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Quem vai pagar o pato?

A partir do ‘programa’ de um eventual governo do PMDB, que retira direitos dos trabalhadores, analistas discutem os interesses econômicos por trás do processo de impeachment. Papel de conciliação desempenhado pelo PT é apontado como um dos problemas
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 11/05/2016 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Ilustração de Caco XavierQuando você estiver lendo esta reportagem, provavelmente a presidente Dilma Rousseff, reeleita com 54 milhões de votos cerca de um ano e meio atrás, estará afastada, pelo menos provisoriamente, da cadeira de chefe de Estado. Como a conjuntura tem mudado rápido, tudo pode ter acontecido mas, no momento em que este texto é escrito, o mais provável é que, no seu lugar, esteja sentado o peemedebista Michel Temer, um vice-presidente que aceitou com gosto – e ativismo – o desafio de conduzir os rumos do país nos próximos anos. A cartada decisiva de um jogo de ameaças, negociações e chantagens que já durava meses aconteceu num domingo, 17 abril de 2016, quando mais de dois terços da Câmara dos Deputados aprovou a admissibilidade do processo de impeachment da presidente.

Não foi em nome de Deus. Tampouco foi pelos filhos, netos, esposas e maridos, como anunciou no microfone a maioria dos parlamentares que votaram ‘sim’. Segundo analistas ouvidos pela Poli, o que se esconde por trás da movimentação do impeachment é, principalmente, uma urgente pauta econômica elaborada, encomendada e assinada pelo grande empresariado organizado em torno de entidades de classe, tendo à frente a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). O recado, dizem, é claro: é preciso ter no Executivo alguém capaz de garantir que o “pato” da crise econômica seja “pago” pelos trabalhadores. “Daí a ideia de substituir esse governo por um Michel Temer ‘puro sangue’, ou seja, um governo PMDB-PSDB completamente alinhado com essa agenda que eu chamaria de política de espoliação social”, explica Ruy Braga, sociólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP).

Essa “agenda” ainda está sofrendo ajustes para se adequar às necessidades específicas de todos os setores do grande empresariado. Mas, no que tem de estrutural e urgente, ela está explicada e detalhada no documento chamado ‘Uma ponte para o futuro’, programa antecipado de governo do PMDB.

Programa de um governo "puro sangue"

Essa não é a única referência para o programa que está sendo construído para um eventual governo Temer. Desde que o impeachment foi admitido na Câmara, os grandes jornais brasileiros têm se dedicado a apurar e noticiar pontos programáticos, antecipando decisões econômicas. Ao mesmo tempo, entidades empresariais apressam-se em entregar ao atual vice-presidente sua pauta específica de reivindicações. De todo modo, é nesse documento, assinado pela Fundação Ulysses Guimarães, do PMDB, e lançado ainda em outubro de 2015, que estão sistematizadas as principais premissas e propostas estruturais de um eventual governo pós-impeachment.

Na curta apresentação, o documento diz buscar a “união dos brasileiros de boa vontade” e afirma que as iniciativas ali apresentadas são “quase um consenso” no país, sem, no entanto, nomear os segmentos sociais e correntes do pensamento econômico que justificariam o uso do “quase”. Já na contextualização, em que descreve o estado da arte no Brasil de hoje, é possível entender o ponto de partida de tudo que virá adiante: a nada consensual ideia de que o principal problema a ser enfrentado é o crescimento da dívida pública que, por sua vez, seria resultado de um excessivo gasto por parte do Estado. Dessa premissa sai a conclusão que embasa a maior parte das mudanças propostas pelo programa: é preciso cortar gastos.

O programa do PMDB é claro: a única saída para a crise brasileira são reformas estruturais que requerem mudança na legislação e terão um custo alto para a “população”, nomeada de forma genérica, como se todos os segmentos sociais ganhassem e perdessem igualmente com as mesmas políticas. E matérias publicadas em grandes jornais brasileiros informam que, se nada de imprevisível acontecer, um governo Temer já teria na Câmara o número de votos suficientes para aprovar propostas que alterem a Constituição. “O ajuste virá agora”, afirma Rosa Marques, economista da PUC-SP, diferenciando as medidas propostas pelo programa do PMDB daquelas que foram tomadas pelo governo Dilma. “Não quero diminuir o problema dos cortes que aconteceram, mas é preciso alertar para o que vem agora. O que vivemos foi contingenciamento dos gastos em função da queda da arrecadação. Se a arrecadação sobe, você pode descontingenciar. Mas agora eles vão mudar os dispositivos legais que vinculam os recursos a determinadas áreas, principalmente a social. É como a Grécia, que votou no parlamento a diminuição dos salários”, explica.

