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Recuperar o tempo perdido

Programa Escola em Tempo Integral busca melhorar índices do atual Plano Nacional de Educação
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 05/12/2023 08h28 - Atualizado em 12/04/2024 14h28

A meta 6 do atual Plano Nacional de Educação (PNE, Lei nº 13.005/2014) deveria ser cumprida até 2024: ofertar educação em tempo integral em 50% das escolas públicas para atender 25% dos alunos da educação básica. A realidade demonstrada no 4º Ciclo de Monitoramento das Metas PNE, de 2022, era outra: o percentual de matrículas em tempo integral na rede pública caiu de 17,6% para 15,1% entre 2014 e 2021, e as escolas de tempo integral eram apenas 22,4% da rede. Para recuperar o tempo – e a meta – perdido, o Ministério da Educação (MEC) lançou, pela Lei 14.640/2023, o Programa Escola em Tempo Integral.

O ensino em tempo integral melhora o desempenho escolar entre os mais pobres, a permanência de crianças e adolescentes na escola e a taxa de conclusão de escolaridade entre grupos urbanos, segundo o estudo Impactos econômicos de médio e longo prazo de uma educação integral, de Ricardo Paes de Barros, Laura Muller Machado e Laura Almeida Ramos de Abreu, cujos resultados são usados pelo MEC. O trabalho também sugere efeitos econômicos e retorno social da educação em tempo integral de seis vezes o seu custo, além do benefício para cada jovem que teve acesso à educação integral de 2,7 vezes o seu custo.

Para a coordenadora de Educação Integral e Tempo Integral da Secretaria de Educação Básica (SEB) do MEC, Raquel Franzim, outros impactos positivos ainda não estão consolidados na literatura. “Temos uma grande quantidade de famílias monoparentais no Brasil, especialmente na primeira infância. São mulheres que, na maioria das vezes, são líderes de suas famílias, e a política educacional pode contribuir para o fortalecimento dos direitos das mães trabalhadoras. A escola em tempo integral é fundamental também nessa perspectiva de promover a emancipação e a renda delas”, ressalta Franzim.

Construção da política e participação social

Inexiste uma Política Nacional com diretrizes para essa modalidade de ensino. Para lançar o programa, o MEC organizou um ciclo de seminários nas cinco regiões brasileiras que resultaria em documento nacional norteador dessa política. O desafio, porém, também é local: levantamento do ministério divulgado em 23 de outubro atestou que apenas 19% das redes que pactuaram metas com o Programa possuem política própria de educação em tempo integral – levando a Pasta flexibilizar tal exigência como critério de participação.

A construção dessas políticas é importante pois não basta ampliar matrículas em tempo integral, há necessidade de uma perspectiva educacional elaborada pelo gestor em diálogo com sua comunidade. “Não é só ter mais tempo na escola, é ter mais tempo para determinado desenvolvimento e forma de se aprender, a da educação integral.

Isso está previsto na Constituição Federal, depois na LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica. A elaboração da política compete ao Executivo, seja ele municipal ou estadual”, explica Franzim, que completa: “A melhoria das políticas educacionais é atrelada e respaldada legalmente pela participação social, como a participação de conselhos. Há municípios com conselhos de educação que formularam política para o ensino em tempo integral e outros não. O país precisa avançar no sentido da participação social na elaboração das políticas”.

O presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Alessio Costa Lima, afirma ter mobilizado os gestores municipais e acredita que a criação de um documento nacional, norteador da política, ajudará a mudar o cenário. “Mobilizamos nossas 26 seccionais para a necessidade de o município compartilhar com o MEC sua política de educação em tempo integral, com parecer submetido ao Conselho Municipal de Educação, mas inexiste política nacional a orientar estados e municípios. Soa contraditório esperar que os municípios já tenham uma política elaborada”, argumenta.

