Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Reforma da Previdência: o debate e as mudanças continuam

Como desdobramento da Emenda Constitucional aprovada em 2019, estados e municípios têm feito suas próprias reformas na aposentadoria dos servidores. Especialistas contestam a existência de déficit, principal argumento da mudança
Redação EPSJV - EPSJV/Fiocruz | 18/07/2022 10h08 - Atualizado em 18/07/2022 14h32

Depois da queda de braço em torno da mais recente reforma da previdęncia, que acabou resultando na Emenda Constitucional 103, aprovada em 2019, esse pode parecer um tema velho e superado. A questăo é que essa mudança năo só incentivou como exigiu e estabeleceu parâmetros para várias outras reformas que se intensificaram nos últimos tręs anos, atingindo a aposentadoria dos servidores públicos estaduais e municipais. Para se ter uma ideia, segundo o Monitor da Previdência nos Estados, produzido pelo jornal O Estado de S. Paulo, com atualizaçăo até janeiro deste ano, 22 estados já concluíram suas reformas nos moldes estabelecidos pela EC 103, três estăo em andamento e apenas dois, Rio de janeiro e Roraima, năo submeteram ou retiraram de tramitaçăo os projetos sobre o tema. Vários deles, inclusive o Rio, no entanto, já tinham feito reformas anteriores. A reportagem não encontrou dados sistematizados sobre os municípios, mas casos concretos năo faltam: a cidade de Săo Paulo, por exemplo, aprovou duas reformas num intervalo de tręs anos – a última delas, em 2021, de acordo com Daniel Santos, presidente do Sindilex, sindicato que representa os servidores da Câmara e do Tribunal de Contas do município, foi feita ‘à imagem e semelhança’ da EC 103, e conseguiu avançar em medidas como a ampliaçăo da idade para aposentadoria, que a mobilizaçăo social tinha conseguido evitar na versăo anterior.

Confirmando a atualidade do tema, ganhou recentemente as páginas dos jornais uma Comissăo Parlamentar de Inquérito (CPI) que apontou possíveis irregularidades na gestăo da Rio Previdęncia, no Rio de Janeiro. A grita era para que essas denúncias năo “acabassem em pizza” – o que adiantou pouco já que, até o fechamento desta ediçăo, o relatório năo tinha ido a votaçăo no plenário da Assembleia Legislativa. Mas o volume de dados levantados sobre a estrutura e o funcionamento do sistema de aposentadoria dos servidores fluminenses traz um retrato que pode fornecer pistas importantes sobre a situaçăo dos Regimes Próprios de Previdência em todo o país. A principal delas, segundo a advogada Helena Marroig, que acompanhou de perto a CPI da Rio Previdęncia como assessora do mandato do deputado estadual Flavio Serafini, é a conclusăo de que é preciso pôr em dúvida – e em discussăo – o discurso que afirma a existęncia de um déficit. “A gente ouve falar tanto que a previdęncia do Rio quebrou, que os estados em geral tęm suas previdęncias quebradas. E na verdade isso năo se sustenta muito a partir dos dados que a gente foi mexendo”, diz Marroig,  que completa: “Na verdade, houve um processo de desmonte do que foi o projeto original das previdęncias na Constituiçăo de 1988. Todas essas mudanças foram criando instabilidade financeira e desequilíbrio dentro da previdência”.

Abrindo caminho
A verdade é que nem as mudanças nem o discurso de que a Previdęncia Social é deficitária no Brasil surgiram agora. Desde 1998, dez anos depois de a Constituiçăo Federal instituir a previdęncia como parte da Seguridade Social, junto com as políticas de saúde e assistęncia social, o país passou por várias reformas, que modificaram de modo mais ou menos estruturante o direito que tinha sido adquirido no processo das lutas pela redemocratizaçăo. Em nível nacional, a mais recente se deu em 2019, com a aprovaçăo da Emenda Constitucional nş 103. Mas o que os especialistas ouvidos por esta reportagem mostram é que as mudanças anteriores acabaram abrindo caminho para as transformaçőes que também a previdęncia dos servidores públicos federais, estaduais e municipais sofreu e continua sofrendo.

