Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

PNSR em construção

Construído de forma participativa, o PNSR considera as especificidades para o saneamento básico que atenda as populações do campo, da floresta e águas
Ana Paula Evangelista - EPSJV/Fiocruz | 26/09/2018 17h09 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Está aberto para consulta pública o Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR), que visa orientar a implementação da política que deve garantir o direito à água, ao esgotamento sanitário e aos manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais. Construído a partir de um amplo diálogo que envolveu instituições científicas, entidades do setor de saneamento, saúde e assistência técnica rural e entidades representativas de movimentos sociais, o PNSR propõe um modelo de política que respeite as especificidades dos povos do campo, da floresta e das águas. A iniciativa tem como referência a Política Federal de Saneamento Básico, instituída pela Lei 11.445 de 2007, e pretende complementar o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) aprovado em 2013, que já determinava a elaboração de três programas para a implementação da Política: Saneamento Básico Integrado, Saneamento Estruturante e Saneamento Rural – atual PNSR, que prevê a ampliação expressiva  do acesso em um horizonte de 20 anos.

De acordo com o engenheiro sanitarista e professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Alexandre Pessoa, uma novidade importante do PNSR foi o esforço de se distanciar de um conceito histórico de saneamento restrito apenas à abordagem tecnicista da engenharia e com o viés urbano. Segundo ele, o Programa traz inovações na perspectiva do direito humano, do enfrentamento da pobreza e da promoção da saúde. “Foi possível articular as ações de saneamento com as ações de agroecologia e saúde a partir dos debates e discussões, por exemplo. O PNSR é estruturado numa triangulação: tecnologia, gestão e educação. Então, por meio das suas diretrizes, são materializados os componentes de abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e manejo de águas pluviais, mas de uma forma intersetorial, considerando a proteção dos bens naturais, dos mananciais, a sua relação com a produção agrícola solidária e sustentável, com a agricultura familiar, e a sua relação com a saúde enquanto estratégia do programa. Porque o saneamento na área rural tem uma especificidade muito mais determinante nas escalas familiares e comunitárias”, explica.

Outro diferencial, segundo o pesquisador, é que a proposta garante que a população atendida - camponeses, quilombolas, indígenas e comunidades ribeirinhas, por exemplo - possa participar diretamente da construção e da efetivação do Programa, que prevê o aprimoramento e fomento das tecnologias sociais. “Um dos seus pressupostos é de que a comunidade constrói o seu saneamento, o manejo de suas águas e resíduos no dia a dia e que essa construção precisa ser incorporada pela política de forma que ela possa potencializá-la. Isso aponta a necessidade de modelos que permitam uma gestão mais participativa e ações estruturantes de educação em saneamento e saúde ambiental”, aponta Pessoa. “O exemplo mais emblemático de tecnologia social é a cisterna domiciliar de águas de chuva, que foi pensada por um pedreiro nordestino que já havia enfrentado grandes períodos de estresse hídrico. A tecnologia ganhou escala nacional como política pública e é um dos grandes representantes dessa modalidade de participação social no manejo das águas e saneamento”, ilustra.

O pesquisador, que participou de todas as etapas de construção do Programa, também ressalta que o grande desafio está na sustentabilidade dessas tecnologias nos territórios, que em muitas localidades, principalmente nas soluções individuais, acaba sendo de manejo e manutenção do morador. “Para ações domicilares a educação popular em saúde e aquelas soluções coletivas haverá necessidade de investimentos em educação permanente e processos de capacitação de técnicos para que se possa dar a devida assistência técnica em saneamento que, por sua vez, também tem que interagir com a extensão rural, por exemplo”, diz.

Rural ou ruralidade?

O termo ‘rural’ também ganha outro significado no documento. No PNSR, ruralidade corresponde a um espaço ampliado, que transcende a relação de divisas geopolíticas de campo e cidade. Segundo Pessoa, a proposta valoriza o território e considera as raízes e tradições do campo, da floresta e das águas, enfocando populações que convivem entre si e disputam seus territórios com a mineração, com o agronegócio e com os grandes empreendimentos, além de sofrerem as afetações causadas pelos impactos da urbanização. “Porque aí depende do critério de ruralidade. Não se pode trabalhar com uma definição vertical. Porque, quando parte dos governos, essa classificação tem relação com impostos, já que o imposto urbano é mais caro do que o rural. Isso traz um viés equivocado na compreensão do que venha a ser rural, uma definição que, na verdade, tem muito a ver com os meios de produção e reprodução da vida, com o caráter de dispersão da população e com as condições de vizinhança. Esses processos interferem”, esclarece Pessoa.