Já para o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Vitor de Angelo, tal inexistência não impacta nas políticas das redes estaduais, responsáveis principalmente pelo Ensino Médio. “Não existe obrigatoriedade de que as redes sigam o mesmo modelo e nem seria acertado pensar em um só modelo para o Brasil”, opina. Os presidentes do Consed e da Undime concordam, entretanto, que a inexistência de um Sistema Nacional de Educação , como a Saúde possui o SUS, dificulta a articulação entre projetos político-pedagógicos de ensino em tempo integral.

Que currículo?

Outra discussão necessária é o que oferecer aos estudantes nesse horário estendido. “Nesse momento, o programa se esforçou na viabilização financeira da oferta de jornada ampliada. Mas, claro, o resultado em Educação virá pelo trabalho de natureza pedagógica a ser feito nessa jornada ampliada”, reconhece o presidente do Consed.

Para o presidente da Undime, o ensino de tempo integral precisa solucionar defasagens crônicas de conteúdo e, ao mesmo tempo, promover o desenvolvimento psíquico e afetivo. “As avaliações externas indicam que estudantes do quinto, nono e terceiro ano do Ensino Médio terminam suas séries com até quatro anos de defasagem no conhecimento. Nossa escola de tempo parcial não está sendo capaz de fazer com que o aluno aprenda o que deveria”, avalia. E propõe: “O modelo integral precisa fortalecer o domínio da aprendizagem cognitiva sem preencher toda a carga horária, pois isso adoeceria alunos e professores. O currículo precisa contemplar outras dimensões e habilidades, artísticas e culturais, que estimulem a criatividade, como indicam os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, além de ofertar práticas esportivas que favoreçam a interação e o trabalho em equipe”.

Considerar realidades locais foi um dos aspectos apontados no Ciclo de Seminários do MEC. “[Essa foi] uma fala muito forte na região Norte, que tem estados cujos estudantes se deslocam para acessar a escola por meio de rios. No Amazonas, a atual estiagem impede os estudantes de acessarem a escola. O ano letivo foi interrompido, inclusive. O currículo da Educação em tempo integral precisa dialogar com os desafios socioambientais dessa região”, defende a coordenadora do MEC, para quem, embora todos estudantes devam aprender o tema da emergência climática, por tratar-se de questão planetária, pedagogicamente este problema se materializa na realidade local. “Precisamos ter um currículo comprometido com as características socioambientais dos territórios. No Amazonas há centenas de povos indígenas. Que currículo é esse?”, questiona, ressaltando que, nos seminários, o princípio do multiculturalismo foi mencionado, especialmente no Norte e Centro-Oeste.

Vagas aquém da necessidade

A Confederação Nacional de Municípios (CNM) divulgou nota em agosto afirmando que os mesmos possuem 107,1 mil escolas de educação básica, das quais 55,8 mil (52,1%) já oferecem matrículas em tempo integral a mais de 4,2 milhões de alunos. As creches são o segmento com mais matrículas em jornada integral, 1,4 milhão de alunos (56,7%). Já sobre o Ensino Médio, segundo o Censo escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 20,4% dos estudantes da rede pública estavam matriculados em tempo integral em 2022. Na rede privada, o número era de 9,1%.

O presidente da Undime considera o número de vagas financiadas pelo Programa insuficientes. “A alguns municípios foram ofertadas cerca de 20 novas matrículas para tempo integral, o que dificulta o investimento local em adaptações de infraestrutura, como ofertar banheiros que permitam às crianças tomarem banho ao longo do dia e a abertura de novas salas de aula, já que a infraestrutura atual atende a turmas matutinas e vespertinas. Para estes, a oferta foi irrisória”, avalia Costa Lima. O Programa fomenta a oferta de um milhão de matrículas de tempo integral no período 2023-2024 e, como segundo passo, promete alcançar um total de 3,2 milhões de matrículas nessa modalidade até 2026.