E aqui surge um primeiro elemento para o debate sobre se há ou năo déficit na previdęncia dos servidores já que, segundo muitos outros pesquisadores do tema, o cálculo que tem sido feito para argumentar sobre a insustentabilidade da previdęncia pública năo considera exatamente as diferenças de regras e condiçőes dessa política ao longo da sua história. O ponto central dessa distinçăo, de acordo com Filipe Leiria, que estudou o tema na sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é o fato de năo ter havido sempre, no caso dos servidores, a exigęncia de uma contribuiçăo de parte do salário como condiçăo para a aposentadoria. “A premissa era de que a Seguridade Social era uma despesa do Estado”, explica Leiria. É verdade que, para os trabalhadores da iniciativa privada, foi definida desde sempre uma alíquota de contribuiçăo, a partir da lógica da solidariedade intergeracional, na qual quem tem energia para trabalhar financia o descanso daqueles que, mais avançados na idade, năo tęm a mesma disposiçăo física. Já no caso dos servidores, diz Leiria, a previdęncia era concebida como uma despesa pública, como outra qualquer.

Essa diferença sequer configurava ainda a existęncia de dois regimes de previdęncia distintos. Foi a Emenda Constitucional nş 20, de 1998, a primeira grande reforma (ou contrarreforma, como chamam alguns críticos) dessa política no Brasil, que instituiu que a previdęncia deveria se organizar “sob a forma de regime geral”. E, para marcar que os servidores públicos năo poderiam se filiar a ele, o texto fez, pela primeira vez, referęncia a um “regime próprio” sem, no entanto, caracterizá-lo ou estabelecer regras de funcionamento. A divisăo mais precisa da previdęncia social brasileira em dois regimes, segundo o pesquisador, se deu a partir daí – antes, năo existia, por exemplo, um orçamento separado para o pagamento da aposentadoria do funcionalismo, o dinheiro destinado a esse fim saía do ‘caixa’ geral do Estado. “Embora a própria Constituiçăo de 1988 já descreva que tinha que fazer uma separaçăo entre o que é o orçamento fiscal e o orçamento previdenciário, ela falava apenas em demonstrar [essa separaçăo]. Na prática, era como se fosse uma despesa fiscal: vocę tem que pagar o salário e o benefício de aposentadoria das pessoas, que se aposentavam com paridade e integralidade”, explica.

Tudo isso pode parecer detalhe, mas năo é. Após as emendas constitucionais 20 e 41, năo apenas a aposentadoria dos servidores públicos passou a depender da contribuiçăo de parte do salário como estabeleceu-se que esse regime de previdęncia deveria ser orientado por critérios que preservassem o “equilíbrio financeiro e atuarial”, ou seja, precisaria provar que conseguia fechar as contas năo apenas ano a ano como também no longo prazo. Para tirar isso a limpo, o cálculo atuarial faz projeçőes futuras, levando em conta estimativas sobre variáveis diversas, como crescimento da populaçăo, expectativa de vida, produtividade e emprego.
Na avaliaçăo de Leiria, aí já se começa a “preparar” o caminho que no futuro legitimaria medidas restritivas ao direito previdenciário mas, na prática, até aquele momento, esse lembrete da lei valia apenas como “critério de gestăo”, o que significa que exigia-se a produçăo de relatórios que analisassem a ‘saúde financeira’ da previdęncia dos servidores mas isso năo alterava em nada o benefício da aposentadoria a ser recebido. “[A existęncia de um déficit] năo autorizava, por exemplo, que os governos criassem sobretaxaçăo para aposentados e pensionistas”, explica o pesquisador. Pois foi exatamente isso que a Emenda Constitucional 103, aprovada em 2019 e vigente desde 2020, mudou. E, junto com ela, também as diversas leis que vęm reformando a previdęncia dos estados e municípios.

O argumento do pesquisador é que o que se plantou lá atrás está sendo colhido agora. Desde a EC 103, a existęncia de déficit atuarial passou a justificar a cobrança de alíquotas maiores dos servidores, alterando a base de cálculo de todo o valor que ultrapassa o teto da previdęncia geral, que hoje está em pouco mais de R$ 7 mil. Outra mudança foi a autorizaçăo para taxar também aposentados e pensionistas. Essas duas medidas, na avaliaçăo de Leiria, atingem sobretudo os servidores de mais baixos salários, que ganham menos do que o teto do regime geral. Dados da última versăo do Atlas do Estado Brasileiro, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), referentes a 2019, mostram que quase 58% dos servidores públicos municipais e pouco menos de 30% dos estaduais ganham salário inferior a R$ 2,5 mil. Na faixa entre R$ 2,5 mil e R$ 5 mil, portanto ainda bem abaixo do teto, encontram-se 29% do funcionalismo municipal e 33,5% do estadual. “Estamos falando de professores, policiais militares de baixa patente, profissionais de saúde... E, principalmente, mulheres, que foram as mais atingidas”, resume Leiria.

