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PNDH 3: aborto é visto como questão de saúde pública, mas mulheres continuam criminalizadas

Item do PNDH 3 que apoiavaa criação de PL para descriminalização do aborto foi modificado. Enquanto isso,iniciativas legislativas criam mecanismos para impedir a prática.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 02/06/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

O 3º Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH 3) , em uma das ações estratégicas, dizia: "apoiar a aprovação de projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre os seus corpos". No entanto, o decreto 7.177 , de 12 de maio de 2010, modifica pontos do programa, inclusive este. A redação agora ficou assim: "considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde". O tema da descriminalização foi suprimido do PNDH 3.



A modificação foi criticada por movimentos de mulheres e organizações em defesa dos direitos humanos, muitas delas articuladas na campanha pela integralidade do PNDH 3. Como informou a primeira reportagem desta série, a campanha quer a revogação do decreto 7.177.



A descriminalização do aborto é tema de pelo menos dois projetos de lei que tramitam na Câmara dos Deputados - um deles está em discussão desde 1991. Outros vários projetos falam sobre a permissão do aborto em casos de enfermidade congênita grave apresentada pelo feto - como a anencefalia. Atualmente, a mulher que pratica o aborto, pode sofrer pena de um a três anos de prisão. A prática é assegurada, no entanto, em situações nas quais a mulher corre risco de vida ou está grávida em decorrência de um estupro.



Nesta segunda reportagem da série sobre as modificações no 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, a EPSJV/Fiocruz pretende estimular reflexões sobre a descriminalização do aborto. Neste sentido, a reportagem traz dados de pesquisa recente sobre quantas e quem são as mulheres que abortam no país, além de um panorama sobre como o tema tem sido tratado na esfera legislativa.



Mudança não agrada



Para a doutora em sociologia da religião, Regina Jurkewicz, membro da coordenação da entidade feminista Católicas pelo direito de decidir, o PNDH 3 é fruto de um processo de reuniões que resultaram na Conferência Nacional de Direitos Humanos, e que, portanto, não poderia ser modificado. "Não é algo que saiu da cabeça de alguém, foi feito com a contribuição da sociedade organizada. A nossa primeira reação foi no sentido de parabenizar o ministro Paulo Vannuchi [Secretario especial de Direitos Humanos da Presidência da República] porque o plano, como foi concebido, é ousado, toca em questões de fundo", destaca.



Ela lembra, entretanto, que a pressão da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) contribuiu para a modificação do texto original. "O fato é que houve esse jogo de forças e pressão que fizeram com que o plano fosse alterado. Defendemos a posição integral que apareceu no primeiro texto, porque é muito mais forte você pensar em apoiar projetos em favor da descriminalização do que passar pelo reconhecimento do aborto como questão de saúde pública, que é algo que já vem sendo afirmado pelo presidente Lula e pelo ministro [José Gomes] Temporão", analisa.



Para Regina , já que houve a mudança, é preciso defender que se coloque em prática pelo menos o conteúdo que está no texto atual - a garantia de que o problema seja tratado pelo viés da saúde pública. Ela ressalta que atualmente os serviços de saúde públicos não contemplam sequer os casos previstos em lei para a prática do aborto e que as mulheres pobres, que não têm recursos para pagarem clínicas clandestinas, recorrem aos hospitais públicos para realizarem a curetagem - procedimento cirúrgico para limpeza do útero. "Mais cedo ou mais tarde vai se esbarrar de novo no problema da descriminalização", antecipa.



Se, por um lado, o movimento de mulheres ficou descontente com as mudanças feitas no PNDH 3 original, por outro, parlamentares que são contra a descriminalização do aborto também não ficaram satisfeitos. É o caso do deputado petista Odair Cunha (PT/MG), autor de um projeto de lei que cria o Estatuto do Nascituro. O PL de autoria de Odair foi rejeitado recentemente na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados não por seu conteúdo, mas por haver outro projeto com teor idêntico ao dele, dos deputados Luiz Bassuma (PV/BA) e Miguel Martini (PHS/MG). "[O item sobre a descriminalização do aborto no texto original do PNDH 3] é um equívoco. Fala em direitos humanos, mas e o humano que há no nascituro não deve ser garantido? Tanto que o governo fez uma revisão. Tratar como saúde pública é diferente de descriminalizar o aborto. Nunca achei que a mulher não deve ser atendida no sentido de saúde, mas isso não significa que ela se verá livre de problemas com a justiça. A versão atual aponta no sentido de garantir o direito humano. Mas acho que esse tema não deveria ser tratado no PNDH, então nenhum dos dois textos é adequado", avalia Odair.



O autor do outro projeto, deputado Luiz Bassuma, também critica a proposta. "Como o tema estava, nós achamos um absurdo, como ele está agora, virou alguma coisa em cima do muro. Fica na posição de quem não quer se desgastar e prefere agrupar uma posição dúbia: fala que continua sendo uma questão de saúde pública, mas nem remete para a legalização do aborto e muito menos diz que é contra", afirma.