O MEC reconhece a necessidade de elevar a oferta para além do estabelecido no Programa e afirma que a distribuição de vagas foi baseada em dados demográficos. “Temos 178 mil escolas de educação básica que atendem 48 milhões de estudantes. Alguns estados populosos receberam 16 mil matrículas e [houve] municípios para os quais ofertamos 20 vagas, e teriam demanda para um número maior. A longo prazo, nosso compromisso é ampliar a modalidade, como prevê a Constituição de 1988 e a LDB de 1996. Reconhecemos que o Brasil tem demanda represada de ampliação das matrículas em tempo integral. Estamos atrás de países da América Latina, como Uruguai, Chile, Colômbia, México e Costa Rica, México, que também foram colônias, também receberam modelo de educação de poucas horas mas que conseguiram fazer as suas jornadas escolares serem completas. Nesse momento histórico, essa é uma reparação muito importante de ser feita com os bebês, crianças, adolescentes e jovens brasileiros”, ressalta Franzim.

Até 15 de outubro, data inicial estabelecida pelo MEC para pactuação com as redes, 84% dos municípios – incluindo todas as capitais – e todos os estados haviam elevado a oferta de matrículas em tempo integral – isso porque o Programa autoriza uso dos recursos já para ampliações feitas em 2023, além das que virão em 2024. Das pouco mais de 1 milhão de matrículas disponibilizadas pelo MEC, 83,4% estavam pactuadas, representando 87,9% do fomento à disposição de estados e municípios para este primeiro ciclo de pactuação.

Segundo o presidente da Undime, o não preenchimento da totalidade de vagas financiadas é demonstração de que, para alguns municípios, elas eram tão poucas que levaram o secretário de educação a preferir não entrar no Programa. “Ouvi de gestores que não compensava, por toda a burocracia a se cumprir”, conta.

A saída encontrada pelo MEC foi redistribuir o saldo de matrículas não pactuadas para as secretarias que demonstrassem interesse em aumentar a oferta até o dia 31 de outubro quando 4.716 municípios finalizaram a pactuação de 98,5% das 1.000.393 matrículas ofertadas, ao valor de R$ 4,1 bilhões (98,5% dos recursos disponibilizados). “Nesse primeiro ano, o pactuado com estados e municípios prevê o reconhecimento de matrículas criadas em 2023 ou novas matrículas em 2024. Daqui em diante isso não ocorrerá mais. Sempre fomentaremos vagas a serem criadas para o ano seguinte”, descreve a coordenadora do MEC, para quem os números do primeiro ciclo de pactuação são “muito significativos”. “Lidamos com um ‘problema bom’, o de ter pouca matrícula para ser redistribuída. A demanda por mais oferta foi muita”.

Para começar, R$ 4 bilhões Para o primeiro ciclo de pactuação, o MEC destinou R$ 4 bilhões. Segundo o presidente do Consed, o governo federal ofertou “orçamento condizente” com o esforço de atingir a meta 6 do PNE 2014-2024. “O programa aponta para a direção correta na medida em que procura induzir a oferta de novas matrículas em jornada ampliada e o chamamento permitiu inclusão das vagas já abertas em 2023 e que puderam entrar no cômputo, além da oferta prevista para 2024. Metade desse recurso vem ainda em 2023, justamente para a organização dessa oferta a partir do próximo ano letivo, quando então esta rede, no caso, receberia o restante do valor do fomento”, explica.

E o que pode ser pago com esse dinheiro? De acordo com Franzim, “é para a manutenção e o desenvolvimento de ensino, exceto folha de pagamento de servidores e alimentação escolar. Para todos os demais aspectos que o artigo 70 da LDB prevê, seja aperfeiçoamento docente, formação, aquisição de material escolar, obras pequenas, reformas, transporte escolar, pode usar recursos do fomento”.

O aumento dos gastos correntes nos orçamentos anuais de estados e municípios, necessário para manter a rotina da ampliação do horário e os custos da expansão da oferta a longo prazo do ensino de tempo integral no Brasil, preocupa os presidentes do Consed e da Undime. “É possível que ao longo do tempo a gente encontre dificuldades de natureza logística para o cumprimento das metas do Programa. Se nesse primeiro momento o objetivo de novas matrículas será alcançado, para os anos seguintes é preciso averiguar e observar se as redes terão condições de abrir novas escolas, porque o fomento é uma parte importante para esse incentivo, mas não é suficiente para garantir as condições da rede física, uma vez que a jornada ampliada pode exigir a ampliação também das escolas ou mesmo a construção de novas escolas. Os recursos atuais, embora importantes, são insuficientes para essa finalidade”, avalia de Angelo.