Todas essas mudanças descaracterizaram tanto o direito previdenciário dos servidores que, na avaliaçăo de Leiria, podem levar uma parcela desses trabalhadores a abandonar o RPPS e optar pela aposentadoria no regime geral, que tem reajustes anuais e năo cobra contribuiçăo dos inativos. Para isso, basta que tenham algum tempo de trabalho na iniciativa privada anterior ao concurso. “Antes os estados tinham mais a receber do regime geral do que a pagar, porque as pessoas normalmente traziam o tempo da iniciativa privada para se aposentar no estado ou município, por RPPS. Agora, já tem RPPS que está tendo que pagar a mais para o regime geral. Inverteu a relaçăo”, analisa.

Năo por acaso, a EC 103 também inova ao estabelecer, pela primeira vez, a possibilidade de extinçăo dos regimes próprios – inclusive nas situaçőes em que exista superávit. Nesse caso, o estado ou município continua se responsabilizando pelo benefício daqueles que contribuíram até a data de fim do RPPS enquanto os que ingressarem depois migram para o regime geral. Além disso, essa última reforma também proibiu que novos RPPS fossem criados.

Pública, mas financeirizada
Mídia Ninja Mas também no interior do regime próprio de aposentadoria dos servidores há divisőes que o separam em dois subsistemas. Um, que ainda concentra mais beneficiários e segue mais próximo da concepçăo de previdęncia que inspirou a Constituiçăo de 1988, é o de repartiçăo simples. Nele, os servidores contribuem mensalmente com um percentual do salário e o governo, na condiçăo de ‘empregador’, participa com o dobro. Assim, os trabalhadores da ativa financiam os aposentados. Esse dinheiro, no entanto, entra no ‘caixa’ geral daquele estado ou município, năo fica concentrado numa conta separada. E, pelas regras, apesar de existir uma definiçăo prévia sobre a contribuiçăo de cada parte, se faltar recurso, o Estado deve complementar para garantir os benefícios a serem pagos. “É uma impropriedade falar em déficit no regime de repartiçăo simples porque, com a contribuiçăo financeira que está prevista em lei, ele nunca ficaria desequilibrado”, diz Leiria.

O segundo subsistema de previdęncia vigente no Brasil para os servidores públicos é o da capitalizaçăo coletiva, que é mais recente e se caracteriza, antes de tudo, por guardar o dinheiro da aposentadoria numa conta separada. Servidores e governos contribuem na mesma proporçăo, mas esse montante năo só é blindado em relaçăo ao caixa geral do Estado como também năo se mistura com os recursos que financiam a própria previdęncia no outro regime, de repartiçăo. Nem todos os estados e municípios tęm o sistema de capitalizaçăo mas, quando ele existe, o que acaba acontecendo é o que se chama de “segregaçăo de massa”, ou seja, a divisăo dos servidores de um mesmo ente federado em dois grupos. Para o funcionalismo, isso significa que quem ingressa no serviço público depois da criaçăo dessa alternativa fica no sistema de capitalizaçăo coletiva, enquanto os mais antigos permanecem na repartiçăo simples – que năo pode ser eliminada enquanto houver beneficiários – ou optam por migrar. E esse movimento também é fundamental para entender o debate sobre o déficit.

Primeiro porque os sistemas de capitalizaçăo coletiva surgem com um aporte inicial de recursos. “O Estado bota um dinheiro porque, em geral, as pessoas [que ingressam no serviço público] já tęm tempo de contribuiçăo do setor privado e, portanto, os desembolsos vęm antes de se formar a reserva”, explica Leiria, que completa: “O regime de repartiçăo simples năo teve aporte inicial, mas quando se analisa o déficit financeiro desse sistema, essa diferença passa batida”. Helena Marroig ressalta ainda que essa divisăo gera năo só um discurso equivocado, mas é responsável por parte do que ela considera um “desmonte” que os RPPS vęm sofrendo. “Os servidores novos que começam a entrar param de contribuir para sustentar os que hoje estăo aposentados porque contribuem para um fundo separado. A segregaçăo de massa divide os trabalhadores. Os antigos, que contribuíram a vida toda nessa lógica intergeracional, ficam sem ninguém para sustentá-los dentro daquele acordo que foi feito. Entăo, o Estado tem que contribuir e garantir que esses servidores que trabalharam a vida toda tenham suas aposentadorias, suas pensőes, seus direitos em geral”, explica. Essa, diz, tomando como referęncia os dados do Rio de Janeiro levantados pela CPI, é uma das razőes para o alegado déficit.