Em visita à EPSJV/Fiocruz, onde foi o convidado da aula inaugural do ano letivo, o ministro Paulo Vannuchi argumentou à favor da descriminalização do aborto . Ele lembrou, entre outras coisas, que não há comprovações científicas de que a vida começa na concepção.



Pesquisa revela que uma em cada cinco mulheres já abortou



Uma pesquisa inédita sobre a prática de aborto foi divulgada no mês de maio. Coordenada pelos pesquisadores da Universidade de Brasília (Unb) e do Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero - Anis, Débora Diniz e Marcelo Medeiros, a pesquisa revela que uma em cada cinco mulheres já abortou pelo menos alguma vez na vida. O dado mostra ainda que 5,3 milhões de mulheres já abortaram no país - 15% das mulheres de 18 a 39 anos, faixa etária utilizada na pesquisa.  Outros resultados revelam que a mulher que já abortou é casada, tem filhos e professa alguma religião. "Aí já se quebra o primeiro mito: de que a mulher que aborta é uma jovem ou adolescente irresponsável. Na realidade, é uma mulher absolutamente comum, que inclusive, já conhece a maternidade", aponta a professora Débora Diniz.



A pesquisa foi financiada pelo Fundo Nacional de Saúde e realizada em todo o Brasil urbano. As regiões rurais não entraram na amostra pesquisada porque os altos índices de analfabetismo impediam a realização de uma das etapas da pesquisa, que consistia em as mulheres respondessem de próprio punho a um questionário



De acordo com Débora Diniz, a metodologia utilizada diminui a margem de erro. A porcentagem de mulheres que responderam que já fizeram aborto foi elevada e como se tratou de um questionário sigiloso, no qual as mulheres não precisaram se identificar, é muito pouco provável que elas tenham mentido nas respostas.



Os resultados da pesquisa mostram ainda que metade das mulheres que abortaram usaram medicamentos para provocar o aborto. "Mas e a outra metade, aborta como? Aonde elas estão indo para abortar? Metade das mulheres teve que ficar internada para finalizar um aborto, isso define um fenômeno como de saúde pública, imagine a pressão no sistema de  saúde em todos os seus níveis e o impacto na saúde das mulheres", observa a pesquisadora.



Para ela, houve um evidente retrocesso quando o governo federal modificou no PNDH 3 o item que apoiava projetos de lei pela descriminalização do aborto. "Quando você trata de 5 milhões de mulheres presas, é óbvio que está falando do tema da discriminalização. Mas além disso, nós temos metade delas internadas, o que é uma questão de saúde pública. O que se optou foi: ‘não vamos olhar o marco legal, mas vamos olhar para a saúde das mulheres'. As duas coisas andam juntas, mas esse retrocesso foi a negociação a partir da imensa pressão que [o governo] sofreu por se falar do tema do aborto como uma questão de direitos humanos", avalia.





Projetos de Lei mantem criminalização



No mês de maio a comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 478/2007 , que cria o Estatuto do Nascituro. A proposta caracteriza o "nascituro" como um ser humano concebido, mas ainda não nascido, inclusive os concebidos in vitro, "ou através de clonagem ou outro meio científica e eticamente aceito".



O PL estende ao feto direitos da pessoa nascida e o protege contra o que chama de discriminação em razão de sexo, origem, etnia, idade, deficiência física ou mental ou da probabilidade de sobrevida. Diz ainda que é vedado ao estado ou a qualquer pessoa "provocar dano ao nascituro em razão de um ato delituoso cometido por algum de seus genitores".



"O coração e pulmão deste projeto é regulamentar o artigo 5º da Constituição brasileira no que se refere à garantia da vida, uma vez que lá, evidentemente,  não estava definido quando começa a vida. E de 1988 para 2010 houve avanços extraordinários na ciência, entendemos que não pode haver mais dúvida sobre a origem do começo da vida: no momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozóide", diz o deputado Luiz Bassuma, um dos autores da proposta.



Para a pesquisadora Débora Diniz, o estatuto tem teor religioso e fere o princípio do Estado laico, ou seja, que não professa nenhuma religião, mas garante a existência de todas. "O próprio conceito de nascituro é religioso. O desafio neste debate é se essa pergunta tem que ser feita para a democracia ou para as comunidades morais e religiosas. O equívoco dele é de ponto de partida", diz.



