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Prestes a perder a validade, MP do Médicos pelo Brasil é aprovada

Contrariando entidades médicas, redação final da medida provisória permite que profissionais cubanos participem do novo programa. Passaram outros pontos polêmicos que, segundo especialistas, trarão prejuízos ao SUS
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 29/11/2019 13h53 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

OpasA toque de caixa, o Senado aprovou na última quarta-feira (27) a medida provisória 890/19, que cria o Médicos pelo Brasil. No dia anterior, o programa já havia recebido o aval da Câmara dos Deputados, com 391 votos a favor e apenas seis contrários. O novo programa é uma alternativa do governo para substituir o Mais Médicos, criado em 2013 com o objetivo de ampliar a oferta de serviços médicos em locais afastados ou com população de alta vulnerabilidade. Cinco anos depois, cerca de 8,5 mil médicos deixaram o país após Cuba romper o convênio com o governo brasileiro. O fim da parceria foi justificada, na época, por declarações do presidente Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018. Então candidato, ele chegou a defender a expulsão dos profissionais cubanos que não tivessem o Revalida – o exame para revalidação de diplomas médicos obtidos no exterior.

O Revalida, inclusive, foi um dos pontos mais polêmicos que travaram até o último minuto a aprovação do Médicos pelo Brasil. No fim, as propostas de alteração no exame acabaram sendo retirados da MP e aprovados em um Projeto de Lei (PL) separado.

A partir de agora, o exame será aplicado de seis em seis meses não só por universidades públicas, mas também por privadas, desde que tenham notas 4 e 5 o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, o Sinaes. Diferentemente de antes, agora a primeira etapa da prova, que é composta por questões objetivas teóricas, poderá ser feita de forma digital, em datas e locais predeterminados. A segunda etapa é a prova prática. Caso o médico não seja aprovado, na próxima vez pode pular direto para essa fase.

O MEC também divulgou os valores da aplicação do Revalida, que deram um salto significativo. A primeira etapa aumentou de R$ 150 para R$ 330, já a segunda foi de R$ 450 para R$ 3,3 mil.

Também há mudanças na confecção das provas que, até então eram feitas pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Agora, elas serão realizadas por meio de um convênio com a Universidade Federal de São Paulo, Universidade Federal do Ceará e o hospital Sírio-Libanês, em conjunto com o National Board Medical Examiners, órgão dos Estados Unidos que aplica exames a estudantes de medicina. O Conselho Federal de Medicina (CFM) acompanhará o processo.

Para Ligia Bahia, professora do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Iesc/UFRJ), as tensões pré-aprovação giraram em torno de um desacordo entre governo e entidades médicas. Segundo ela, as principais demandas dessas entidades, baseadas no pressuposto da necessidade de controlar o número de vagas, qualidade da formação e garantia de uma inserção estável no mercado de trabalho, não foram atendidas. “As entidades propuseram barreiras quase instransponíveis para a revalidação de diplomas de Medicina diante do que consideram regras permissivas tanto ao trabalho dos médicos cubanos que permaneceram no Brasil, quanto à autorização para que faculdades privadas realizem a avaliação da correspondência dos diplomas internacionais”, ressalta.

Segundo o sanitarista Vinícius Ximenes, médico de família e comunidade e integrante da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP), a revalidação de diplomas por faculdadess privadas gerou os maiores questionamentos ao longo da tramitação da medida provisória. “Antes somente universidades públicas podiam participar do Revalida. De que forma o MEC vai conseguir controlar e garantir a lisura de todo esse processo é um importante questionamento”, aponta.

Além do Revalida, o sanitarista afirma ainda que a categoria médica era contrária à mudança feita pela comissão especial que analisou a medida provisária. O texto apresentado pelo senador Confúcio Moura (MDB-RO), relator da MP, e aprovado na comissão introduziu a previsão de que os cubanos fossem absorvidos pelo Médicos pelo Brasil. A alteração beneficiará cerca de 1,7 mil profissionais, que poderão atuar no novo programa por até dois anos sem a necessidade de revalidação dos diplomas. Após o fim do prazo, esses profissionais precisarão ser aprovados no Revalida.

