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Às ruas contra o desmonte

O Portal EPSJV conversou com os manifestantes que participaram da Marcha em Defesa da Saúde, da Seguridade Social e da Democracia em Brasília e ouviu quais são os principais riscos às políticas sociais e aos direitos conquistados
Maíra Mathias (Enviada à Brasília) - EPSJV/Fiocruz | 08/07/2016 10h08 - Atualizado em 01/07/2022 09h46
Maíra Mathias Foto: Marcha Nacional reuniu cinco mil manifestantes em Brasília

O sol abrasador de uma manhã em Brasília era o menor dos problemas para as mais de cinco mil pessoas que passariam algumas horas sob o céu do planalto central. A Esplanada dos Ministérios foi tomada por manifestantes que tinham urgência em transmitir à sociedade um recado que bem poderia ser sintetizado por um dos vários cartazes por lá exibidos: “não está tudo bem”. E, segundo os relatos de quem participou da Marcha em Defesa da Saúde, da Seguridade Social e da Democracia na última quarta-feira (6), ‘pode piorar’. O ato organizado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) – em articulação com mais de uma centena de entidades e movimentos sociais – levou às ruas o balanço de que direitos sociais que os brasileiros levaram séculos para conquistar e décadas para construir correm o risco de ser desmontados em questão de meses pelo governo interino de Michel Temer.

“Os ataques ao trabalhador, ao pobre, passaram de indiretos para diretos. Esse governo é um risco muito grande porque, por ser totalmente ilegítimo, não tem nenhum compromisso com o povo brasileiro”, sintetizou Maria Almeida, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). “Em pouco tempo, menos de dois meses, o governo se propõe a fazer uma desconstrução geral da estrutura que foi montada em 1988 ao anunciar um conjunto de propostas para acabar com esses direitos”, resume, por sua vez, Wilson Gonçalves, diretor de políticas sociais da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag).

Segundo Ronald Ferreira, presidente do CNS, a marcha é uma entre outras iniciativas que tentam ampliar o leque de forças políticas e sociais que se contrapõem à retirada de direitos. “O ato é um chamamento para tentar iniciar a ocupação das ruas para oferecer uma resistência mais efetiva e dialogar com a sociedade a respeito dos ataques terminais que o SUS e a seguridade social brasileira estão sofrendo a partir dos últimos 40 dias com a ruptura do Estado democrático de direito”. No dia anterior, terça-feira (5), o Conselho também havia participado do lançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa do SUS. “Nesse momento em que a conjuntura mudou de qualidade se exige uma resposta em todos os espaços: conselho, parlamento, mas, principalmente, nas ruas”, reforçou.

Vários segmentos da sociedade parecem concordar com a leitura. Enquanto a Marcha organizada pelo CNS se concentrava em frente à Catedral de Brasília, cerca de cem lideranças indígenas da Bahia começavam o ato que também percorreria a esplanada rumo ao Palácio do Planalto em protesto à indicação – e, naquele momento, provável nomeação – do general Sebastião Roberto Peternelli para a presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai). Indicado pelo Partido Social Cristão (PSC) – legenda que abriga os deputados federais Bolsonaro e Marcos Feliciano –, o general comemorou nas redes sociais o “aniversário” do golpe militar de 1964. “Nós estamos aqui para lutar pelo avanço nos nossos direitos, mas principalmente não permitir o retrocesso, como fica evidente que vai acontecer caso um militar assuma a Funai. Não aceitamos que a Funai volte a fazer o mesmo papel da época do SPI [Serviço de Proteção aos Índios, que antecedeu o órgão, e sobre o qual pesam provas de torturas e assassinatos de indígenas]”, disse o cacique Aruã Pataxó, presidente da Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat).

“Como disse Nelson Rodrigues, ‘o absurdo está perdendo a modéstia’, está desnudo, está aparecendo e dando voz a um fascismo que estava contido pela democracia. Essa tentativa de indicação desnuda a arqueologia do golpe, mostra a necessidade do governo golpista pagar suas contas. As contas com a Fiesp, com o fundamentalismo, com a grande mídia. São as faturas que chegam dos subterrâneos da democracia onde esse golpe foi construído”, sentenciou a deputada Érika Kokay (PT-DF).

Teto dos gastos e outros riscos

Em relação ao SUS, o risco considerado mais imediato é a limitação dos gastos sociais da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016. “É um ataque como nunca antes visto. Simplesmente desliga os aparelhos de um sistema que já estava na UTI pelo subfinanciamento”, caracteriza Ronald. Segundo as estimativas do CNS, se a regra estivesse valendo para esse ano, o orçamento vigente de cerca de R$ 100 bilhões do Ministério da Saúde minguaria para R$ 63 bilhões. Um cálculo de longo prazo aponta que se existisse um teto para os gatos desde 2003, o SUS teria perdido R$ 314 bilhões nesse período. “Vai liquidar o Sistema Único de Saúde e esvaziar a possibilidade de o Estado brasileiro construir política pública”, alerta o presidente do CNS.

Em paralelo a essa ameaça que vem do Ministério da Fazenda comandado por Henrique Meirelles, os manifestantes lembraram outros sinais preocupantes para o SUS vindos da pasta que deveria resguardar e fortalecer o sistema. “Quando o ministro [interino da saúde Ricardo Barros] mal senta na cadeira e já se sente autorizado a dizer que o SUS é muito grande é, isso sim, um risco muito grande para a população brasileira. Como uma conquista do povo pode ser ‘muito grande’?”, observou Madalena Margarida da Silva, secretária de Saúde do Trabalhador da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que completou: “O SUS não pode ser destruído em três meses por um governo que a gente não elegeu, que não nos representa, do qual não se conhecia o plano até chegar no poder”.