O artigo 13 do Estatuto é um dos mais polêmicos à medida que assegura ao feto concebido a partir de uma relação de estupro direitos como à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da mãe, à pensão alimentícia até que complete 18 anos e direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumi-lo. Um parágrafo único complementa o artigo: "Se for identificado o genitor, será ele o responsável pela pensão alimentícia a que se refere o inciso II deste artigo; se não for identificado, ou se for insolvente, a obrigação recairá sobre o Estado". "O estupro é um crime bárbaro e hediondo e continuará sendo e o estuprador deve ser punido rigorosamente por este crime. Mas a mulher que mesmo podendo abortar em caso de estupro - e continuará podendo porque é legal - decide ter o filho, precisa ter asseguradas as condições econômicas para sustentar a criança. Não pode ser a razão econômica o motivo pelo qual mulher decide fazer aborto, já que ela já se decidiu por ter o filho. Então, além de o estuprador responder pelo crime, ele precisa também assumir a responsabilidade pela pensão alimentícia da criança que ele gerou", defende Bassuma.



Regina Jurkewicz explica que o movimento Católicas pelo direito de decidir é totalmente contrário à proposta. "Tem uma série de problemas, prevê coisas que não entendemos como será possível viabilizar, como no caso da pensão que o estuprador deve pagar à criança. Como é que você vai dar o mesmo status no ordenamento legal para um feto e uma pessoa? Não dá para contrapor o direito de um nascituro com o direito da mulher em iguais condições. O Estatuto pretende atropelar totalmente o direito das mulheres", afirma.



Mais criminalização



Um outro Projeto de Lei (7022/10), de autoria do deputado federal Rodovalho (PP/DF), torna obrigatório o registro público da condição de gravidez pelas mulheres. A proposta inclui no Código Civil a obrigatoriedade de o hospital emitir atestado de gravidez quando realizar atendimento a uma gestante. Há, inclusive, previsão de multa quando a medida for descumprida. Na justificativa da proposta, o autor afirma que o objetivo é impedir a "prática impune do aborto".



Regina acredita que tem havido um recrudescimento de posições conservadoras no sentido de não garantir os direitos femininos. "Nós sabemos que existe um fortalecimento das posições fundamentalistas e uma entrada estratégica e bem pensada nos espaços políticos de decisão, como Câmara e Senado. Cada vez mais, há organizações, frentes parlamentares para conseguir aprovar leis neste sentido. Em um Estado democrático, todas as posições devem ser colocadas no cenário, mas o que não está bom é que o Estado se deixe levar por pressões de setores religiosos", aponta.



Regina destaca que se trata de uma estratégia que não se restringe apenas ao Brasil. Débora Diniz concorda: "Eu diria que nós estamos vivendo internacionalmente um momento de fortalecimento da legitimidade religiosa dentro do debate democrático e isso pode levar a momentos muito delicados dentro da democracia porque a religiosidade é uma condição de um ato de fé. Diferente disso, a democracia é uma condição da negociação, das posições morais e políticas dos indivíduos do jogo democrático".



PL que discriminaliza o aborto está parado



Desde 1991, está tramitando na Câmara o Projeto de Lei 1.135 , de autoria do ex-deputado Eduardo Jorge (PT/SP), que propõe suprimir o artigo 124 do Código Penal, que inclui a prática de aborto como crime e estipula pena de detenção de um a três anos para quem o comete. A última movimentação do PL se remonta a 2008, quando esteve prestes a ser arquivado. Na ocasião, o deputado federal José Genoíno (PT/SP) apresentou um recurso para que fosse apreciado no plenário. Apensado ao PL 1.135 tramita uma proposta do próprio Genoíno (PL 176/95) sobre o mesmo assunto. O deputado acredita que a proposta não será apreciada em 2010. "Eu sei que em ano de ano de eleição é difícil o debate dessa questão, dificilmente entrará na pauta este ano, mas acho que o assunto deve ser mantido na pauta. Essa matéria não poderia ser arquivada, já que a pesquisa recente mostrou que uma em cada cinco mulheres interrompe a gravidez e o aborto é a segunda causa de internação materna. Ou nós damos um tratamento a essa questão como problema de saúde pública e tiramos desse manto religioso moral e ético ou então vamos conviver com essa realidade de agravamento da saúde", denuncia.



Genoíno afirma que o Brasil tem uma das legislações mais retrógradas do mundo. No PL 176/95, o deputado quer garantir que a mulher possa abortar até os 90 dias de gestação, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com acompanhamento médico, psicológico e de assistência social.



Enfrentar o tabu



Regina Jurkewicz explica que defender a descriminalização do aborto não significa que se concorde com a prática. "Ninguém pode ser a favor do aborto, não tem muito sentido, mas ser a favor de que seja legalizado significa possivelmente favorecer a diminuição do número de abortos, porque você cria melhores condições", aposta.



A pesquisadora Débora Diniz acrescenta que a partir da pesquisa é possível ter uma dimensão real do problema do aborto no Brasil, já que havia uma ausência de dados confiáveis sobre o tema." Precisamos olhar para esses dados com a racionalidade com a qual a saúde pública precisa ser enfrentada. Que é um tema religioso importante, isso não se discute, mas é principalmente uma questão de direitos humanos e saúde pública", resume.