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Reivindicações sociais durante a ditadura apontam a necessidade de redemocratização

Movimentos da saúde nascem nos anos 1970 e repensam modelo de assistência
Juliana Chagas, Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2008 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Passeata por uma nova Constituição Federal Foto: Erik Barros Pinto / Projeto Radis/ENSP/Fiocruz

No final da década de 1970, começaram a se esboçar as mudanças políticas que aconteceriam no Brasil e culminariam, em outubro de 1988, na nova Constituição Federal. Esse processo faz parte do contexto em que foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), que em 2008 comemora 20 anos.

As transformações começaram a ganhar contorno após o que ficou conhecido como ‘milagre econômico’ – entre 1969 e 1973, houve grande expansão do setor industrial e muitos investimentos internos. Mas, mesmo com a economia indo bem, o país convivia com a repressão às lideranças sindicais, com o arrocho salarial e com a distribuição desigual dos benefícios da modernização. A partir de 74, quando as condições internacionais deixaram de ser favoráveis, o Brasil entrou numa grande crise, com o aumento da inflação e da dívida externa. Além disso, a população se mostrava cada vez mais descontente com o regime militar instalado em 1964, que se caracterizava pela repressão dos direitos individuais, pela censura e pela violência. Foi nesse panorama que, em 1974, o general Ernesto Geisel (1974-79), ao assumir a presidência da República, afirmou que faria uma abertura política “lenta, gradual e segura”. Ou seja: a democracia viria a passos lentos.

Mas a sociedade civil não queria esperar e começou a se organizar em diversos movimentos a favor da democracia. Segundo a historiadora Virgínia Fontes, professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), alguns grupos foram fundamentais nesse processo. “Um deles foi o movimento sindical, que ressurgiu com dificuldade a partir dos anos 1974 e 75, enfrentando mais diretamente a ditadura e marcando o fim da década de 70 com uma grande onda de greves, reprimidas fortemente. Também foram importantes as comunidades eclesiais de base, coordenadas pela Igreja Católica, principalmente por grupos ligados à Teologia da Libertação, que reivindicavam direitos humanos mínimos e denunciavam casos de tortura e prisões políticas. Ao mesmo tempo, multiplicavam-se as associações de moradores, que lutavam por melhorias nas condições de vida e buscavam solucionar problemas como saneamento, educação e saúde”, explica.

O próprio movimento sanitarista começou a se configurar nessa época. Era um tempo em que a assistência pública à saúde no Brasil estava restrita a poucos e ancorada no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), criado em 1974 para prestar atendimento aos trabalhadores urbanos que possuíam carteira assinada e contribuíam com a previdência social. Os não previdenciários recebiam assistência de instituições filantrópicas, como as Santas Casas de Misericórdia, ou utilizavam o setor privado, se pudessem pagar pelos seus serviços. A atuação do Ministério da Saúde e das secretarias estaduais e municipais de saúde limitava-se ao campo da prevenção, como na realização de campanhas.

Para o sociólogo Arlindo Gómez, que foi secretário executivo da Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), todo esse movimento de redemocratização tinha, certamente, que se refletir também na área da saúde. De acordo com ele, vários atores políticos do serviço de saúde e das universidades perceberam que o modelo de assistência do Brasil não era adequado ao bem-estar da sociedade. “A população tinha que ter acesso a um conjunto de serviços que fossem adequados às necessidades das pessoas. Quando, em 1975, a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca [Ensp/Fiocruz] passou a organizar cursos descentralizados de pós-graduação em saúde pública, essa discussão foi entrando pelo país. Pessoas e instituições começaram a se juntar, compartilhando suas ideias e reflexões e difundindo a necessidade da reforma do nosso sistema de saúde”, comenta.

