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Passado, presente e futuro do SUS em pauta no Abrascão

Sanitaristas reunidos no congresso fazem balanço das perdas do SUS nos últimos anos e apresentam propostas para o próximo ciclo de governo
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 20/01/2023 10h00 - Atualizado em 23/06/2023 13h51
Fernando Gomes/Abrasco

Não é de hoje que parte do movimento sanitário vem reivindicando a necessidade de um novo pacto pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que dê conta das demandas de uma conjuntura bem diversa àquela de quando o sistema foi criado, há mais de 30 anos. Reconstruir, reformar, refundar, repensar o SUS. Muitos verbos foram e vêm sendo conjugados ao longo dos debates que movimentam as entidades da Reforma Sanitária em torno dessa pauta, que ganhou relevo nos últimos anos, com a retomada de um ideário neoliberal nos últimos governos que aprofundaram os problemas crônicos que historicamente marcaram o sistema de saúde brasileiro.
No 13º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, o Abrascão, realizado em Salvador no final de novembro do ano passado, a urgência dessa agenda foi constantemente reforçada. Em muitas das falas, palestras e exposições realizadas ao longo dos quatro dias de evento, que reuniu mais de 6 mil pessoas, o tom em geral mesclava três sentimentos: a esperança de que a vitória do candidato Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições, poucas semanas antes do congresso, representasse uma possibilidade de reversão dos desmontes recentes e a reabertura de canais de diálogo com o governo federal; o pragmatismo diante do reconhecimento dos desafios à frente considerando uma correlação de forças e uma conjuntura política, econômica e social menos favorável do que aquela encontrada nas gestões anteriores do presidente eleito; e o luto pelas quase 700 mil vítimas da Covid-19, cujas lições e legados ser ainda muito estudados para que possam ser incorporadas ao SUS. 

“A pandemia deixou um rastro de empobrecimento e exacerbou as já graves desigualdades brasileiras. Precisaremos do trabalho articulado de todas as nossas áreas e grupos temáticos para construir um novo Brasil”, destacou a presidente da Abrasco, Rosana Onocko, na abertura do evento. “O Brasil se enche de novo de esperança, na iminência de um novo governo [...] Teremos pela frente anos de um árduo trabalho para erigir um país novo. Não se trata de uma reconstrução, porque queremos um país melhor e diferente, sem as principais mazelas que o acompanharam nos últimos 500 anos [...] Novos tempos, novas esperanças, novos ares. Provavelmente, problemas novos”, disse Onocko, que é professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Isabela Cardoso, presidente do 13º Abrascão e docente da Universidade Federal da Bahia (UFBA), destacou em seu discurso o “papel importantíssimo” da saúde coletiva nesse novo ciclo e reforçou a necessidade de continuidade da mobilização construída durante a pandemia. “A frente que formamos deve manter o vigor, a vigilância e está muito atenta aos desafios que essa caminhada impõe [...] Nossa mobilização não pode parar. As necessidades são muitas”, disse Cardoso, resumindo em seguida as principais pautas: “O investimento nas políticas sociais é urgente. É imprescindível revogar a Emenda Constitucional que congela os gastos públicos. O controle social precisa ser fortalecido. Precisamos enfrentar a agenda neoconservadora. Garantir a regulação do mercado e serviços privados no contexto da financeirização”, enumerou.

Deisy Ventura, professora da Universidade de São Paulo (USP), resumiu, em uma mesa com o tema ‘Democracia é saúde no Brasil e no planeta Terra’: “O Brasil precisa consolidar sua democracia’. Mas alertou: “Apesar do horizonte da nova presidência, essa nossa festa começa com fascistas infiltrados em todas as esferas sociais do Estado, de forma transversal. Esse movimento teve tradução histórica no Brasil, país escravocrata, homofóbico, machista, racista de forma profunda, pelas desigualdades e autoritarismos que acumulamos. Precisamos de um movimento democrático, progressista, que faça frente ao movimento conservador. Fizemos muito. Mas ainda não é suficiente. Temos que falar de outras formas”, reivindicou Ventura. Em uma fala bastante aplaudida durante a mesa, Ventura destacou a necessidade de “reforçar a institucionalização” do SUS como um aprendizado essencial da pandemia. “Precisamos pensar formas de não nos deixar tão vulneráveis aos governos que passam. O SUS não pode ficar ao sabor de governos. Precisamos reforçar a institucionalização. Vamos enfrentar a necessidade de reconstruir a ordem jurídica institucional brasileira que foi devastada nesses quatro anos”, destacou. E completou: “Não podemos deixar barato o que aconteceu no Brasil. Oferecemos ao mundo um exemplo que é possível se omitir diante de uma crise sanitária grave, deixar as pessoas morrerem sem grandes desassossegos. Não tomando as medidas necessárias, desencorajando uso de medidas preventivas. A garantia de que isso nunca mais se repita nós precisamos conquistar. Passa por maneiras de inserir na nossa legislação que o Estado não pode simplesmente matar sua população. Não podemos deixar essa história ser esquecida. Mas não vai ser um governo sozinho que vai ser capaz de mudar a cultura brasileira para que isso não aconteça jamais”.