De fato, uma das mudanças mais estruturais propostas pelo PMDB é acabar com as vinculações constitucionais para áreas como saúde e educação. Hoje, a Constituição estabelece que o governo federal precisa aplicar pelo menos 18% da Receita Corrente Líquisa em educação. Para a saúde, o mínimo é o orçamento do ano anterior mais a variação do PIB – o que é considerado já uma derrota por profissionais e militantes da área. Os governos estaduais e municipais precisam aplicar pelo menos 25% na educação. Na saúde, o mínimo são 15% para os municípios e 12% para os estados. O pulo do gato que a Constituição estabeleceu, e que o programa do PMDB agora propõe mudar, é que, na maioria dos casos, esses percentuais não estão atrelados ao desempenho da economia ou ao orçamento disponível. Contraditoriamente, o ‘Ponte para o futuro’ reconhece que o aumento de despesas públicas nessas áreas foi “uma escolha política correta” que “melhorou a nossa sociedade” para, no momento seguinte, criticar o fato de esse “crescimento automático das despesas” ter tornado “muito difícil a administração do orçamento” porque “tornou impossíveis ações de ajuste, quando necessário”. “Era essa mesmo a intenção”, responde Rosa, explicando o mecanismo constitucional: “Isso é uma garantia de manutenção de níveis mínimos de recursos para áreas que se consideram prioritárias. Não é porque a economia diminuiu o ritmo de crescimento que você vai diminuir os recursos de saúde e educação porque esses recursos são pautados pela necessidade da população. Você não pode ter recursos que oscilam porque é preciso ter continuidade nas políticas”.

Na mesma linha, o documento propõe que o aumento de benefícios da previdência e assistência social não acompanhe o reajuste do salário mínimo, como acontece hoje. O texto é categórico: “É indispensável que se elimine a indexação de qualquer benefício do valor do salário mínimo. (...) Os benefícios previdenciários dependem das finanças públicas e não devem ter ganhos reais atrelados ao crescimento do PIB”. Em artigo publicado na Agência Carta Maior, em novembro de 2015, Rosa Marques explica os prejuízos de uma medida como essa. “A introdução desse indexador aos benefícios, em 1988, teve como fonte inspiradora a necessidade de as políticas públicas atuarem positivamente sobre os baixos rendimentos a que estavam submetidos os aposentados e os trabalhadores de mais baixa renda. Levando-se isso em conta, qualquer proposta que pretende pensar o Brasil do futuro, no caminho da superação da crise atual, não pode estar fundada na diminuição da renda da base da pirâmide de rendimentos brasileiros”, critica.

O programa do PMDB quer realizar ainda uma nova Reforma da Previdência. O documento dedica mais espaço à defesa da proposta do que propriamente às mudanças que ela traria, mas fica clara a intenção de estabelecer uma idade mínima para aposentadoria. O pressuposto é de que existe um rombo crescente na previdência. Esse dado, no entanto, é questionado por vários especialistas, que denunciam o erro de cálculo que faz chegar a esse déficit.

Por fim, no que diz respeito à diminuição dos gastos públicos, o programa de um eventual governo Temer defende que a continuidade ou não dos programas governamentais – Bolsa Família, Mais Médicos, PAC e todos os outros – passe a ser uma decisão do Congresso, tomada a cada ano, em função da situação orçamentária e a partir de uma análise de custo-benefício que seria feita por um comitê “independente”, embora não esclareça em relação a quê.