Diretas Já: população luta por eleições democráticas

A pressão da população brasileira para que a ditadura acabasse ganhou mais força durante o governo do general João Baptista Figueiredo (1979-85) – último presidente do regime militar – que, seguindo a promessa de abertura política, em 1979 promulgou a Lei de Anistia, permitindo que pessoas acusadas ou condenadas por cometerem crimes políticos pudessem voltar do exílio. No mesmo ano, o governo realizou uma reforma partidária para permitir o pluripartidarismo e enfraquecer a oposição. Ao contrário do que os militares pensaram, essa medida fortaleceu os opositores à ditadura. Mais tarde, em 1982, as eleições para governadores confirmaram a força da oposição: a situação perdeu o governo de estados importantes, como o Rio de Janeiro, que elegeu Leonel Brizola (PTB), e São Paulo, onde venceu Franco Montoro (MDB).

Para a sucessão presidencial, a Constituição previa as eleições indiretas em 1984 a partir do Colégio Eleitoral, formado por integrantes do Congresso Nacional. Mas, em 1983, o deputado Dante de Oliveira, do MDB, apresentou uma emenda constitucional que estabelecia eleições diretas para presidente da República já no ano seguinte, obtendo grande apoio popular. O crescimento da oposição deixava claro que, se a proposta de Dante fosse aprovada, o candidato de situação não seria eleito. Para pressionar os parlamentares a votarem a favor da emenda, os partidos que se opunham ao governo organizaram a campanha que ficou conhecida por ‘Diretas Já’. O PT, liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, foi um dos grandes responsáveis pelo crescimento da manifestação. “O PT apareceu naquele contexto em que os movimentos sociais perceberam a importância da sua participação, e teve o papel de unir as grandes lutas em torno de objetivos comuns, como foi o caso das Diretas Já”, comenta Virgínia.

"As questões de 1964, que eram as grandes reformas de base (...) reapareceram nos movimentos sociais contra a ditadura" (Virgínia Fontes)

Em janeiro de 1984, um grande comício tomou conta da Praça da Sé, em São Paulo. O sucesso foi tamanho que logo levou à organização da Caravana das Diretas, elaborada pelas oposições no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Os comícios, que contavam com a presença de milhares de manifestantes, tornaram-se o símbolo das ‘Diretas Já’.

Apesar da mobilização popular, a emenda Dante de Oliveira foi rejeitada no Congresso Nacional, no mês de abril, com 22 votos abaixo do mínimo necessário para a sua aprovação. Nas eleições indiretas de 1984, Tancredo Neves, do MDB, derrotou o candidato do governo, Paulo Maluf. Mas Tancredo morreu às vésperas de tomar posse, e o vice, José Sarney, assumiu o posto, ficando no cargo de 1985 a 1990 e tornando-se o primeiro presidente civil em 21 anos. Apenas em 1989 o processo de transição para a democracia se completou, com as eleições diretas para presidente.

Apesar da derrota das ‘Diretas Já’, a importância dos movimentos sociais por melhores condições de vida e pelo fim da ditadura foi inegável. “Quase todos eles retomaram questões que ficaram pendentes na agenda política brasileira, interrompidas pela ditadura. As questões de 1964, que eram as grandes reformas de base, como a reforma educacional, o controle da remessa de lucros para o exterior e a reforma agrária, entre outras, estavam pendentes e, em certa medida, reapareceram nos movimentos sociais contra a ditadura”, explica Virgínia. Segundo ela, na década de 80, esses grupos voltaram fortalecidos e mais espalhados pelo Brasil.

“Naquele momento, eles já possuíam alguns anos de experiência e já haviam enfrentado muitas lutas, inclusive internas”, afirma. Esse foi o caso dos militantes da saúde que, em 1986, dois anos após as ‘Diretas Já’, se reuniram em Brasília para a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), resultado da experiência adquirida pelo movimento sanitário, que já via a possibilidade de uma reforma na saúde. Foi a primeira conferência que contou com a participação de usuários e foi chamada por Sarney de “a pré-Constituinte da Saúde”. De fato, foi essa Conferência que lançou as bases daquilo que viria a ser o texto sobre saúde na Constituição de 1988: o Sistema Único de Saúde.