Oferecer propostas nesse sentido foi o objetivo do Dossiê Abrasco Pandemia de Covid-19, lançado durante o congresso. Construído por mais de 300 pesquisadores, o documento traça paralelos entre o impacto da pandemia no Brasil com o contexto de desconstrução das políticas sociais, entre elas o SUS, discute o que poderia ter sido feito para amenizar a tragédia e por fim apresenta 27 propostas para o SUS e também para além dele. “O combate à Covid-19 requer o aprofundamento da democracia e de relações virtuosas entre direitos individuais e coletivos, esses últimos de reconhecimento tardio, mas de importância crucial para o futuro da humanidade. De fato, só será possível construir projetos orientados por mais equidade, justiça e cidadania ao fortalecer a dimensão política das relações sociais. São esses valores que devem orientar o esforço interdisciplinar e as consequentes respostas a serem dadas frente à crise sanitária, econômica, social e humanitária que abalou o mundo neste início de século 21”, diz o texto, em seu resumo executivo.

Aumentar gastos, reduzir setor privado
Nessa tarefa, duas pautas urgentes para o SUS nos próximos anos foram amplamente discutidas ao longo do congresso: a necessidade de aumento do gasto público com o SUS e de redução do papel do setor privado na saúde no Brasil. “Na baixa do ciclo econômico, o gasto em saúde não pode cair. Em momentos de crise o sistema é pressionado. Tem de haver mudança das regras fiscais, com estabilidade fiscal mas sobretudo crescimento com inclusão social e sustentabilidade ambiental. Saúde desconcentra renda, é intensiva em força de trabalho, promove e favorece relação do país com o resto do mundo, reduzindo o déficit comercial. Investir na saúde é estratégico para  mudança na correlação de forças, seja no plano institucional ou no plano da luta de classes”, defendeu o economista Carlos Octávio Ocké-Reis, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “O gasto público per capita no Brasil em 2019 foi de 610 dólares, valor baixo comparado com o resto do mundo. É preciso colocar de cabeça para baixo o argumento que o problema do SUS é de gestão, quando boa parte dos problemas de gestão decorre do financiamento. Para gastar mais e melhor é necessário mais recursos organizacionais”, disse o economista, que durante o evento falou sobre a proposta de uma nova política de financiamento para o SUS elaborada por diversos economistas e lançada no segundo semestre do ano passado pela Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES). “Essa proposta procura garantir crescimento automático do gasto público e mudar a característica estrutural do financiamento da saúde no Brasil, que é uma contradição, um modelo universalista onde o gasto privado é maior do que o público”, destacou Ocké-Reis.

Segundo levantamento da ABrES, estima-se que a política fiscal atual seja responsável por uma perda de R$ 48 bilhões na saúde entre 2018 e 2022. Segundo a entidade, os gastos per capita em saúde vêm em queda no Brasil, passando de R$ 687 em 2012 para R$ 617 em 2021, excluindo os valores relacionados à Covid-19. O novo plano de financiamento da saúde quer ampliar o gasto federal em saúde dos atuais 1,6% do Produto Interno Bruto para entre 2,4% e 3% em um período de 10 anos. Uma tarefa nem um pouco simples: segundo a ABrES, para isso é necessária a revogação da Emenda Constitucional 95, o teto de gastos, e da chamada “regra de ouro”, que limita o endividamento para financiar despesas correntes, como gastos com pessoal e benefícios sociais. “Temos três regras fiscais que se sobrepõem, regra de ouro, a Lei de Responsabilidade Fiscal e o teto de gastos, que é a pá de cal. Criou-se um regime pró-cíclico para baixo e recessivo para cima. Mesmo com aumento da receita, como em 2022, ainda que seja pela inflação, o governo faz cortes no orçamento por causa do teto de gastos. A rigidez fiscal suscita expedientes frequentes de flexibilização seletiva, como o orçamento secreto, por exemplo. Gera austeridade seletiva e criminalização da política fiscal”, pontuou Esther Dweck, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que assim como Ocké-Reis participou da elaboração da proposta da ABrES. “Estamos em um impasse. Há um consenso que o teto morreu. O que vai se colocar no lugar? É uma disputa que se dará no próximo ano”, destacou a economista da UFRJ.