Até aqui, falamos sobre formas de reduzir despesas e gastos no Estado. Mas o que economistas menos ‘ortodoxos’ têm defendido já desde o início do ajuste fiscal do governo Dilma é que o equilíbrio das contas precisa passar também pelo aumento da receita (leia mais na edição 42 da Poli). O documento do PMDB, no entanto, não aponta nenhuma iniciativa nessa direção. Defendendo que “hoje o aumento sem limite da carga tributária não é mais uma possibilidade”, propõe a “simplificação” da área tributária. Chama atenção a ausência de reflexões e propostas encaminhadas por representantes de outras parcelas da “população” que não o empresariado. Em nenhum momento o documento se refere, por exemplo, ao caráter regressivo dos impostos no Brasil, que, por tributarem mais o trabalho e o consumo do que o lucro e a renda, fazem com que os trabalhadores e pobres paguem proporcionalmente mais impostos do que os empresários e ricos. Por consequência, o programa do PMDB sequer menciona propostas que circulam na sociedade e no Congresso há mais de 30 anos, como é o caso da taxação de grandes fortunas, que atingiria os maiores proprietários e que, segundo cálculo de alguns economistas, poderia render até R$ 100 bilhões por ano aos cofres públicos – para efeito de comparação, no ano passado, em função do ajuste fiscal, foram cortados R$ 70 bilhões.

Do outro lado da balança, a aposta do PMDB é garantir o crescimento econômico a partir de um modelo em que o papel do Estado seja “distribuir incentivos corretos para a iniciativa privada”. A defesa de processos de privatização aparece em um dos tópicos da agenda do documento com nomes mais amenos como “transferência de ativos”, “concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura” e “parcerias para complementar a oferta de serviços públicos”. Para garantir que a iniciativa privada seja capaz de promover o crescimento econômico necessário, o programa propõe medidas que visam facilitar a atuação das empresas. Uma delas é flexibilizar as relações trabalhistas de modo que o negociado entre patrão e empregado prevaleça sobre o que hoje estabelece a legislação. “O programa é explícito em falar da quebra da CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas], o que vem sendo feito pelas beiradas desde a década de 1990 e que eles agora defendem que tem que ser feito como reforma constitucional. Isso significa que os acordos coletivos podem flexibilizar direitos como hora extra, percentuais de insalubridade e por aí vai”, critica Marcelo Badaró, historiador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Outra forma de incentivo se dará pelo esforço de tornar menos “complexos e demorados” os processos de licenciamento ambiental, garantindo “ampla segurança jurídica” para os investimentos privados. “O programa do PMDB é uma listagem genérica de propostas de interesse do grande capital, e é bastante explícito em apontar como vai colocar a conta da crise sobre a classe trabalhadora”, resume Badaró.

Caracterizadas sem meias palavras como “medidas duras” e “sacrifícios” a serem feitos, essas iniciativas aparecem como inevitáveis em função da urgência de cortar gastos para reequilibrar as contas. Parece simples matemática, por mais dificuldades que possa gerar. Mas falta um elemento: incluir no debate sobre as saídas possíveis a prioridade – dada como inquestionável – de gerar superávit primário para pagar os juros da dívida pública. Como a Poli explicou, de forma detalhada, na sua edição 42, que tratou do ajuste fiscal, muitos economistas e especialistas da área reivindicam uma auditoria da dívida, já que não se tem nenhuma segurança sobre sua origem e sobre os credores. Mais do que isso, questionam o cálculo do que é considerado superávit. Isso porque, na prática, o orçamento federal hoje só começa a ser distribuído entre as áreas depois que é retirado o montante referente aos juros da dívida, que corresponderam, em 2014, a 45% do total do bolo de recursos. Curiosamente, esse mecanismo – que pode ser modificado por decisão política, sem alteração na Constituição – não é sequer lembrado no trecho em que, para defender o fim de despesas obrigatórias com saúde e educação, o documento reclama que “a maior parte do orçamento chega ao Congresso para ser discutido e votado com a maior parte dos recursos já previamente comprometidos ou contratados, seja por meio de vinculações constitucionais, seja por indexação obrigatória de valores”.

Procuradas pela Poli para comentar sobre o impeachment e suas pautas de reivindicações, a Fiesp e a Confederação Nacional da Indústria (CNI) não tiveram disponibilidade para dar entrevista.

Do outro lado do muro

Ilustração de Caco XavierA análise crítica do programa de Temer, no entanto, não indica que do outro lado da polarização política atual a vida do trabalhador esteja fácil. Embora não tenha dúvidas sobre os riscos maiores que estão postos num eventual governo Temer pós-impeachment, Marcelo Badaró lembra que existem princípios e até medidas em comum entre o ‘Uma ponte para o futuro’ e a resposta que a equipe econômica de Dilma vinha tentando dar à crise, como a defesa de uma nova Reforma da Previdência. Daí, segundo ele, a necessidade de se superar o “maniqueísmo” que apresenta como únicas opções neste momento a defesa do governo ou do impeachment.