Adaps: outro motivo de descontentamento

Além disso, ressalta Ximenes, uma das justificativas do governo para a criação de um novo programa em substituição ao Mais Médicos era a estruturação de uma carreira de Estado para os médicos brasileiros, conforme sempre propuseram as entidades médicas, em especial o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira, a AMB. “Contudo o que o governo federal apresentou na MP foi uma proposta de contratação de profissionais por terceirização. Isso seria feito por  um serviço social autônomo  a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária – ou Adaps. Ou seja, essa demanda histórica das entidades médicas não foi contemplada”, afirma. Durante a votação na Câmara, um destaque que pedia alteração do trecho da Adaps para que a gestão do Médicos pelo Brasil ficasse sob a responsabilidade do próprio Ministério da Saúde foi rejeitado por 303 votos a 103.

Ximenes considera a Adaps um grande "cavalo de Tróia". "A agência poderá proporcionar uma onda de mercantilização da atenção primária à saúde brasileira, com a contratação de planos e seguradoras privadas para prestar assistência diretamente à população em várias cidades e localidades de menor vulnerabilidade social”, ressalta. Apesar de a medida provisória não autorizar a Adaps a contratar pessoas jurídicas no âmbito do Médicos pelo Brasil, o sanitarista argumenta que a nova agência tem atribuições que extrapolam o âmbito do programa, e que pode proporcionar uma janela de oportunidade para a contratação do setor privado. “Poderá ser uma verdadeira onda de uberização do trabalho médico no Brasil”, anuncia.

Segundo o Ministério da Saúde, o programa Médicos pelo Brasil abrirá 18 mil vagas, das quais 13 mil em cidades onde, segundo a Pasta, há os maiores vazios assistenciais. Ainda de acordo com o Ministério, o primeiro edital deve ser lançado em janeiro e os primeiros médicos chegarão aos locais de trabalho em abril.  O salário inicial será de R$ 12,6 mil.

O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), que participou das discussões da MP, comemorou a aprovação. “A medida é boa, com certeza. Ela vai resgatar a questão do provimento médico, o que nós queremos. Nós precisamos de médicos nas unidades de saúde, principalmente nas áreas de maior vulnerabilidade, nas periferias das grandes cidades, onde nós não conseguimos fixar esses profissionais”, afirma o secretário executivo do Conasems, Mauro Junqueira. Ele adianta ainda que os municípios já estão pensando na prorrogação dos contratos vigentes no programa Mais Médicos: “Como a implantação da Adaps não é imediata, iremos prorrogar os contratos do programa que ainda está vigente e depois lançar os editais”.

Passada a aprovação, Ximenes reafirma a necessidade de uma articulação ampla entre organizações sindicais e movimentos sociais em defesa do SUS para manter a pressão sobre, o que ele considera, “este novo ente estranho à estrutura do SUS”. “Creio que tanto no âmbito jurídico, político e sindical vamos ter que nos manter vigilantes contra as distorções ao SUS que poderão vir a partir da Adaps”, conclui.

Na avaliação de Ligia Bahia, ficou patente a continuidade dos esforços para promover acesso a médicos em cidades brasileiras localizadas em regiões afastadas das zonas densamente urbanizadas e para populações indígenas e quilombolas. “Parece também ter se afirmado a tendência de privatização do ensino médico e enfraquecimento da regulação da formação pelas entidades médicas. Houve um deslocamento das decisões sobre a formação e alocação de médicos das entidades médicas para o Congresso Nacional”, aponta. E conclui: “No médio e longo prazos, possivelmente vai ficar claro o dilema de termos um país com um SUS que deveria ser público, enquanto a formação de profissionais médicos tende a se tornar um privilégio do mercado”.