Ainda considerando o cenário da Covid-19, a proposta da ABrES prevê a aprovação de uma PEC emergencial, autorizando gasto extraordinário fora da regra de ouro, do teto e do primário em 2023, tendo em vista, de um lado, as sequelas da Covid-19, as demandas reprimidas, o reajuste dos planos privados de saúde e, de outro, o impacto da saúde sobre o nível de emprego e o combate à desigualdade. Além disso, pressupõe ampliar a progressividade do sistema tributário, taxando renda, patrimônio e riqueza financeira, com a criação de um Imposto de Renda sobre lucros e dividendos e um Imposto sobre Grandes Fortunas, assim como rever os gastos tributários em saúde (o teto das renúncias de saúde no Imposto de Renda Pessoa Física), bem como ampliar a destinação de recursos de pré-sal para a saúde. “Nenhuma mudança do piso da saúde será feita sem organização e mobilização popular. Essa compreensão é fundamental, no CNS, na Frente pela Vida, no conjunto das entidades da Reforma Sanitária. Sem mobilização popular não avançaremos em direção ao projeto democrático e popular que pressupõe a superação do neoliberalismo e o isolamento da extrema direita”, defendeu Ocké-Reis.

Mercado privado
Fernando Gomes/AbrascoPara ter um SUS universal, é preciso reduzir o setor privado. Assim resumiu o sanitarista Jairnilson Paim, da UFBA, durante a mesa redonda ‘O SUS e o setor privado: como afirmar o SUS diante de uma coalizão privatizante’. “A pergunta que vocês devem ter percebido é o ‘como’. E isso de alguma maneira nos impacta. Nós normalmente estamos preocupados com ‘o quê’ fazer. Devemos observar o setor saúde do Brasil como ele é. Com o SUS que conhecemos, e o setor privado que cada vez mais se articula, de uma forma espúria, parasitária, predatória, de uma maneira que vai contra os interesses e necessidades da população. O setor privado precisa ser cada vez mais investigado”, concluiu Paim.

Estudar a atuação do setor privado é uma tarefa a qual tem se dedicado a coordenadora do Programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Idec, Ana Carolina Navarrete. “Constatamos que o mercado sai da pandemia muito bem. Fortalecido, concentrado, com fusões e aquisições. Maior número de usuários – o medo de ficar sem leito e cuidado é grande. Enquanto o SUS sai enfraquecido e desestruturado. Precisamos olhar para o mercado privado, pensar propostas para que esteja no sistema de governança do SUS”, destacou Navarrete. Durante outra mesa, também com o tema da privatização, ela enfatizou a importância de que a gestão do SUS compreenda as mudanças “radicais” pelas quais o mercado privado de saúde vem passando atualmente, principalmente através da fusão de empresas operadoras de planos de saúde com prestadoras de serviços, como foi o caso recente da Hapvida e da Notredame Intermédica. “Com isso há o fim do conflito de agência entre quem presta o serviço e quem paga a conta, porque a mesma empresa que presta o serviço é quem paga a conta. No mercado privado, o desfecho disso pode ser muito ruim”, disse Navarrete. Outro movimento das empresas que carece de maior monitoramento e acompanhamento pelos gestores públicos é o da digitalização da saúde, principalmente a partir do impulsionamento da telemedicina e da digitalização de prontuários. “Há muitos problemas em relação ao armazenamento desses dados gerados por esses serviços. Quais as implicações éticas disso, tendo em vista que os dados de saúde podem ser utilizados na perspectiva de selecionar riscos pelas empresas? É preciso fortalecer o sistema de governança de dados”, reivindicou. Uma terceira agenda do setor privado é a mobilização na arena judicial, com as empresas atuando fortemente no Judiciário para barrar propostas que ampliem direitos dos usuários de planos frente as empresas, como o debate sobre se as empresas devem ou não cobrir procedimentos fora da lista divulgada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Recentemente, em junho, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) julgou que as empresas não são obrigadas a fazê-lo, o que segundo ela reverteu um entendimento anterior que favorecia os usuários. “A decisão do STJ significa que o rol da ANS agora é o teto, e não mais um piso de cobertura”, criticou Navarrete, complementando em seguida: “A porta que você fecha no privado você abre no SUS. Se a gente não se apropria dessa discussão, se você permite que a operadora controle a cadeia de custos e negue atendimento, você permite um modelo de negócio que é basicamente pagar mensalidade e não ser atendido. É muito rentável”, apontou. Por fim, uma quarta agenda do setor privado destacada pela pesquisadora foi a da desregulamentação, com a mobilização das empresas pela flexibilização das leis e normas que regulam o setor privado. “A gente vive um mercado regulado por uma agência [a ANS] que vive um processo de capturas, como a questão da porta giratória, de diretores que vêm do mercado privado e quando saem consigo os contatos. Os últimos quatro anos foram particularmente difíceis, porque nomes indicados deixaram a agência em posição fraca”, concluiu.