Para isso, dizem vários entrevistados pela Poli, é preciso uma análise profunda sobre o papel que o PT desempenhou por quase 13 anos à frente do governo federal e as razões pelas quais ele agora está sendo retirado à força. O professor Eurelino Coelho, da Universidade Federal de Feira de Santana, na Bahia, que pesquisou a trajetória do PT na sua tese de doutorado, gosta de dizer que, no governo, o PT funcionou como a “ala esquerda do partido do capital”, responsável por assegurar um ambiente de estabilidade que preservasse aquilo que, segundo ele, é o fundamental para a elite econômica: a propriedade e o lucro. Com isso, diz, conduziram durante todos esses anos uma estratégia que ele chama de “conciliação de classes”. A economista Rosa Marques, que tem muitas críticas a esses governos mas não considera que eles tenham retirado direitos dos trabalhadores, prefere caracterizá-los como “extremamente contraditórios”. “Tentaram servir às classes trabalhadoras de mais baixa renda sem quebrar os laços com a classe dominante”, define.

Três iniciativas recentes, tomadas já em meio à crise política, ilustram bem. No dia 17 de março deste ano, a presidente Dilma Rousseff sancionou, embora com vetos, a Lei Antiterrorismo, de autoria do próprio Executivo, que vem sendo denunciada como um instrumento que facilitará a criminalização das lutas e dos movimentos sociais. Poucos dias depois, começou a tramitar na Câmara um Projeto de Lei Complementar (PLP 257/16) também de autoria do Executivo, que, em nome do ajuste fiscal, propõe medidas como congelamento de salários, proibição de concursos e até programas de demissão voluntária para servidores públicos. Por fim, vale lembrar que, contrariando uma pauta histórica de instituições, movimentos e economistas de esquerda, em janeiro deste ano, a presidente vetou uma proposta de auditoria da dívida pública aprovada no Congresso.

E é aqui que o cenário fica complexo. Isso porque, segundo essas mesmas análises, o grande trunfo do PT para se credenciar como “gestor do capital”, como define Eurelino Coelho, foi promover uma política de “ganha-ganha”. Exemplos não faltam. Principalmente os governos Lula, mas também as gestões Dilma, são reconhecidos pela criação e manutenção de programas sociais voltados para as parcelas menos favorecidas da população. Foi também no governo Lula que se deu uma forte valorização do salário mínimo, com a criação de uma fórmula de reajuste que passou a considerar não só a inflação do período, mas também o desempenho do PIB. “Isso significa o seguinte: de um lado, o salário não perde poder aquisitivo; de outro, os trabalhadores da base da pirâmide passam a ser um pouco beneficiados com a evolução da economia. É uma maneira de redistribuir renda”, explica Rosa Marques.

O fato é que, se a proposta de mudança constitucional vocalizada pelo PMDB é explícita em relação à parcela da população que deve ser sacrificada, da parte dos governos do PT essas políticas ficaram num meio de caminho. A tal “conciliação de classe” estaria no fato de que, nos governos Lula e Dilma, para cada ganho dos trabalhadores, houve ganhos ainda maiores para setores do grande empresariado. Um exemplo? Em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz no ano passado, a professora Sara Graneman, da Escola de Serviço Social da UFRJ, caracterizou as políticas sociais dos governos petistas como um processo de “monetarização e financeirização”. Defendendo que o capital financeiro também lucrou muito com esses programas de inclusão, ela explica: “Ao transformar a política social num direito monetarizado, esse dinheiro volta para o capital. O Bolsa Família não é um conjunto de serviços que o pobre no Brasil pode utilizar: não é escola, não é alimentação na escola, não é o hospital de boa qualidade. É um dinheiro que ele recebe via banco e que, individualmente, é uma miséria, mas aquilo que entra no banco é, na totalidade, um montante muito considerável”.

