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Quem vai pagar a conta?

Políticas de isenção fiscal incentivam o mercado em detrimento do social e oneram trabalhador
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 17/01/2013 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Ao perguntar se você prefere uma geladeira ou uma saúde de qualidade, a resposta parece ser óbvia. Mas há quem prefira ficar com a primeira opção. E é essa a escolha que está norteando as políticas de incentivo fiscal do Estado brasileiro. Ao abrir mão dos impostos sobre produto industrializado (IPI) e do imposto de renda, que financiam 49% dos fundos dos estados e dos municípios, e dos tributos como o Programa de Integração Social (PIS) e Contribuição para o financiamento da seguridade social (Cofins) em determinados setores da economia, tem-se optado pelo incentivo do mercado em detrimento das políticas sociais. E isso tem deixado em risco, principalmente, a garantia da Seguridade Social.

O artigo 194 da Constituição apresenta a Seguridade Social como "um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social". Logo em seguida, no artigo 195, é apontada forma como ela é financiada, que é por toda a sociedade de forma direta e indireta, além das contribuições por parte do empregador por meio da folha de salários, receita ou faturamento e lucro; dos trabalhadores e segurados da previdência social, concursos de prognósticos (loteria, por exemplo) e impostação de bens e serviços.

Em 2009, mais da metade da queda na arrecadação foi diretamente sobre tributos que financiavam a Seguridade Social, em uma escala de quase R$ 30 bilhões. De acordo com o professor da Universidade de Brasília (UNB), Evilásio Salvador, essas renúncias tributárias podem significar, no ano de 2012, 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB). "Há uma implicação direta e, somada à desoneração da contribuição de folha de pagamento, o orçamento da Seguridade passa a ter maiores dificuldades de financiar e manter o seu equilíbrio, necessitando para tanto de recursos do orçamento fiscal ou, como o governo deve apresentar nos próximos períodos, uma nova reforma da previdência social para equilibrar as contas", explica. Segundo dados da Associação Nacional dos Fiscais de Contribuições Previdenciárias (Anfip), em sete anos, as renúncias das receitas da Cofins, por exemplo, saltaram de R$ 5,4 bilhões, em 2005, para R$ 34,6 bilhões, em 2011, o equivalente à metade de todo a despesa em Saúde, que foi de R$ 72,3 bilhões.

Seguridade Social superavitária: até quando?

E é a parte do empregador, que, como mostra a Constituição, deveria ajudar a financiar a Seguridade Social, que vem sendo desonerada ao longo do tempo. A auditora fiscal e coordenadora da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fatorelli, explica que é no mínimo contraditório o discurso do governo em relação à Seguridade Social e a desoneração das formas de financiá-la. "Com as crescentes isenções, principalmente relativas à contribuição patronal sobre a folha de salários, o orçamento da Seguridade Social sofrerá impacto negativo. É incompreensível a postura contraditória do governo que, ao mesmo tempo em que reclama da falta de recursos para a Seguridade Social e alardeia um falacioso déficit, planeja uma desoneração generalizada para os empregadores, como anunciou o ministro da Fazenda, Guido Mantega", explica. O ministro, em entrevista à Folha de São Paulo no início de dezembro de 2012, informou que a desoneração da folha de pagamento iria continuar no próximo ano. "Outros setores serão incluídos porque o custo da mão de obra é fundamental para dar competitividade às empresas brasileiras", informou Mantega.

Maria Lúcia Fatorelli explica que, ao contrário do que se costuma pensar, o orçamento da Seguridade Social é superavitário. Exemplo disso é que em 2011 o superávit chegou a R$ 70 bilhões, mas parte desses recursos foram desviados para o Sistema da Dívida Pública. "Quando devidamente computadas todas essas fontes de financiamento, verificamos que a Seguridade Social tem sido altamente superavitária nos últimos anos, ou seja, as receitas arrecadadas superaram o conjunto de despesas em R$ 22 bilhões em 2009; R$ 40 bilhões em 2008; R$ 60,9 bilhões em 2007; R$ 50,8 bilhões em 2006, R$ 62 bilhões em 2005, conforme divulgado pela Anfip. Na realidade, não existe o alardea-do déficit da previdência. Ele resulta de uma conta distorcida que considera apenas as contribuições sobre a folha de salários, como se esta fosse a única fonte de financiamento da Previdência, ignorando as demais fontes previstas na Constituição", informa.

No artigo ‘Seguridade social bilionária ', de Vilson Antonio Romero, da Anfip, é mostrado que, em 2011, foram arrecadados R$ 528,19 bilhões decorrentes das contribuições sociais. Neste total, estão incluídas as oriundas da contribuição previdenciária (R$ 245,89 bilhões), da Cofins (R$ 159,89 bilhões) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL - R$ 57,84 bilhões). De acordo com o artigo, a Seguridade ainda contou com a arrecadação de mais de R$ 42 bilhões do Programa de Integração Social (PIS) e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), cujos recursos subsidiam o seguro desemprego e o abono salarial dos trabalhadores. Também se contabilizaram, nesta conta, os R$ 3,4 bilhões oriundos dos concursos de prognósticos (loterias federais oficiais).

