompanhar a elaboração e execução da proposta orçamentária da União, indicando modificações necessárias”. No que diz respeito ao financiamento, o CNDI defendeu – e conseguiu – a aprovação de uma lei (12.213/2010) que criou o Fundo Nacional do Idoso, que permite aos conselhos municipais, estaduais e nacional receber doações de pessoas físicas e jurídicas, que podem deduzi-las do imposto de renda. Em âmbito nacional, o funcionamento regular do conselho e a realização das conferências contavam com esses recursos, complementados pelo orçamento federal. Caso bem diferente de todos esses exemplos é a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, cujo regimento prevê que as despesas de passagem e diária são garantidas pelas próprias entidades que a compõem, sem custos para o governo. De modo geral, colegiados compostos por gestores federais, como é o caso da Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica, já citada nesta reportagem – que foi extinta e até o fechamento desta edição não tinha sido recriada –, também não representam qualquer custo para o governo, já que seus representantes estão todos em Brasília.

Nem mesmo esse argumento, no entanto, parece suficiente. A exposição de motivos do decreto 9.759, que tem trechos destacados na manifestação de defesa da AGU junto ao STF, é clara: “Alguns consideram, equivocadamente, que o problema do excesso de colegiado é, apenas, o gasto com diárias e passagens nas reuniões e as expectativas frustradas quanto aos resultados. Sem desmerecer tais problemas, o fato é que o excesso de colegiados resulta em problemas muito mais graves, entre os quais citamos, a título exemplificativo: grande gasto homem/hora de agentes públicos em constantes reuniões de colegiados; elevado número de normas produzidas pelos colegiados, de modo atécnico e com sobreposição de competências, gerando passivos judiciais e administrativos”.

Funciona ou não?

Segundo esse texto, portanto, o diagnóstico não é apenas de que os colegiados têm um alto custo, mas também de que são ineficientes, burocratizam e por vezes atropelam as atribuições que deveriam ser diretamente do governante. O depoimento que os integrantes desses conselhos e comissões entrevistados pela Poli trazem, no entanto, mostram um cenário diferente. Se chegou até este ponto, você já viu exemplos de ações concretas que resultaram do trabalho de alguns dos colegiados citados, como a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Infantil. Mas a lista é longa.

Com todos os seus defeitos, eu penso que os conselhos de saúde atuaram e atuam como salvaguardas para a garantia de um SUS de acesso universal
Lenir Santos

Antonio Fernandes, representante da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) no Conselho Nacional de Meio Ambiente até este ano, diz que o que muitas vezes acontece não é uma “sobreposição”, mas uma contrariedade aos projetos dos governos. E, na sua avaliação, evitar isso é a verdadeira motivação do decreto 9.806, que reduziu o número de integrantes do Conama. Carlos Alberto Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) explica que a mudança foi uma “manobra” do Ministério do Meio Ambiente para neutralizar os votos da sociedade civil. Isso porque, segundo ele, no novo desenho – com oito representantes do governo federal, cinco de governos estaduais, dois de governos municipais, quatro de entidades ambientalistas com atuação nacional e duas de entidades empresariais –, a sociedade civil perdeu 5% de representatividade. Já o governo federal saltou de 30% para 43,5%, o que, somado ao setor econômico, que manteve os 8% de participação, já garante maioria nas votações. Isso era importante, explica Bocuhy, porque, nas pautas controversas do Conama, governo e empresariado costumam caminhar lado a lado. “Agora, o governo poderá votar, de forma quase sumária, todas as medidas que atendem, por exemplo, aos interesses do agronegócio”, diz. Com esse cálculo, Bocuhy desmente a informação fornecida por matéria publicada no site do MMA de que foi mantida a “proporção existente entre os vários segmentos componentes do colegiado e agrupamento dos Estados”. Ele ainda ressalta que algumas representações, como a da comunidade indígena, foram simplesmente cortadas do colegiado. 

Ambos os entrevistados destacam que, desde os governos anteriores, o Conama, que tem caráter deliberativo, vinha atuando principalmente para conter “retrocessos” na pauta ambiental. Fernandes cita, por exemplo, a cobrança do conselho para que se fizesse cumprir a legislação ambiental nas tragédias que ocorreram nas barragens de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. Como vitória importante (e incômoda) do Conama, Bocuhy lembra que, uns dois anos atrás, o conselho conseguiu travar uma proposta de flexibilização do licenciamento ambiental que veio do Executivo, antes mesmo de o tema ser votado na Câmara dos Deputados.  “A queda de braço era mais equilibrada”, diz, argumentando que as mudanças no Conama são, na verdade, parte de um ataque do governo a todo o Sistema Nacional de Meio Ambiente. No site, a justificativa para as mudanças é outra: “Também será possível que sejam adotadas decisões e posicionamentos mais objetivos e mais céleres, prestigiando assim a capacidade crítica e de aprofundamento nos temas mais relevantes”. Procurado via assessoria de imprensa, o Ministério do Meio Ambiente não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem.

Wagner Romão, pesquisador que acompanha as práticas de participação social no Brasil, cita também como caso exitoso o Conselho Nacional das Cidades – que até o fechamento desta edição continuava extinto – como espaço em que, a despeito de uma correlação de forças em que muitas vezes os interesses dos movimentos sociais e do empresariado se opunham, foi possível avançar na política. Um dos ganhos da pactuação nesse espaço foi, segundo ele, o programa ‘Minha Casa, Minha Vida – entidades’, que oferece moradias populares construídas por cooperativas habitacionais ou outras entidades sem fins lucrativos.