Da mesma forma, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Teto (MTST) denunciou, mais de uma vez, que, embora importante como enfrentamento do déficit habitacional, o programa Minha Casa, Minha Vida, do modo como foi desenvolvido, tinha como objetivo principal aumentar os lucros da construção civil. Mesmo a valorização do salário mínimo, que poderia pesar no caixa das empresas, teve seu impacto amenizado por políticas de isenção fiscal que, entre outras coisas, desoneraram a folha de pagamentos de diversos segmentos do empresariado, o que, na prática, significa que o Estado arcou com parte desse custo. Eurelino resume a estratégia: “A partir do governo Lula houve um consenso entre os blocos da classe dominante de que o processo de inclusão social, de atendimento das reivindicações históricas dos trabalhadores, sobretudo moradia e renda mínima, poderia conviver com uma distribuição fabulosa de lucros e dividendos entre as diferentes frações do capital. Isso era um jogo em que todos ganhavam”.

Até que a crise nos separe...

Tudo ia muito bem, até que, com a chegada da crise econômica internacional, a relação entre governo e empresariado foi se desgastando a ponto de chegar um momento em que o amor, simplesmente, acabou. Pelo menos para um dos lados. Comentando o discurso do ex-presidente Lula na avenida Paulista durante manifestação contra o impeachment, Alvaro Bianchi, professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp, ressalta como o esforço do PT diante da crise tem sido para reverter esse divórcio. “Quando Juan Domingos Perón foi preso na Argentina, em 1945, uma greve geral foi convocada. Mas no Brasil, até o momento, nem o governo nem a Central Única dos Trabalhadores [CUT] ousaram falar em uma greve contra o golpe. A mobilização do governo é simplesmente retórica. Infelizmente, nem os discursos estão à altura dos acontecimentos. Na manifestação do dia 18 de março centenas de milhares de pessoas esperavam Luiz Inácio Lula da Silva declarar guerra contra os golpistas. E o que ele fez foi prometer paz e amor aos empresários e ao PMDB”, critica.

Mas, afinal, o que motivou essa separação? “A palavra-chave é crise: num ciclo recessivo como o atual, não é tão fácil manter equilibrados os pratos da balança. Como o excedente tende a se estreitar, aumenta a competição entre as frações da classe dominante. E, por outro lado, todas elas estão de acordo de que é preciso tirar dos de baixo”, explica Eurelino. Em outras palavras, a partir do momento em que o jogo do ganha-ganha acabou, foi preciso definir claramente quem ganha e quem perde. “O problema é que o PT não pode fazer isso com tranquilidade. Para o PT não é simples romper com suas bases históricas porque o risco de haver uma rebelião no interior da CUT, por exemplo, é real. E os mais lúcidos sabem que no momento em que o PT deixar desaparecer a capacidade de controlar setores importantes da classe trabalhadora, o que ele tem de mais valioso para oferecer ao capital desaparece. E ele se torna um partido descartável”, analisa Eurelino, dando a pista de como o impeachment passa a ser considerado como uma alternativa pela elite econômica. Ruy Braga lembra, inclusive, que durante um bom período, a própria Fiesp, que hoje lidera a campanha pela saída da presidente, participou desse “pacto”. “Ela pula fora porque percebe que o governo se mostra titubeante e pouco capaz em aprofundar ainda mais essa agenda de espoliação que, segundo a Fiesp, seria necessária para restabelecer as bases da acumulação capitalista no país”, explica. É nesse momento que o que Eurelino chama de “ala direita do partido do capital”, representada por partidos como PMDB e PSDB, sem vínculo com trabalhadores e movimentos sociais, se apresenta como alternativa para resolver o ‘problema’ do empresariado brasileiro.

Em cena, os trabalhadores

Ao contrário do que talvez possa parecer, os trabalhadores não estavam assistindo passivos a  toda essa movimentação. Segundo Ruy Braga, desde 2008 tem início no país um “ciclo grevista” que se intensifica em 2010 e 2011 e só faz crescer. A partir, principalmente, de 2013, ganham corpo também movimentos e lutas urbanas, principalmente pelo direito à moradia e ao transporte público. Embora com menos espaço de crítica do que o empresariado no interior do governo, essa retomada de mobilização social indicava, na avaliação de Ruy Braga, que havia “muita insatisfação na base”. Ele mostra em números: de acordo com dados do Sistema de Acompanhamento de Greves do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (SAG-Dieese), o ano de 2013 abrigou 2050 greves, um recorde na história do país. Mais do que um aumento quantitativo, esse é um processo qualitativamente diferente. Um exemplo é que, segundo o pesquisador da USP, proporcionalmente houve mais greves no setor privado (54%) do que no setor público. “Eu diria que esse ciclo começa propriamente naqueles setores mais tradicionais, sindicalmente mais organizados de trabalhadores que recebem melhor, em especial no setor público ou mesmo no setor privado. Essa primeira onda de mobilização acaba evoluindo para um segundo momento em que os trabalhadores do setor de serviços, menos organizados, mais precarizados, passam a se mobilizar também”, resume.