Para os cofres públicos, segundo Leiria, além da contribuiçăo previdenciária menor, um dos importantes efeitos da capitalizaçăo coletiva é impedir o ‘giro’ desse recurso para investimentos do próprio Estado. “O grande debate no senso comum é de que a previdęncia era um problema fiscal. Mas era exatamente o contrário: a previdęncia ajudava a financiar o orçamento fiscal do Estado”, contesta. Ele explica que o subsídio cruzado, ou seja, a possibilidade de o dinheiro da previdęncia se comunicar com o orçamento fiscal, era possível porque, baseado na lógicada solidarieadade intergeracional, o modelo de repartiçăo simples năo tem a pretensăo de “formar reserva”. Já no sistema de capitalizaçăo, essa passa a ser a prioridade do dinheiro arrecadado com as contribuiçőes previdenciárias dos trabalhadores e governos. Essa reserva, complementa Leiria, depende tanto de năo se mexer no dinheiro recolhido quanto de se aplicar esse recurso de modo a aumentar o bolo – o que, inclusive, deve ‘compensar’ a reduçăo da contribuiçăo do Estado nesse sistema. “É um dinheiro que está indo para alavancar o mercado de capital quando poderia ir para os cofres do governo para sustentar políticas públicas e fazer investimento”, critica Helena Marroig. Isso porque, na prática, na capitalizaçăo coletiva é preciso investir esses recursos, gerando um processo de financeirizaçăo do montante que deve servir para a aposentadoria dos trabalhadores. Trata-se de uma mudança na lógica da Previdęncia Social – e que está longe de ser consensual.

Posiçăo bastante crítica a esse modelo está presente numa cartilha intitulada ‘Financeirizaçăo nos Regimes Próprios de Previdęncia Social (RPPS) nos estados: tendęncias enunciadas na estruturaçăo do sistema e na legislaçăo’, publicada pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituiçőes de Ensino Superior, o Andes, e produzida por um grupo de pesquisadores sob a coordenaçăo técnica da professora Sara Granemann, da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O estudo aponta esse processo como um caminho para a capitalizaçăo plena e individual que tem no modelo da previdęncia privada complementar seu objetivo último. Marroig pensa parecido. “A ideia da previdęncia é que ela tenha uma certa sustentabilidade na medida em que vocę tem uma solidariedade entre geraçőes trabalhadoras. Ela năo é um seguro privado como a previdęncia que vocę faz no banco, contribui e depois saca aquele dinheiro. A ideia é que a gente tem necessidades sociais e os trabalhadores que estăo hoje em dia com capacidade de trabalhar văo contribuir para esse sistema, para no futuro também receberem e terem suas necessidades atendidas. A ideia da capitalizaçăo é totalmente diferente e gera problemas contábeis e financeiros, tanto para o Estado quanto para os próprios trabalhadores”, argumenta.

Já Filipe Leiria acredita que esse sistema se tornou necessário na medida em que o “pacto intergeracional” que sustentava a concepçăo constitucional da previdęncia está em crise num contexto em que os empregos formais tęm se reduzido e a populaçăo ativa năo cresce mais na mesma velocidade que as aposentadorias. Por isso, diz, a tendęncia mundial é um sistema que “crie reserva”. Para ele, a dependęncia de um processo de financeirizaçăo para fazer esse bolo da previdęncia capitalizada crescer năo tem a ver exatamente com o desenho do sistema, mas sim com o modelo de desenvolvimento econômico do país. “O Brasil virou um paraíso de investimento financeiro, poucos países tęm taxas de juros tăo altas quanto a nossa”, destaca, explicando que, em funçăo desse cenário, o montante dos fundos de previdęncia dos servidores – que, pela lógica da capitalizaçăo, precisa ser investido para garantir a reserva que financiará as aposentadorias – acaba sendo majoritariamente aplicado em títulos da dívida pública, que săo altamente rentáveis. Ele explica que, do ponto de visto financeiro, isso năo gera perda para os servidores. Năo por acaso, de acordo com a cartilha do Andes, os RPPS de todos os sindicatos da sua base “estăo com suas contribuiçőes em aplicaçőes financeiras, no mercado de capitais”. Mas, segundo análise de Leiria, o problema é mais profundo: nessa ‘ciranda’, a rentabilidade acaba se dando ŕs custas dos cofres públicos, já que, em algum momento, a dívida que gerou os títulos terá que ser paga pelo mesmo Estado que administra o fundo previdenciário.

