Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Perdendo logo na largada

Embate entre os movimentos sociais em ascensão e os grupos conservadores organizados resultou também em perdas já no texto original
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 23/10/2013 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Quando foi aprovada a Constituição, nós festejamos a conquista de direitos, como a universalidade e a equidade. Mas o complexo médico-industrial comemorou também. Alguma coisa estava errada”. A frase é de Marco da Ros, médico e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que, em 1988, era militante do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) e acompanhava também as pautas do movimento sanitário. E não foi só na saúde e na educação. A sensação que o professor teve 25 anos atrás parece se atua-lizar quando se leem as reportagens comemorativas do aniversário da Carta Magna, publicadas em quase todos os grandes jornais. Entre os entrevistados de agora, rememorando as lutas progressistas daquela época e denunciando as manobras do grupo conservador que se reuniu em torno do chamado ‘Centrão’, destacam-se figuras políticas como o ex-ministro

Nelson Jobim, o ex-deputado Bernardo Cabral, o atual vice-presidente Michel Temer, estes dois últimos do PMDB, e o senador Francisco Dornelles, do PP. Integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT), que votou contra o texto constitucional por considerá-lo muito aquém do esperado nas conquistas sociais, também foram chamados a falar e, no geral, hoje reconhecem a Constituição como um avanço. O que mudou?

Correlação de forças. Essa é a expressão repetida por todos que falam sobre as conquistas e derrotas dos movimentos sociais progressistas na Constituição de 1988. Com isso, querem dar chão histórico ao resultado híbrido que se conseguiu no texto constitucional e relativizar o que se considera avanço ou recuo. Em outras reportagens desta edição, você vai acompanhar o desmonte que os direitos garantidos naquela época sofreram até os dias atuais. Mas, se a onda neoliberal que se seguiu à Constituição foi devastadora, e o período neodesenvolvimentista que se inaugura nos anos 2000 também não protegeu as conquistas sociais impressas na Carta, a verdade é que algumas perdas vieram logo na largada. Com um olhar retroativo, voltado para 25 anos atrás, nesta matéria vamos mapear e discutir algumas dessas derrotas nas áreas de saúde, educação e trabalho.


O ataque do privado

Como a própria revista Poli tem mostrado em várias reportagens, a presença do setor privado nas áreas de saúde e educação cresceu substancialmente nesses 25 anos. Fruto de políticas públicas que têm incentivado – inclusive com recursos públicos – a criação de um mercado privado de saúde e educação em todos os níveis, esse cenário encontra suas primeiras brechas já no texto constitucional aprovado em 1988. Para a advogada Lenir Santos, a maior perda que o movimento sanitário teve no capítulo da Constituição sobre a saúde foi a mudança do termo “natureza pública” por “relevância pública” para caracterizar as ações e serviços de saúde. “Com a palavra ‘natureza’ era mais fácil interpretar que os serviços seriam públicos, mesmo que se abrisse para as instituições privadas”, argumenta. Pode parecer pouca coisa brigar por uma palavra, mas os setores empresariais que se fizeram presentes durante a Constituinte não acharam. Segundo Lenir, eles temiam que, se a saúde fosse considerada de natureza pública, pudesse se instituir que o setor privado precisaria de uma espécie de concessão para atuar – e, de acordo com a advogada, era mais ou menos essa mesmo a ideia, embora a saúde não conste da lista de áreas consideradas como de competência exclusiva do poder público, como são os serviços de água e telefone. “Eu entendo que o poder público pode regular o privado, mas se fosse de natureza pública, não haveria dúvida”, diz.

Marco da Ros destaca outra perda que teria servido de brecha legal para o empresariamento da saúde: a definição do setor privado como complementar e não suplementar, como queria o movimento sanitário. E, nesse caso, segundo ele, o problema não foi a correlação de forças: o termo teria sido aprovado na comissão que discutia saúde e mantido na votação em plenário, mas desapareceu do texto final. Embora não tenha certeza, ele acredita que a mudança tenha sido feita na relatoria. Para explicar a diferença, o professor recorre a uma analogia: “Quando compramos um jornal e ele tem um suplemento, podemos jogá-lo fora que continuamos com o jornal na mão. Sendo complemento, ele faz parte do todo, não pode existir sem o resto. Daí a gravidade da situação”.