Educação Profissional em Saúde no Abrascão
O 13º Abrascão marcou a divulgação de uma ‘Carta das Escolas Técnicas do SUS em Defesa da Educação Profissional em Saúde’, assinada por escolas de vários estados do país, incluindo a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que no texto manifestaram compromisso com a defesa e a valorização do trabalho e da formação dos técnicos em saúde, “entendendo que seu fortalecimento significa o fortalecimento do SUS e do direito à saúde”. Citando dados do Observatório dos Técnicos em Saúde da EPSJV/Fiocruz, a carta lembrou que os trabalhadores que atuam em atividades para as quais é ou deveria ser requerida a formação técnica em saúde somam 80% da força de trabalho em saúde no país, sendo que 87% atuam no SUS. Contraditoriamente, no entanto, lembrou a nota, têm sua formação realizada predominantemente em instituições privadas de ensino. “Com a pandemia de Covid-19, ficou ainda mais evidente o valor estratégico destes profissionais, historicamente invisibilizados, para uma resposta eficiente às emergências sanitárias. O contexto pandêmico evidenciou também a crescente precarização do trabalho vivida a partir da década de 1990, agudizada pelas contratações emergenciais, sem garantia dos direitos associados ao trabalho e a inserção não-qualificada de trabalhadores, em especial dos técnicos, nos serviços de saúde”, destacou o texto das Escolas Técnicas do SUS.

Márcia Valéria Morosini, professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz que integrou uma mesa sobre educação profissional e formação dos trabalhadores técnicos no Abrascão, lembrou do impacto desproporcional da Covid-19 sobre os técnicos ao longo da pandemia, segundo ela, fruto das condições de trabalho precárias que historicamente são um estigma do trabalho técnico em saúde no SUS. “70% dos 4,5 mil trabalhadores da saúde pública e privada que morreram na primeira onda da pandemia, entre março de 2020 e dezembro de 2021, eram técnicos ou auxiliares de enfermagem. Dois terços não tinham contrato formal de trabalho”, lembrou, citando dados de uma pesquisa divulgada em novembro.

Ela também chamou atenção para a predominância do setor privado na formação desses profissionais, a despeito de sua atuação no SUS. “Há uma grande contradição: uma formação predominante privada para um trabalho predominantemente público. Que princípios ético-políticos orientam essa formação realizada pelo setor privado, orientada pelo mercado, que tem a mercantilização como motor. É compatível com o atendimento de interesses públicos não mercantis, na perspectiva do direito à saúde?”, questionou Morosini, destacando ainda o predomínio de programas de treinamento em serviço. “Há um histórico de treinamento em serviço, com a participação de outros trabalhadores qualificados que ficam sobrecarregados com a tarefa de também formar esses trabalhadores. Os projetos de formação profissional promovidos pelo Estado vêm na busca por equacionar déficits de formação das diferentes categorias de técnicos e auxiliares da saúde. Necessidade que sempre repõe pelo contínuo ingresso de trabalhadores não profissionalizados, ou com formação aligeirada”, completou a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz. Ela que haja uma retomada da centralidade da pauta relativa ao trabalho e à educação na saúde nas políticas do Ministério da Saúde, com o fortalecimento da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) em uma perspectiva democrática e participativa. “É necessário o cumprimento do papel ordenador do Ministério da Saúde na formação dos técnicos em saúde, articulado com o MEC, com uma coordenação de esforços para rearticular a RETSUS [Rede de Escolas Técnicas do SUS] e a sua articulação com as demais redes públicas de formação em saúde, no sentido de compor uma frente ampla de formação de trabalhadores técnicos da saúde”, defendeu.