O resultado, segundo ele, é que os sindicatos que até então tinham circulado muito bem no tal pacto de conciliação gerido pelo PT começaram a ter que responder à pressão das suas bases. “O sindicalismo lulista reage em duas frentes: por um lado, há uma certa tentativa de controle sobre o movimento grevista; por outro, uma tentativa de pressão sobre o governo para que as medidas impopulares sejam revertidas”. Para complicar ainda mais, esse “caldo de cultura efervescente” que vinha da base social atravessou o caminho do empresariado no meio da crise econômica, no exato momento em que ele decidia pressionar o governo por medidas que protegessem, a qualquer custo, as suas taxas de lucro. Acendeu a luz de alerta. E foi a partir daí que, pela primeira vez, o Brasil ouviu falar em “pedaladas fiscais”.

Diferentes tipos de insatisfação

Seria um equívoco, no entanto, caracterizar o impeachment como um ‘plano’ executado a portas fechadas pelo grande empresariado. Afinal, por mais que a Fiesp tenha servido filé mignon aos manifestantes pró-impeachment na avenida Paulista, e se saiba que organizações como o Movimento Vem Pra Rua e Movimento Brasil Livre, que convocaram boa parte dessas manifestações, sejam financiados por empresários, essa não pode ser considerada a razão que levou multidões às ruas contra o governo Dilma.

Pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha mostrou que, em dois grandes atos pró-impeachment realizados na cidade de São Paulo, em 13 e 18 de março deste ano, a maioria dos manifestantes (entre 77% e 78%) tinha curso superior e metade deles (46% e 50%, respectivamente) tinham renda mensal entre cinco e 20 salários mínimos. A média de idade foi de 45 anos, sendo o maior percentual (40%) de pessoas com 51 anos ou mais. “O que esses números indicam é que os mais pobres e os mais jovens não foram para as ruas”, resume Alvaro Bianchi. Ele ressalta, no entanto, que isso não quer dizer que entre essas camadas também não houvesse insatisfação. “A rejeição ao governo de Dilma Rousseff está distribuída de maneira relativamente homogênea entre todas as classes de renda e grupos geracionais. Mas as classes sociais vivem de maneira diversificada essa rejeição. Entre os estratos superiores, está a percepção de que tanto seus ganhos como a distância que mantinham dos pobres diminuíram nos últimos anos. Sentem-se em uma situação de risco e imaginam que contribuem muito para o país com seus impostos, mas recebem muito pouco em troca. Entre os estratos mais pobres, a inquietação tem uma origem diversa, ela se deve à frustração perante as expectativas não realizadas. Consideram que hoje estão melhor do que antes, mas sabem que não irão muito longe. Trabalham, estudam, endividaram-se, fizeram sacrifícios inauditos, mas ainda assim não conseguem passar da barreira dos três salários mínimos”, analisa Bianchi, reforçando que, embora não se manifeste nas ruas com bandeiras verde e amarela, essa “insatisfação dos subalternos” se fez presente nas greves e no recente movimento de ocupação de escolas por estudantes.