Na área da saúde, essas duas derrotas são, na verdade, desdobramentos de uma perda anterior, que era a bandeira de alguns grupos a favor da total estatização do sistema de saúde. Segundo Eleutério Rodriguez Neto, no livro ‘Saúde: promessas e limites da Constituição’, o PT e o PDT defendiam a estatização já, enquanto o PCB, o PCdoB e “setores progressistas dos demais partidos” propunham uma “convergência para a estatização através de uma estratégia de reforço progressivo do setor público”. Segundo o autor, esta última era também a proposta retirada da 8ª Conferência Nacional de Saúde, que deu as bases para o texto constitucional sobre o Sistema Único de Saúde (SUS). De um jeito ou de outro, esse era o temor do empresariado da saúde, que já se fazia representar naquele momento. “Na saúde, a grande bandeira levantada pelos setores conservadores foi a do combate à ‘estatização’ a que levariam as propostas contidas no texto da Comissão de Sistematização. Essa bandeira uniu os setores hospitalar privado, da medicina de grupo, das cooperativas médicas e o setor liberal da medicina”, escreve Eleutério. O resultado dessa disputa está principalmente no artigo 197 da Constituição que estabelece que a execução das ações e serviços de saúde deve “ser feita diretamente ou através de terceiros e, também por pessoa física ou jurídica de direito privado” e no artigo 199, que, de forma mais clara, diz que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, antes mesmo de estabelecer o caráter complementar dessa participação.

As primeiras consequências já foram imediatas: Maria Luiza Jaeger, da Rede Unida, que representava a Central Única dos Trabalhadores (CUT) nas discussões da Constituinte, lembra que a entidade defendia a estatização plena mas, com a derrota dessa tese, passou, logo nos anos seguintes, a defender planos de saúde como benefício para os trabalhadores. “Daí surgem a Geap [Fundação de Seguridade Social para servidores], o Fioprev [entidade privada de previdência complementar da Fiocruz]...”, exemplifica. O livro de Eleutério conclui: “Isso significa que está descartada a possibilidade da diretriz constitucional implícita nos textos de base, de estatização progressiva. O que se instituiu foi um Sistema Único público paralelo a um sistema privado, o qual poderá participar do primeiro mediante contrato de direito público e submetido às suas normas e diretrizes. No entanto, essa participação é complementar e não supletiva, o que significa um espaço garantido e próprio e não, como se queria, o exercício ‘em nome’ do setor público”. Qualquer semelhança com a realidade de hoje não é mera coincidência. “Temos um dilema muito grande, que é exatamente o setor privado poder atuar na área da saúde. Se a saúde pública for excelente, quem vai querer pagar R$ 600 num plano de saúde? Ninguém. Uma saúde pública de qualidade é a morte dos planos de saúde. E uma saúde pública de má qualidade é o sucesso dos planos de saúde, porque todo mundo quer se precaver”, resume Lenir Santos, ressaltando que além de permitir a presença do setor privado na saúde, a Constituição também não garantiu uma forte regulação sobre ele. Ela dá o exemplo da França: “Lá o privado não pode atuar onde quiser, como aqui. Se o privado quer ter um tomógrafo numa região, tem que pedir autorização ao Estado, que pode dizer que não porque, de acordo com o seu planejamento, o tomógrafo não cabe naquele lugar”. Para isso, segundo ela, seria preciso, primeiro, ter mecanismos para um planejamento de longo prazo, que deveria se dar por meio de um Plano Nacional de Desenvolvimento em Saúde, que, por sua vez, poderia ter sido previsto já na Constituição. Além disso, segundo ela, era necessário ter incluído na Lei 8.080 um extenso capítulo sobre o artigo 197 da Constituição, que trata da participação do privado, delegando competências que permitissem ao Estado induzir que o privado fizesse o que o setor saúde precisa. Promulgada dois anos depois da Constituição, essa lei só tem dois artigos – 22 e 23 – que tratam do tema. Por que não se fez diferente? “Aí foi correlação de forças”, responde.