De acordo com Fatorelli, o ataque à seguridade social não é de agora e outras ações, como a desvinculação das receitas da União (DRU) e as privatizações de setores estratégicos como parte das jazidas do pré-sal, da previdência dos servidores públicos - regulamentando a Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal (Funpresp) - , dos hospitais universitários, entre outros, fazem parte deste desmonte. "A principal alteração que vem sendo feita ao longo dos anos é a modificação de um modelo de solidariedade - no qual a garantia de emprego e boa remuneração aos jovens garantiria sempre boa remuneração aos aposentados - dando lugar a um modelo submetido às regras do mercado e sem qualquer segurança futura, como temos visto atualmente na Europa e Estados Unidos", aponta.

Vale a pena a troca?

Recentemente aprovada, a lei 12.715 , que faz parte do Plano Brasil Maior de estímulo à economia, concede isenção tributária a produtos, estabelece regimes fiscais diferenciados e desonera a folha de pagamentos de alguns setores como forma de incentivo para a geração de emprego. Mas esta é uma estratégia discutível.

Evilásio explica que não há transparência nem informações consistentes sobre a relação entre as renúncias tributárias e a geração de emprego. E que o único relatório oficial, denominado ‘Demonstrativos de Gastos Tributários', que acompanha a Lei Orçamentária Anual (LOA), aponta para uma troca não muito vantajosa. "Ao conceder tal benefício, não há condicionalidade para implicações de desenvolvimento socioeconômico. O governo não condiciona, por exemplo, a redução de IPI da indústria automobilística ao aumento de empregos nem na própria indústria nem como efeito indireto disso. A mim parece que esse é mais um mito que se cria', diz.

De acordo com Fatorelli, as medidas provisórias que estão surgindo nos últimos anos estabelecem isenções com estimativas, mas não preveem o acompanhamento sistemático destas perdas, tampouco da Seguridade Social. "Não há acompanhamento efetivo sobre a suposta geração de empregos decorrente das isenções da contribuição patronal para o INSS. Tal benesse fiscal seria mero paliativo, pois o setor produtivo nacional está afetado pela equivocada política macroeconômica - falta de controle de capitais, câmbio, elevadíssimos juros - que continuará afetando negativamente o setor e, consequentemente, a geração de empregos e a justa remuneração. Enquanto o incentivo ao setor produtivo é mero paliativo, a perda para os trabalhadores é garantida", argumenta.

Sara Granemann, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ) relembra que as isenções atualmente têm-se relacionado também ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e à Olimpíada. "A isenção de impostos não corresponde ao número de empregos gerados. As automotivas e montadoras receberam isenções e continuaram a demitir e fechar fábricas. É muito desigual. Este mesmo fenômeno acontecerá com estas megaconstruções e estes megaeventos", analisa.

A conta fica para quem?

Evilásio explica no artigo ‘O Financiamento da Seguridade Social no Brasil no Período 1999 a 2004: Quem paga a Conta ?' que a carga tributária do financiamento da Seguridade Social revela uma característica regressiva, pois é arrecadada, em grande parte, por tributos indiretos, que oneram proporcionalmente mais os cidadãos de menor renda. "Essa regressividade evidencia que, em grande medida, a seguridade social é financiada indiretamente por seus próprios beneficiários e diretamente pelos contribuintes da previdência social. A tributação sobre a renda e patrimônio, apesar de serem bases de incidência de maior progressividade, são fontes de financiamento com baixa ou nenhuma expressão no custeio da Seguridade Social", explica. E acrescenta, em entrevista à Poli: "Quem vai pagar a conta é o trabalhador de maneira geral, tanto o assalariado como o informal, ou seja, as pessoas mais pobres, porque além de a carga tributária ser muito regressiva, quando essas pessoas dependem das políticas sociais, dos benefícios do próprio Estado, do orçamento, do fundo público, elas não encontram, em detrimento de outros setores que o Estado sempre está apoiando. O Estado é sempre muito ágil para atender o grande capital e sempre ausente para atender o cidadão em geral".