Mesmo essa financeirizaçăo, no entanto, năo é um vale tudo. Uma resoluçăo da Comissăo de Valores Mobiliários (CVM) estabelece o percentual dos recursos previdenciários que pode ser usado em cada tipo de investimento, de modo a evitar grandes volumes de aplicaçőes que coloquem em risco o dinheiro da aposentadoria. A cartilha do Andes reconhece que esse sistema tem “regras de investimento bastante rígidas”, mas considera que nem por isso elas săo “seguras e sem risco”. E, mantendo a posiçăo crítica ao modelo de capitalizaçăo, mesmo coletivo e público, aponta o que parece compreender como uma inversăo também estrutural: segundo o texto, hoje săo as aplicaçőes financeiras que “determinam o modo de ser da previdęncia pública”. Helena Marroig concorda que o sistema de capitalizaçăo coletiva dos servidores no Brasil “năo é dos piores”, mas argumenta que a “lógica privada” que o orienta faz com que năo deixe de oferecer riscos. “Se tem uma crise econômica e o dinheiro desvalorizou, os trabalhadores perdem parte de sua previdência, năo têm mais uma segurança coletiva, no sentido de o Estado proteger, uma proteçăo social”, alega.

Na verdade, esse risco refere-se ao montante do fundo, năo ao benefício individual, já que a legislaçăo garante que, haja o que houver, a aposentadoria deve ser paga a quem atinge os critérios necessários, como idade e tempo de contribuiçăo. Mas aqui o caso do Rio de Janeiro torna-se exemplar. Marroig lembra o ano de 2016, no auge da crise econômica do estado, em que o governo atrasou até quatro meses o pagamento do benefício dos aposentados, sem contar a situaçăo dos servidores da ativa. Nesse caso, no entanto, os prejudicados foram os integrantes do sistema de repartiçăo simples, que săo esmagadora maioria no estado, já que a capitalizaçăo coletiva é relativamente recente e quase năo tem havido concurso público para entrada de novos servidores. Segundo ela, no Rio o sistema de capitalizaçăo tem tăo poucos servidores que está sempre superavitário. Reforçando o argumento contra a financeirizaçăo que ela considera como o ponto central do modelo, Marroig ressalta que, se a questăo fosse a sustentabilidade, num caso como o da capitalizaçăo do Rio, em que “sobra dinheiro”, deveria-se optar por reduzir a contribuiçăo dos servidores. “Mas isso nem é pensado”, lamenta.
Privada, mas complementar

Pedro França/Agência SenadoDe fato, a última reforma nacional, que acabou se consolidando na EC 103, bem que tentou dar um passo a mais na direçăo de uma financeirizaçăo completa – e privada – da previdęncia social no Brasil. A principal e mais radical proposta de mudança anunciada no projeto pensado pelo Executivo em 2019 era substituir o que existe hoje, incluindo regimes geral e próprio, por um sistema de capitalizaçăo em que cada trabalhador contribui sozinho para sua aposentadoria futura, numa espécie de poupança de longo prazo administrada por instituiçőes bancárias e financeiras privadas. O principal exemplo mundial desse modelo – que Leiria define como “de um único pilar contributivo” – é a experięncia do Chile. “Deu no que deu”, critica o pesquisador, referindo-se ŕs muitas denúncias de fracasso desse sistema, vocalizadas, por exemplo, durante os protestos que ganharam as ruas do país entre 2019 e 2020. Mas esse năo foi o único caso: de acordo com um estudo divulgado pela Organizaçăo Internacional do Trabalho (OIT) em 2018, 18 dos 30 países que reformaram seus sistemas previdenciários para priorizar ou tornar exclusivo esse modelo de capitalizaçăo privada voltaram atrás nas mudanças.