Nas ruas, o destaque nas manifestações pelo impeachment ficou por conta de uma significativa parcela da classe média brasileira – entendida como o conjunto dos trabalhadores com salários mais altos e dos pequenos proprietários, na definição de Marcelo Badaró. E aqui, mais uma vez, as determinações são principalmente econômicas, embora remetam a ‘perdas’ anteriores ao momento de crise. Na avaliação de Ruy Braga, a classe média brasileira vinha se sentindo afetada com as políticas que promoveram uma certa desconcentração de renda que beneficiou as camadas mais pobres. “Os serviços subalternos que gravitam em torno da classe média ficaram mais caros: porteiro, manicure, cabeleireiro e, principalmente, o emprego doméstico. Tendo em vista o mercado de trabalho aquecido, as estratégias de aumento do salário mínimo acima da inflação, que impactaram diretamente o trabalho doméstico, acabaram fazendo com que o custo de vida ficasse mais caro [para a classe média]. Aliado a isso, você tem um problema estrutural, que é o fato de o mercado de trabalho brasileiro ter produzido muito poucos empregos de classe média nos últimos 13 anos”, explica, informando que, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho, 97,5% dos postos gerados em 2014 pagavam até 1,5 salários mínimos. Com a chegada da crise, diz, a situação piora também para os pequenos proprietários, que sofrem com a diminuição do consumo. Além das razões estritamente econômicas, o pesquisador da USP destaca ainda outro fator de descontentamento entre esses setores. “O governo Lula e depois o governo Dilma adotaram o que seria uma espécie de política de cotas sociais e raciais nas universidades, o que fez com que as universidades públicas se tornassem mais plebeias, aumentando ainda mais a concorrência com os filhos da classe média tradicional”, diz, lembrando que, para piorar, esses setores são diretamente influenciados por uma “mídia ultrarreacionária e conservadora” que atua como monopólio no Brasil.

Briga de cachorro grande

Outro elemento que precisa ser considerado no enredo que levou ao pedido de impeachment da presidente Dilma são as brigas internas aos diferentes segmentos do grande empresariado. “Nunca foi fácil ninguém representar o capital no Brasil. Não é por acaso que o país vai de golpe em golpe, de ditadura em ditadura, de instabilidade em instabilidade institucional. Do modo como o capitalismo se desenvolve aqui, não há relações tranquilas, sem tensão entre as diferentes frações da classe dominante. Negociar acordo entre o agronegócio, finanças, indústria, serviços, monopólios comerciais e mais o capital internacional não é uma operação fácil. Todos defendem a propriedade, todos defendem o lucro e, a partir daí, começam as divergências”, explica Eurelino Coelho.

Sobre os setores e as razões que inauguraram a insatisfação com o governo, no entanto, existe pouco consenso – ou pouca clareza – neste momento. A economista Rosa Marques defende que a motivação econômica que desdobrou no processo de impeachment não vem de todo o empresariado brasileiro mas, especificamente, de uma fração da classe dominante vinculada ao capital internacional. Ela entende que, depois de dois governos Lula em que todo mundo saiu ganhando, o primeiro governo Dilma teria acentuado uma política desenvolvimentista que desagradou o capital financeiro. O principal sintoma dessa inflexão na política econômica, segundo ela, foi a “redução brutal” da taxa de juros, que caiu de 12,5% para 7,25% entre agosto de 2011 e abril de 2013. Outra medida, complementar, foi o fato de o governo ter aumentado a participação dos bancos públicos – Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal – no mercado interno. “A isso se segue o fim do boom das commodities e o governo continua com uma política de tentar incentivar o mercado interno, fragiliza evidentemente as contas públicas, e a crise está instalada”, descreve Rosa, completando: “Nesse momento, a crise econômica e a crise política viram uma coisa só”.

Situando a análise já no contexto da crise econômica, o sociólogo Carlos Eduardo Martins, professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ, denuncia o movimento exatamente contrário, de priorização do capital financeiro por parte do governo. Para Carlos Eduardo, o governo perdeu uma grande oportunidade de investir no caminho de “algum desenvolvimentismo” que expandisse o mercado interno e o consumo popular, “exigindo” que o capital financeiro pagasse os custos da crise. “Mas o governo Dilma seguiu o caminho contrário e preferiu cortar parte de suas políticas sociais”, lamenta. Com a chegada de Joaquim Levy, então diretor-superintendente do Bradesco Asset Management, ao Ministério da Fazenda, no final de 2014, inaugurou-se um período de cortes no orçamento e outras medidas que deram ao primeiro ano do segundo governo Dilma a marca do ajuste fiscal. “O resultado é a perda de apoio popular e uma oportunidade extraordinária para a ofensiva da classe dominante no Brasil sobre o Estado”, conclui.

A historiadora Virgínia Fontes, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da UFF, discorda que a briga interna à classe dominante seja entre a burguesia industrial e financeira ou entre uma burguesia brasileira e outra imperialista. “Eu acho idealizadas as explicações que supõem que, de alguma maneira, existe uma espécie de boa burguesia brasileira, com fundamento nacional, que apoiou o governo Dilma e que agora está dessolidarizada porque o setor financeiro atrapalha a atuação dessa boa burguesia ou dessa burguesia brasileira que poderia ainda, quem sabe, ter um papel nacional. Eu acho essa uma leitura inteligente mas algo extemporânea”, observa.