Passado e presente não são muito diferentes para a área de educação no que diz respeito às brechas legais para atuação do setor privado. Como a Poli mostrou em várias matérias da série ‘Público e privado na educação’, também esse campo foi invadido pela presença não só de empresas privadas mas de verdadeiros grupos internacionais de investimento, a ponto de a grande política de educação profissional estar sendo tocada principalmente pelo Sistema S, e, no ensino superior, o Brasil ter se tornado o quinto maior mercado do mundo. Tudo isso financiado com subsídios públicos. Resultado de políticas desenvolvidas numa conjuntura muito diferente daquela de 1988, esse cenário também remete a derrotas que os movimentos sociais ligados à educação tiveram já no texto constitucional, embora não possa ser justificado por ele. “A grande bandeira dos defensores da escola pública era a exclusividade da verba pública para a escola pública”, conta Romualdo Portela, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Eles não levaram mas, na opinião do professor, mesmo essa “grande derrota” foi relativa. “Ficou o direito de se transferir verba pública para instituições não lucrativas. Foi uma derrota com algum ganho porque não deixou o repasse indiscriminado”, diz, completando: “Ainda que esse dispositivo tenha sido sistematicamente burlado após a Constituição”. Dermeval Saviani, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concorda: “As reivindicações da Carta de Goiânia [que continha as pautas dos movimentos sociais] foram incorporadas, mas, repetindo o que aconteceu em 1934, os conservadores, defensores da escola privada, liderados pela Igreja Católica, também conseguiram imprimir seus interesses”, analisa, concluindo que, em relação a esse tema, o Brasil teve, com a Constituição de 1988, “avanços no texto e sua neutralização no contexto”.

De acordo com o professor Romualdo Portela, o texto constitucional original já é uma colcha de retalhos no que diz respeito à relação público-privado. “Na parte econômica, público é estatal, privado é não-estatal, ou seja, uma empresa pública é uma empresa do Estado. Na educação, essa relação se subdividiu em três partes: o público como igual a estatal e o privado com e sem fins lucrativos. E no artigo 223, que disciplinou os meios de comunicação, vem uma outra maluquice: que as empresas de comunicação serão públicas, estatais ou privadas, como três coisas diferentes, porque absorve aquele negócio de instituição de comunicação pública dos países anglo-saxões”, explica. Especificamente na área de educação, quando se somou ao texto original a legislação que veio depois, a situação só piorou. Um exemplo é que, embora o artigo 213 da Constituição só permita o repasse de verba pública para instituições sem fins lucrativos, os artigos 70 e 71 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) permitem que o Estado aplique recursos em bolsas públicas e privadas, desde que seja subsídio ao aluno e não às instituições. “A rigor, poderíamos entrar com uma ação [de inconstitucionalidade] contra o Prouni [Programa Universidade para Todos] na justiça, mas a defesa alegaria que existe essa brecha na lei”, exemplifica o professor.

A restrição da transferência de recursos públicos apenas para o privado não-lucrativo, no entanto, não garantiu, por parte do Estado, a regulação do que veio depois. Romualdo Portela lembra que até 1988 não existia, formalmente, a figura da empresa lucrativa de educação e saúde. “Obviamente isso é uma falsidade”, pondera, explicando que a tática usada na educação, por exemplo, era dividir essas instituições em duas contabilidades diferentes, a da escola, que não dava lucro, e a da mantenedora, que era lucrativa mas não era considerada escola. Segundo ele, ao restringir o repasse de recursos públicos às instituições sem fins lucrativos, “o que a Constituição fez foi reconhecer envergonhadamente a existência de escola com fins lucrativos”. Esse imbróglio só se resolveu na LDB, de 1996, que, no artigo 20, tipifica as instituições privadas de educação. “De um lado é positivo porque acaba com aquela hipocrisia de que as escolas não davam lucro. Por outro lado, como nós reconhecemos a existência de escolas com fins lucrativos sem, ao mesmo tempo, estabelecer mecanismos de regulação desse setor, quando elas se explicitaram enquanto tal, cresceram sem nenhum controle, que é a situação que nós temos hoje”, analisa.