No Brasil a proposta foi recusada, mas a versăo aprovada da EC 103 deu um passo a mais, além dos muitos que já tinham sido dados, no incentivo ŕ previdęncia privada. De forma inédita, o texto obriga todos os estados e municípios a oferecer esse ‘serviço’ aos seus servidores, como uma previdęncia complementar.

Reforçando a tese de uma linha de continuidade entre as diversas reformas da previdência que o Brasil promoveu e continua promovendo, essa obrigatoriedade de agora está diretamente ligada às mudanças que acabaram com a aposentadoria com salário integral para os servidores públicos  que ingressaram a partir de 2003 e estabeleceram para os regimes próprios o valor referente ao teto do regime geral para quem ingressou depois de 2012. Isso porque o complemento da previdência privada é voltado para os trabalhadores que, na ativa, ganham acima do teto e querem manter esse mesmo nível de rendimento após a aposentadoria. No nível federal, para isso foi criado o Funpresp. Ao longo do tempo, alguns estados e municípios também implementaram as suas previdęncias complementares, mas, com a EC 103, isso se ampliou para todos os entes federados.

Uma das principais conclusőes a que a tese de doutorado de Filipe Leiria chega é, exatamente, que, do ponto de vista da “racionalidade econômica”, essa determinaçăo năo faz o menor sentido. “Qual o sentido de colocar um regime de previdęncia complementar em municípios onde a maioria das pessoas sequer recebem acima do teto do regime geral? Nenhuma”, questiona, explicando que para fazer investimentos que tragam rentabilidade é preciso ter “massa suficiente de pessoas”. Prevendo isso, a EC 103 autorizou que, para ofertar esse serviço aos servidores estaduais e municipais, sejam feitos convęnios com outras entidades já existentes de previdência complementar.

Mesmo sendo privada, a previdência complementar voltada para os servidores não é igual àquela que qualquer trabalhador pode contratar num banco ou instituição financeira. A diferença é que, também na previdência privada, o funcionalismo público conta com um patrocínio público. “Para cada um real que o servidor aporta, o Estado também aporta um real e isso fica em uma conta individualizada, vinculada ao servidor. Pode a entidade administradora do regime complementar quebrar que a conta dele está preservada, ele vai levar para uma outra administradora”, explica Leiria. Mas ele alerta que, como parte de uma “relação contratual”, essa contribuição estatal pode ser retirada a qualquer momento. Não por acaso, diz, o atual presidente da Previc, a Superintendência Nacional de Previdência Complementar instituição vinculada ao Ministério da Economia que fiscaliza as entidades do setor, já opinou contra esse patrocínio alegando que ele fere os princípios da concorrência. “O que se quer é passar essa reserva, essa poupança do trabalhador para o setor financeiro. E o caminho que se vem construindo é desconstituir as reservas e forçar as pessoas a terem que buscar outras formas que não mais essas estatais”, opina.

Leia mais

Enviada pelo Executivo na semana passada à Câmara dos Deputados, a proposta de reforma da Previdência deve significar uma piora nas condições de vida dos aposentados e trabalhadores com mais de 60 anos no Brasil, além de tornar o país ainda mais desigual. É o que alerta o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Renato Veras. Formado em Medicina, diretor da Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI) da UERJ e editor da Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, Veras acredita que as mudanças propostas pela reforma, caso aprovadas, vão impactar diretamente o Sistema Único de Saúde (SUS) e a saúde dos trabalhadores, que terão que trabalhar até uma idade mais avançada. São medidas como a ampliação do tempo de contribuição para 40 anos para que um trabalhador possa receber 100% da média salarial com a qual contribuiu; a fixação de uma idade mínima para aposentadoria em 65 anos para homens e 62 anos para mulheres, com no mínimo 20 anos de contribuição, bem como a ampliação da idade mínima para receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC) – salário mínimo pago a idosos de baixa renda – de 65 para 70 anos, entre várias outras. De acordo com o pesquisador da UERJ, elas vão significar mais riscos de saúde aos trabalhadores que terão que permanecer mais tempo trabalhando, ao mesmo tempo em que lidam com as doenças crônicas que afetam de forma mais acentuada os idosos. Sem contar que poderão se aposentar ganhando menos do que ganhavam, justamente em um momento em que seus gastos com saúde aumentam. “É uma covardia muito grande”, critica.