A saúde, segundo Romão, é uma área emblemática dos êxitos do controle social. “A preservação do SUS se tornou uma espécie de ‘mantra’ desses espaços”, diz, referindo-se também às conferências. Lenir Santos concorda: “Com todos os seus defeitos, eu penso que os conselhos de saúde atuaram e atuam como salvaguardas para a garantia de um SUS de acesso universal. Muitas políticas públicas não foram modificadas negativamente pela repercussão que poderiam ter perante o conselho. Bem ou mal, os conselhos em geral – meio ambiente, saúde, assistência social, etc. – têm inibido atuações negativas”, avalia.

Outro exemplo recente de sucesso da participação social foi, de acordo com Romão, a 4ª Conferência Nacional de Meio Ambiente, que aconteceu em 2013. Segundo ele, diferente dos eventos anteriores, ela teve um objeto específico, que era a implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos. E deu certo. “Claro que a gente ainda não tem uma política ideal, mas a conferência colaborou para um aprofundamento e um amadurecimento tanto dos agentes públicos quanto da sociedade civil nessa área”, diz, destacando que são variados (e igualmente importantes) os papéis desempenhados por esses espaços: pode ser o amadurecimento de um determinado setor sobre as políticas daquela área, o redirecionamento de uma política que não está dando certo, a visibilidade pública ou mesmo a mobilização nacional em torno de um determinado tema. Mas nada disso se dá sem contradições, alerta. “Infelizmente, os conselhos e conferências não são os únicos espaços de deliberação das políticas públicas”, lamenta, dando exemplos também de derrotas que vêm cada vez mais sendo sofridas por esses espaços, mesmo quando eles têm o poder de deliberar. Ele exemplifica: “Um dos pontos-chave de discussão no campo da saúde é a questão das organizações sociais, as OSs. Eu sei que esse debate foi se estendendo ao longo das últimas conferências nacionais, com muita polêmica, e que, em geral, o campo se manifesta como contrário a esse modelo de gestão. Ganha na conferência, mas perde na política pública”.

Além disso, nem todos os conselhos têm uma história de participação social mais ampla, como o CNS. É o caso do Conselho Nacional de Educação, o mais antigo entre todos esses colegiados no Brasil. Nesse caso, as restrições estão dadas nas próprias regras de funcionamento e composição do conselho. Uma evidência é que as decisões do CNE não têm propriamente caráter terminativo porque precisam ser (ou não) homologadas pelo Ministério da Educação (MEC). Sobre a composição, metade dos integrantes representa a sociedade civil, mas é escolhida pelo governo, a partir de uma lista de indicações. Essa característica do CNE ganhou alguma atenção em 2016, quando, no início do governo Michel Temer, foi revogada a nomeação de 12 conselheiros. O entrevistado da Poli sobre esse tema, Luiz Dourado, que é professor da Universidade de Goiânia e seria reconduzido ao cargo que já exercia no Conselho, foi um dos que ficou de fora da nova lista. O dilema se ampliou em 2018, quando o MEC promoveu mudanças também na composição do Fórum Nacional de Educação (FNE), que era responsável pela organização da 2ª Conferência Nacional de Educação. Diante da polêmica, muitas entidades se retiraram desse processo e construíram, em paralelo, a 1ª Conferência Nacional Popular de Educação. De acordo com Dourado, essa foi uma inflexão em relação aos resultados das conferências anteriores da área – a 1ª Conae e a de Educação Básica –, de onde saíram, entre outras coisas, muitas das metas e estratégias que compõem o Plano Nacional de Educação em vigor.
Por tudo isso, o professor caracteriza o CNE como um importante órgão de controle e participação, mas ressalta que ele tem limitações neste último quesito. Dourado conta que o conselho começou a fazer um movimento de discussão com vistas a garantir uma maior abertura para a participação da sociedade civil. Foram montadas algumas comissões, mas não se chegou a uma proposta de mudança da lei. “O CNE fez um esforço para se tornar órgão de Estado, mas continua sendo um órgão de governo”, conclui.

Se mesmo conselhos que carregam uma longa história e contam com maior estabilidade jurídica apresentam algumas limitações e derrotas dignas de nota, a situação de outros colegiados de participação social, de estrutura e marco regulatório mais frágil, é certamente mais preocupante. Se são muitos os exemplos de iniciativas implantadas, retrocessos contidos e políticas fiscalizadas pela atuação da sociedade civil junto aos gestores públicos, também não foram poucos os casos em que o governo da vez simplesmente ignorou propostas ou mesmo desobedeceu a decisões tomadas nesses espaços. Por que será, então, que eles ainda parecem representar uma ameaça? É o pesquisador André Dantas, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz, que estudou sobre o modelo de controle social, quem arrisca a resposta: “Parece que vivemos um tempo em que é necessário apagar qualquer memória de luta, anular qualquer espaço onde seja possível produzir alguma contestação, mesmo que mínima”, diz. E completa: “A despeito das críticas mais ou menos profundas, não nos cabe outra coisa neste momento senão defender a participação social e tentar fazê-la avançar para o que ela, na verdade, nunca chegou a ser. O filho enfeiou, mas é nosso”.