Na sua avaliação, a disputa, ainda pouco visível, se dá entre o que Virgínia chama de uma burguesia do “milhão” e uma burguesia do “bilhão”. Nessa interpretação, o Brasil tem hoje uma parcela da burguesia que, apesar de “forte, sólida, organizada”, além de associada ao capital internacional, é milionária. E ela estaria brigando com uma “burguesia do bilhão”, composta pelas empresas que se tornaram as ‘multibrasileiras’, entre elas as grandes empreiteiras envolvidas na Lava Jato. “Tudo indica que a tensão burguesa hoje é de escala: massa de burguesia de menor escala, num momento de crise, briga com as suas congêneres maiores. E não briga contra a corrupção, mas porque quer um pedaço para ela”, diz, destacando que, não por acaso, a “burguesia do milhão” fica centralizada em São Paulo. Ela provoca: “A Fiesp saltou da posição de suporte e participação no governo Dilma para a defesa do impeachment e da renúncia. É a Fiesp ainda representante de todo o conjunto da burguesia brasileira? Não sei”.

Embora reconheça a disputa pelos recursos e pela direção do Estado como origem dessa divergência, Virgínia ressalta também que, neste momento, a briga vai além dos interesses puramente econômicos. “Eles estão com medo de ser presos”, afirma, fazendo referência às investigações da operação Lava Jato que já condenou Marcelo Odebrecht, dono de uma das maiores empreiteiras do país, a 19 anos de cadeia.

Por que resistir?

A combinação de todas essas motivações e disputas torna o cenário atual confuso. Muitos partidos, entidades, movimentos sociais, artistas e intelectuais que se colocaram criticamente ou mesmo como oposição ao governo Dilma agora estão nas ruas denunciando uma tentativa de golpe. Por quê? “Se a articulação reacionária que está em curso para derrubar esse governo for vitoriosa, o passo seguinte obviamente será atacar ainda mais duramente as lutas sociais dos trabalhadores”, responde Badaró. Alvaro Bianchi completa: “Somos obrigados a admitir que os trabalhadores estarão em uma situação pior se uma frente PMDB-PSDB assumir o comando do Executivo. Não quero despertar nenhuma ilusão em um governo acovardado e subserviente às grandes corporações. É isso que o governo Dilma
é. Mas acho mais fácil derrotar o ajuste se Dilma for presidente do que derrotá-lo se o presidente for Temer”.

Eurelino não apenas endossa as críticas como defende que é preciso “denunciar a política de colaboração de classes levada a cabo pelo PT como responsável pela pavimentação do caminho que a direita hoje está correndo”. Ele, no entanto, não tem dúvida de que é preciso ir às ruas neste momento, sem “hesitar nem por um segundo” em caracterizar como “golpista” o que está em curso. O argumento principal – não só dele – é que as ameaças não se limitam a um governo ou a um partido. Evidência disso é o fato de o próprio programa do PMDB propor a retirada de direitos que remetem a um período muito anterior à gestão do PT, mais especificamente a 1988, quando foi promulgada a Constituição Cidadã. A rotina de encontros e negociações feitas por Michel Temer também não esconde os compromissos assumidos. Para ficar apenas em um exemplo, matéria do jornal O Globo de 30 de abril informa que, em reunião com representantes da Frente do Agronegócio, o vice-presidente prometeu rever todas as desapropriações de terras para a reforma agrária e demarcações de terras indígenas autorizadas recentemente pela presidente Dilma.

Tantas medidas impopulares e retirada de direitos vão, na avaliação de Ruy Braga, gerar uma forte reação. “Esse golpe branco que está sendo dado contra o governo Dilma Rousseff muito provavelmente vai jogar o país no caos político nos próximos 20 anos. Não haverá paz”, aposta, alertando que essa resistência, por sua vez, deve gerar um endurecimento ainda maior das condições civis. “Eles vão caçar as liberdades de protestos até o momento em que o país se tornar abertamente uma ditadura. Uma ditadura que pode até não assumir a forma militar, porque isso é muito pouco conveniente internacionalmente, mas seguramente assumirá a forma do Estado de exceção, tendo civis no governo, controlando por meio da violência física massas cada vez mais descontentes”, conclui.  

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