Para Dermeval Saviani, essa discussão da regulação remete à outra grande perda já no texto constitucional, mas que, segundo ele, não aparecia como prioritária entre as bandeiras de luta dos movimentos sociais: o estabelecimento de um Sistema Nacional de Educação. Embora, de acordo com o professor, a Constituição traga todos os elementos que apontam na direção desse sistema, ele não foi explicitado, o que facilitou o desmonte dessa ideia na LDB. Saviani explica que desde a Constituição os grupos conservadores, que representavam os interesses privados na educação junto com a Igreja Católica, foram contra a proposta de um sistema exatamente porque isso poderia submetê-los a uma maior normatização por parte do Estado. “O Sistema Nacional envolve um controle em âmbito nacional, em que as decisões regionais e locais ficariam submetidas ao nacional. E os grupos privados atuam como força de pressão principalmente local”, diz. Ele reconhece, no entanto, que, ao longo dessas mais de duas décadas, esse poder se ampliou. “Até a fase em que o poder público tinha um poder regulador do conjunto da vida das nações, os grupos privados tinham mais força de pressão nas instâncias locais e regionais. Agora, a partir da década de 1990, com o advento desse fenômeno chamado de neoliberalismo, em que os mecanismos de mercado passam a ser considerados os elementos-chave aos quais, no fundo, o Estado deve servir, os grupos privados acabam também se agigantando – porque têm as grandes corporações, não só nacionais como multinacionais – e se criam as ditas organizações não-governamentais, que acabam tendo um poder de pressão também sobre o Estado nacional”, contextualiza. Mas isso, na sua avaliação, não pode significar a defesa de que o MEC não deva interferir na educação. “Não é por aí porque esses interesses também agem lá, no nível dos municípios”, opina.

Participação e gestão democrática

As derrotas dos setores progressistas na Constituição se deram não apenas na negociação de expressões específicas usadas no texto, mas também no caráter genérico, pouco amarrado, que alguns artigos ganharam. Para Saviani, a garantia da gestão democrática nas escolas é um exemplo de ganho que virou perda. “Essa era uma reivindicação dos educadores contra a visão autoritária da ditadura. Mas, uma vez incorporada ao texto constitucional, ela foi usada para responsabilizar os professores pelas mazelas da escola”, diz. Isso porque, segundo ele, era preciso ter instituído também uma carreira para o magistério, que definisse níveis salariais, estabelecesse que os professores trabalhassem 40 horas numa mesma escola, com o máximo de 50% dessa carga horária em sala de aula, sendo o resto dedicado à preparação das aulas, à correção de trabalhos, à participação na gestão da escola e, eventualmente, à participação na vida da comunidade em atividades exclusivamente educativas. “Mas a correlação de forças não permitiu isso”, lamenta.

Maria Francisca Pinheiro, no artigo ‘O público e o privado na educação: um conflito fora de moda?’, destaca também o fato de tanto a gestão democrática quanto a sinalização de um plano de carreira só aparecerem na Constituição associados ao ensino público.  “Com isso, a escola privada ficou excluída desses princípios gerais, configurando-se assim a concepção de dois sistemas de ensino distintos, onde princípios fundamentais vigoram apenas para o setor público”, escreve. E completa: “Contraditoriamente, quando se tratou do uso de recursos públicos, o grupo privado procurou tornar-se semelhante ao público”.

Financiamento: educação ganha, saúde perde

Não ter consagrado na Constituição o texto sobre financiamento foi, na avaliação de Lenir Santos, outra grande perda que a área da saúde teve naquele momento e que tem consequências importantes até hoje. Ela explica que, no final, um artigo das disposições transitórias delegou à lei de diretrizes orçamentárias a definição dos recursos. Doze anos depois, a Emenda Constitucional 29 definiu percentuais mínimos de aplicação de cada ente federado na área da saúde. Mas somente em 2012, a Lei Complementar 141 regulamentou essa emenda e, mesmo assim, sem estabelecer um percentual de aplicação da União vinculado à sua receita, como reivindicava o movimento sanitário. Associando o gasto da União à variação do Produto Interno Bruto, a avaliação mais comum entre os especialistas em financiamento da saúde é que a área saiu perdendo.