Essas divergências ficaram explícitas em uma pesquisa realizada em 2015 com apoio do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que calculou que 36% da população brasileira é rural, diferentemente dos cerca de 16% apontados pelo último censo (2010) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O percentual maior considera a aplicação de um conceito de rural defendido por muitos pesquisadores, como Alexandre Pessoa, que leva em consideração o estilo de vida das pessoas que vivem nessas áreas. De acordo com o levantamento, como só existe o conceito de urbano na legislação, a ruralidade acaba sendo definida por exclusão.

Implementar e fortalecer

Para além da definição do termo, de acordo com Pessoa, a incorporação do PNSR precisa fortalecer o Plansab e garantir a sua implementação. “[O Programa Nacional de Saneamento Rural] não só responde a uma demanda histórica de atendimento às populações rurais, mas consolida e ratifica a necessidade de efetivar o Plansab. A política só se materializa quando ela é efetivada. Essa é uma estratégia finalística”, ressalta.

O pesquisador ainda lembra que muitos municípios não têm planos de saneamento ou quando possuem, acabam não englobando a população rural e que, nesses casos, o PNSR pode alavancar as  mudanças necessárias. De acordo com a pesquisa ‘Perfil dos Municípios Brasileiros - Aspectos Gerais da Política de Saneamento Básico (Munic)’, do IBGE, em 2017 mais da metade dos municípios brasileiros não contam com uma política de saneamento básico. São mais de três mil cidades sem nenhum tipo de planejamento para tratamento de água e esgoto, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. Verminoses, diarreias e dengue – todas relacionadas às condições de saneamento - foram as doenças mais reportadas pelas cidades. “Na medida em que você tem um programa de saneamento rural, ele orienta inclusive a elaboração dos planos municipais de saneamento básico da área rural, então isso cria uma sintonia importante. Nesses documentos que compreendem a construção do PNSR, passamos a falar em direito ao saneamento”.

Construção coletiva

As diretrizes e estratégias que compõem o PNSR vêm sendo discutidas desde 2014, quando a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) deu início ao processo de planejamento da formulação do Programa em diálogo com o Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social da Secretaria de gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (DAGEP/SGEP), da Coordenação-Geral de Vigilância em Saúde Ambiental, da Secretaria de Vigilância em Saúde (CGVAM/SVS) do mesmo Ministério, e da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNSA) do Ministério das Cidades. Em 2015, a Funasa firmou parceria com o Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que coordenou a execução do projeto.

O PNSR tem apoio de outras instituições de pesquisa, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), organizações não governamentais, associações e movimentos sociais.  Para Denise Oliveira e Silva, representante da Fiocruz no Seminário  Nacional do PNSR, a Fundação tem um papel importante nesse processo: abordar o saneamento como binômio indissociável da saúde. Ela também assumiu, durante o evento, o compromisso da Fiocruz em substanciar a construção do PNSR e fazer os “enfrentamentos” necessários. “A Fiocruz reconhece a importância de participar dessas discussões, pois temos um aparato fundamental do que acreditamos do que seja a ciência cidadã, que é aquela que faz bem a sociedade e está intrinsecamente ligada à saúde e ao saneamento. Além de considerarmos o território como elemento de solidariedade que servirá como base as diretrizes do PNSR”, enfatizou Denise.

Esse Seminário Nacional foi realizado em Brasília, em 18 de agosto deste ano e apresentou os resultados e propostas da versão preliminar do Documento Central do PNSR e lançou a consulta pública para receber contribuições ao documento. Em 2016, aconteceu a Oficina Nacional, que discutiu as diretrizes propostas para o PNSR e as estratégias para sua operacionalização, preparando os documentos para serem qualificados nas oficinas regionais que aconteceram de abril a julho de 2017 nas cinco regiões do Brasil, além de diversas oficinas temáticas realizadas com especialistas.

A última etapa do projeto compreende a consulta pública, que está disponível na página oficial do programa e receberá contribuições até 19 de outubro. O site disponibiliza os nove capítulos do documento e um formulário que pode ser preenchido por instituições ou pessoa física com emendas aditivas, supressivas ou corretivas. “Essa etapa é fundamental para a estruturação da política, e também para sua efetivação em escala nacional, porque a implementação do Programa Nacional de Saneamento Rural depende não somente dos seus investimentos, mas também das suas diretrizes e dos seus referenciais teóricos, dos seus pressupostos. E, certamente, as contribuições da consulta pública virão a fortalecer o PNSR”, finaliza Pessoa.

Encerrada a consulta, todas as contribuições serão analisadas e consolidadas pela equipe responsável (UFMG/Funasa) para a elaboração do documento final do Programa Nacional do Saneamento Rural.