“Travessia do medo” é como Aldenora Gonzales, secretária executiva do Fórum Nacional dos Usuários do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) caracteriza a atual conjuntura política, em referência ao documento ‘Travessia social’ que junto com o texto ‘Ponte para o futuro’ compõe a proposta do PMDB para o governo de Michel Temer. O Fórum é uma das entidades que compõe a Frente Nacional em Defesa do SUAS e da Seguridade Social, lançada em 11 de junho, outra iniciativa que tenta responder a ações “temerárias”. “A construção dessa Frente vem para combater todo o desmonte que vem acontecendo. O que está mais em evidência é o desmonte do Bolsa Família, programa gestado por um governo democrático que oportunizou e oportuniza milhões de usuários a ter uma melhor qualidade de vida, melhorar renda e, inclusive, alcançar autonomia”, disse. Ela explicou que o governo está oferecendo um bônus para os municípios que fizerem uma busca ativa – “que a gente chama de busca ativa ao contrário”, frisou Aldenora – monitorando usuários para saírem do programa. “Claro que a gente não quer que o programa seja perpétuo, tem que, sim, haver uma porta de saída, mas ela não pode ser forçada”. Outro ataque à Assistência Social considerado grave pela Frente e pelas entidades que a integram é levar o cadastramento do Bolsa Família para dentro dos postos do INSS. Isso é um grande retrocesso. “O INSS não é um balcão para fazer esse tipo de atendimento. Isso foi causado pela extinção e junção dos ministérios do Desenvolvimento Social e do Desenvolvimento Agrário, outro enorme retrocesso”.

Uma anunciada reforma da Previdência embalada no discurso contestado pelas entidades fiscais e pesquisadores de que há um déficit que precisa ser ‘sanado’ é motivo de preocupação na visão dos manifestantes. “Não podem ser os trabalhadores, não podem ser os setores mais vulneráveis da sociedade que conquistaram tão pouco – mas para quem esse tão pouco faz toda a diferença – que agora vão ter que ceder os seus direitos para poder dar lugar ao agronegócio, ao setor financeiro, ao setor industrial, à elite que sempre teve muitas vantagens, mesmo nos governos Lula e Dilma. Não dá para a sociedade acreditar que a crise é resultado de direitos trabalhistas ou carga de impostos, que os empresários não aguentam mais. Pelo contrário”, assinala Wilson, da Contag. E resgata: “Os empresários ganharam deduções, isenções, desonerações. Os governos optaram por, ao invés de elevar a arrecadação, em nome de gerar mais emprego, diminuir impostos. E o empresariado não correspondeu, diminuiu postos de trabalho”.

Outras formas de luta

Um debate levantado por servidores e trabalhadores de diversas instituições públicas é sobre os limites institucionais da luta contra um processo político caracterizado como “golpe”. Reconhecer ou não reconhecer o governo? Na avaliação de Ronald, o Conselho Nacional de Saúde, como “instância do Estado brasileiro”, não pode deixar de reconhecer o governo Temer. “Embora [o governo interino] seja ilegítimo, não há como discutir nesse momento a legalidade. Podemos discutir a legitimidade, podemos discutir a política. Mas o Conselho, até pelo governo fazer parte dele também, não reúne condições [de não reconhecê-lo]. E não é estratégico nesse momento, inclusive para acumular forças e fazer o bom combate, inviabilizar o funcionamento do conselho. Tudo o que os ilegítimos querem é inviabilizar o Conselho Nacional de Saúde. E nós não vamos dar argumentos para os golpistas liquidarem com essa conquista que é o controle social, como já fizeram, por exemplo, com o Conselho Nacional de Educação”, afirmou, se remetendo ao polêmico decreto de 27 de junho no qual Michel Temer susta designação e recondução de conselheiros de educação escolhidos por meio de consulta pública feita pelo Ministério da Educação (MEC) em abril deste ano (veja nota de repúdio contra a decisão aqui).

Outra forma de luta bastante discutida é a greve geral. Madalena da Central Única dos Trabalhadores garantiu que a greve sai, só não se sabe quando. “Uma greve geral não se constrói da noite para o dia, tampouco só com uma central sindical. Estamos na fase de planejamento, com plenárias e assembleias, para a gente ir construindo passo a passo. Não tem data definida, mas tem resolução [da executiva nacional] de que nós vamos fazer a greve não da CUT, mas da classe trabalhadora do Brasil”.

No espaço das ruas, das instituições e das entidades, contradições também não passam despercebidas. Chamou atenção de muita gente a logomarca da Força Sindical no rol dos apoiadores da Marcha Nacional, embora a central tenha assento na atual composição do Conselho Nacional de Saúde que organizou o ato. Isso porque desde dezembro de 2015, a Força integrou oficialmente o esforço de movimentos e partidos pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, processo definido como “golpe” ao longo de todo o ato em Brasília. No Rio de Janeiro, por exemplo, o apoio da Força Sindical foi um dos argumentos que levaram o Conselho Estadual de Saúde a definir em reunião do pleno que não iria replicar a marchana capital fluminense. “O ato é sobre a classe trabalhadora. Nós não podemos deixar de participar dos espaços porque alguém que apoiou o golpe está aqui”, avaliou, por sua vez, Maria Almeida do MTST. O Portal EPSJV procurou representante da central durante o ato, mas não encontrou.

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