A educação, ao contrário, conseguiu estabelecer, já no texto constitucional, os percentuais mínimos a serem aplicados por municípios, estados e União. Mas, de acordo com Romualdo Portela, isso foi mais resultado de um “processo inercial” do que das lutas sociais naquela época, tendo sido apoiado inclusive pelos setores empresariais. Isso porque, três anos antes, uma Emenda Constitucional de autoria do deputado João Calmon, que era do PMDB, já tinha modificado a Constituição anterior, de 1969, estabelecendo essa vinculação.

Trabalho

Também sobre os direitos relativos ao trabalho, a Constituição resultou em algumas derrotas dos movimentos sociais organizados, especialmente o sindical. E as perdas que resultaram da correlação de forças daquele momento incidiram tanto sobre direitos individuais dos trabalhadores como sobre a organização coletiva. Um exemplo do primeiro caso é o artigo 7°, que, entre outras coisas, garante uma “indenização compensatória” aos trabalhadores no caso de “despedida arbitrária ou sem justa causa”. Embora tenha sido inscrito no texto, ele nunca foi regulamentado. “Ficou para ser submetido à lei complementar, e não houve isso. O que o trabalhador recebe hoje é o fundo de garantia, e também os patrões pagam 40% de multa para o INSS. Mas não há uma indenização compensatória da parte da empresa para com o trabalhador”, diz Cleier Marconsin, professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Outra derrota, que se confirmou ao longo desses 25 anos, diz respeito ao salário mínimo. O texto aprovado parece avançado quando define que o valor do salário mínimo deve permitir ao trabalhador “atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo”. Mas, como isso não foi quantificado ou indexado, não se tornou realidade. Segundo Teones França, doutor em História Social e autor do livro ‘Novo sindicalismo no Brasil: histórico de uma desconstrução’, foi prevendo isso que a CUT propôs registrar na Constituição que o salário deveria ser calculado a partir do índice do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Foi derrotada. Para se ter uma ideia da diferença que isso significaria, em setembro de 2013, o salário mínimo necessário, apontado pelo Dieese estava em R$ 2.621,70, enquanto o salário mínimo real está em R$ 678.

Já em relação ao direito de organização, uma das maiores perdas comumente apontada no texto constitucional foi a não instituição do pluralismo sindical que, de acordo com Cleier Marconsin, era uma luta histórica dos trabalhadores. Segundo ela, isso não deveria ser objeto de legislação estatal, “nem para autorizar nem para proibir, porque fere a autonomia”. A segunda perda apontada pela professora nesse campo, que foi a manutenção do imposto sindical, traz problemas da mesma ordem: “Havia luta contra o imposto sindical, porque quando ele foi instituído, em 1943, foi na  perspectiva de cooptação dos trabalhadores, como um elemento fundante da corrupção que existe no movimento sindical. Os dirigentes não precisam fazer trabalho político para ter muitos filiados porque vivem do imposto sindical, que é cobrado de todos os trabalhadores, e vai para o Ministério do Trabalho e Emprego, os sindicatos e as centrais”, detalha Cleier. E resume: “Queríamos acabar com todo o cunho autoritário da CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas] mas, nessa questão do imposto e da unicidade sindical, não conseguimos”.

Outro problema, que é objeto de disputa política até hoje, é a garantia do direito de greve. “Não queríamos em hipótese alguma que o direito de greve tivesse que ser regulamentado: estava garantido na Constituição que teríamos direito de greve e ponto”, conta Cleier. E justifica: “Se regulamentar o direito de greve, você já começa a restringir o direito de greve”. Mas essa os movimentos não levaram. E os desdobramentos vieram logo depois: em 1989, a lei 7783 regulamentou o direito de greve no setor privado, exigindo, por exemplo, que a decisão da greve seja publicada em jornal de grande circulação 72 horas e estabelecendo quórum mínimo em assembleia para a deflagração da greve. “Aquilo que conquistamos como autonomia sindical começa a se perder”, diz Cleier, argumentando que essas são ingerências do Estado sobre a vida sindical. Atualmente, está em tramitação no Senado um projeto de lei para regulamentar o direito de greve dos servidores públicos, e que tem, entre os seus pontos polêmicos, a definição de serviços considerados essenciais que estariam impedidos de paralisar totalmente.