Já Costa Lima destaca a necessidade de atualização dos valores ofertados para a merenda escolar, que conta com recursos da União, mas através de outra iniciativa, o Programa Nacional de Alimentação Escolar. “A criança que estuda de forma parcial faz um lanche na escola. Muito embora o governo federal tenha reajustado o valor da merenda escolar, ainda é muito insignificante e não cobre o necessário para fornecimento desse lanche. O município já entra com contrapartida, mas no ensino de tempo integral o aluno passa a ter no mínimo três alimentações por dia e o dinheiro para financiamento disso não pode legalmente ser proveniente dos 25% de gastos estabelecidos constitucionalmente em Educação”, alerta.

Educação Profissional no PL do Ensino Médio

Em entrevista à edição passada da Poli (nº 91), o secretário de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação, Getúlio Marques, afirmou como “prioridade” que “a parte que seria acrescentada” para promover o ensino em tempo integral no caso do Ensino Médio consistisse na oferta de ensino profissional. Também a coordenadora de Educação Integral e Tempo Integral da Secretaria de Educação Básica (SEB) do MEC, Raquel Franzim, defende que a Educação Profissional e Técnica é “fundamental dentro de uma concepção integral do ensino”. “Ela toma uma proporção maior no Ensino Médio, mas pode já estar presente nos anos finais do ensino fundamental, porque a LDB estabelece que a Educação é para desenvolvimento integral, formação para a cidadania e um diálogo com o mundo do trabalho. O trabalho faz parte da dimensão humana. Pensar sobre ele, entender as transformações do mundo do trabalho e como elas impactam as nossas vidas é um componente curricular muito importante para a formação desse sujeito pleno”, avalia. O Programa, no entanto, não possui diretriz específica sobre destinação de carga horária para esse objetivo. Na verdade, a sugestão de que a expansão da carga horária esteja articulada com a formação profissional e técnica está no Projeto de Lei 5.230/23, que o MEC propôs para revogar parte do Novo Ensino Médio. Isso porque a formação profissional é uma das opções de itinerário formativo que a Reforma instituiu para a ampliação da carga horária do Ensino Médio.

Representante dos gestores estaduais de Educação, responsáveis em sua maioria pela oferta do Ensino Médio no Brasil, de Angelo prefere não antecipar qualquer definição sobre o lugar do Ensino Profissional e Técnico na implementação no interior do Programa Escola em Tempo Integral. “Ter ou não ter EPT [Educação Profissional e Tecnológica] não é uma questão exclusiva de ser uma escola em tempo integral, porque o itinerário profissional técnico é, mesmo agora com o PL enviado ao Congresso Nacional, um dos itinerários do novo ensino médio. Portanto, vale tanto para a escola de tempo integral quanto para a escola de tempo parcial”, explica.

Ao mesmo tempo, ele chama atenção para um aspecto limitador do PL enviado pelo governo federal ao Congresso que, se não for modificado na tramitação, poderá ser solucionado com a oferta de Ensino Médio em tempo integral. “O projeto de lei estabelece que a formação geral básica passará de 1.800 para 2.400 horas, e que quando houver uma oferta de EPT elas passarão a ser de 2.100 horas, num total de 3.000. Então, só cabem, presencialmente, cursos de 800 horas. Para os cursos de 1.000 ou 1.200 horas, será preciso lançar mão da educação à distância”, alerta. Para o presidente do Consed, “a ampliação do tempo integral tem o propósito de permitir que cursos maiores de EPT sejam presencialmente ofertados em escolas de ensino médio, o que só seria possível no caso desses cursos com maior jornada, em escolas também de jornada ampliada”.

 

Acesse a edição 92 da Poli.