De 2007 a 2011, de acordo com a Anfip, as contribuições previdenciárias cresceram de 5,05% do PIB para 5,94%. No mesmo período, a soma das contribuições sociais incidentes sobre o faturamento das empresas (Cofins e PIS) diminuiu de 5,20% para 4,87%, também em relação ao PIB, por conta das inúmeras isenções fiscais. Para Sara Granemann, os trabalhadores são os que mais sofrem nesta disputa pelo pagamento da Seguridade Social. Ela explica que mesmo com salários congelados e com ameaças de demissões e desemprego, os trabalhadores nunca são isentos do recolhimento das contribuições. "Tem uma absoluta desigualdade no trato que o Estado dá aos que recolhem para a formação do fundo da Seguridade Social. À medida que só o capital recebe isenções, fica mais evidente que quem financia e forma o fundo público é a força de trabalho, de uma forma ou de outra, porque a contribuição do capital é sobre o lucro, portanto, sobre a exploração do trabalho. E, ainda sim, os que exploram podem ficar com o seus lucros preservados porque recebem isenções", analisa Sara.

A conta hoje fecha da seguinte forma: a contribuição sobre a folha de salários é de 20% sobre todas as remunerações pagas. Na Cofins, que incide sobre o faturamento, o percentual é de 2% sobre a receita bruta, já na contribuição social sobre o lucro líquido (CSSL), a taxa é de 8% para as empresas e de 18% para as instituições financeiras. Estas todas são flexíveis e variáveis, por conta das políticas de isenções com ajustes que vão desde a variação de acordo com o faturamento do ano até a diminuição do percentual para o investimento no setor. Enquanto isso, sem possibilidade de flexibilização, a contribuição do empregado é de 8% para aqueles que recebem até três salários mínimos; 9% para quem ganha de três a cinco salários mínimos e 11% para os que recebem partir de cinco.

Fatorelli aponta como saída repensar todo o modelo tributário. "Quanto menor a renda, proporcionalmente mais pesada é a carga tributária. Isto se dá em grande parte pela incidência da Cofins e PIS sobre o faturamento de todos os itens de consumo, além dos tributos sobre comercialização de bens e serviços (ICMS) e sobre industrialização (IPI), entre outros. Precisamos de fato repensar o país, mas com as lentes do interesse coletivo, e não aprofundar cada vez mais os privilégios do setor financeiro privado e grande empresarial transnacional, pois esse equivocado modelo está tornando nosso belo e rico país cada vez mais injusto e violento", defende.

Saúde mais prejudicada

Dos três pilares que fazem parte da Seguridade Social, que são a previdência social, assistência social e saúde pública, Evilásio afirma que a saúde é a que mais tem sofrido. "Ela cresceu proporcionalmente menos nos últimos dez anos do que a política de previdência e de assistência. Já esta última cresceu três vezes mais em relação às outras duas", explica. E informa ainda: "Limitam-se os gastos sociais às políticas de cunho focalizado como transferência de renda, como o Bolsa Família, em desfavor de políticas sociais mais universais, de avanço de serviços sociais mais amplos, como os do âmbito da saúde pública e universal. Em paralelo a isso, atende-se a interesses do setor financeiro e do grande capital industrial do Brasil, que vêm sendo os grandes beneficiários desta política".

Em busca da desoneração em 2012

Em setembro, a lei 12.715, que faz parte do Plano Brasil Maior, prevê incentivos fiscais para diversos ramos da indústria e prestação de serviços como confecções, calçados e couros têxteis, móveis, plásticos, material elétrico, autopeças, ônibus, naval e aéreo. A desoneração estimada totalizou R$ 7,2 bilhões ao ano. Com esta lei, foram criados ainda programas especiais de incentivo, como o Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica (Pronon), Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência (Pronas/PCD), Regime Especial de Incentivo a Computadores para Uso Educacional (Reicomp), Regime Especial de Tributação do Programa Nacional de Banda Larga para Implantação de Redes de Telecomunicações (REPNBL-Redes), Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto), entre outros, que estabelecem regimes fiscais diferenciados para setores específicos e, em alguns casos, até a desoneração total de alguns tributos.

Em 2011, outra MP, de nº 540 e transformada na Lei n.º 12.546, de 2011 , instituiu o Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras (Reintegra), para transferir às empresas exportadoras de determinados segmentos valores ou créditos tributários com o objetivo de compensar custos tributários federais residuais existentes nas suas cadeias de produção. Estes créditos serão lançados com a isenção do PIS e da Cofins.

A Medida Provisória 584/12 desonerou empresas e pessoas físicas envolvidas com a organização e realização dos Jogos Olímpicos de 2016 e dos Jogos Paraolímpicos de 2016 em impostos como PIS, Cofins e IPI. A estimativa é uma renúncia de receita de R$ 3,8 bilhões até 2017. Já a MP 575/12 propõe que empresas de parcerias público-privadas (PPPs) fiquem isentas de pagarem tributos como PIS/Pasep, Cofins e CSLL. Setores como o de saneamento, com o projeto de lei 2991/11 , e do setor farmacêutico, com o PL 3570/12 , ambos tramitando na Câmara dos Deputados, também buscam o mesmo benefício.