Outro obstáculo ao direito de greve, que se manteve no texto constitucional como herança da ditadura civil-militar, na avaliação de Teones França, é o poder normativo da Justiça do Trabalho. Ele exemplifica com a “emblemática” greve dos petroleiros em 1995, início do governo Fernando Henrique Cardoso. “Foi uma greve que mobilizou a sociedade porque naquele momento se discutia o fim do monopólio estatal do petróleo, que foi aprovado logo a seguir, com o fim da greve. A Justiça do Trabalho considerou a greve abusiva e, a partir daí, o sindicato teria que pagar uma taxa altíssima. Isso quebrou a greve e acontece em várias greves por aí ainda hoje”, conta.

Correlação de forças

O texto final da Constituição foi resultado da correlação de forças de um momento que todos caracterizam como um ‘oásis’ entre a ditadura civil-militar que o antecedeu e a onda neoliberal que chegou logo depois. E o principal motivo apontado costuma ser o fato de se viver, naquela época, um contexto de ascensão dos movimentos sociais. Embora tenha trazido conquistas muito importantes – como a definição de saúde como direito universal e dever do Estado e a garantia da educação como direito de uma forma mais abrangente –, a Carta que hoje comemora 25 anos é resultado também da ação dos grupos conservadores, que se organizaram antes, durante e depois da Constituinte.

Marco da Ros lembra, por exemplo, que durante a campanha, descobriu-se que boa parte dos candidatos a constituintes eram patrocinados pelo complexo médico-industrial. Pelas suas contas, os movimentos sociais ligados a pautas como a defesa da saúde e da educação públicas elegeram cerca de 120 congressistas, menos da metade do total de 400. Ele conta que, como a comissão de sistematização que ficou responsável pelos temas da saúde foi uma das últimas a ser montada, a maioria dos ‘especialistas’, principalmente médicos vinculados com a direita, já estava participando de outras comissões, principalmente a que discutiria a reforma agrária, que era um tema de grande interesse dos grupos conservadores naquele momento. O resultado, segundo ele, é que as forças que compunham o movimento sanitário – muito heterogêneas entre si – conseguiram maioria de um voto na comissão. “Não podia faltar ninguém”, brinca. Como Maria Luiza Jaeger destaca, a correlação de forças nessas comissões específicas não foi pior porque, não por acaso, a direita se concentrou na área econômica, priorizando os esforços de desregular o trabalho na Constituinte. “Nas políticas sociais e de seguridade, ficaram os liberais, a parte do PMDB menos  ‘direitosa’ e o PT”, conta.

Na opinião de Marco da Ros, houve, por parte dos movimentos sociais ligados à saúde, um erro de interpretação sobre o que significava o fim da ditadura. “Pensamos que estávamos caminhando para um país socialista”, diz, completando: “Com o entusiasmo, achamos que tínhamos mais poder do que de fato tínhamos”. Romualdo Portela concorda: “Mesmo em 1988, você tem ascenso dos movimentos sociais, mas tem a Igreja, tem o empresariado da educação com muita força. Nós não éramos maioria. Tínhamos apenas diminuído a distância de ser minoria”. Apesar disso, ele lembra que, em 1993, quando surgiu a proposta de revisar o texto constitucional, os setores e partidos mais à esquerda se uniram para defender a Constituição. “Sabíamos que a correlação de forças tinha piorado muito”, diz. Isso significa que, suficientes ou não, os direitos que se conseguiu garantir na Carta foram e continuam sendo desmontados ao longo desses 25 anos.

Na primeira edição da Poli, demos ênfase ao primeiro grande desmonte, ocorrido nos anos 1990, com a onda neoliberal. Além de lembrar algumas das mudanças legais dessa época, as próximas matérias desta edição tratam do desmonte que se seguiu a partir dos anos 2000, na fase que vem sendo chamada de neodesenvolvimentista, principalmente a partir de Emendas Constitucionais, e das tentativas de mudanças que tramitam agora no Congresso Nacional. Como conclui o professor Romualdo Portela, analisando o momento de preparação da Constituição de 1988 em comparação com o que veio depois: “Nada está tão ruim que não possa piorar”.

Leia mais

Conheça as PECs que ameaçam os direitos sociais em várias áreas
Mudanças na Constituição no período aprofundam perdas de direitos sociais que marcaram a década anterior