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Sancionada lei que regulamenta o trabalho de ACS e ACE como profissionais de saúde

Lei 14.536 também responde a uma antiga reivindicação desses profissionais: acumular até dois cargos públicos
Erika Farias - EPSJV/Fiocruz | 27/01/2023 11h28 - Atualizado em 27/01/2023 15h02

Depois de quase quatro anos tramitando entre Câmara dos Deputados e Senado, foi sancionada pelo presidente Lula, no dia 20 de janeiro de 2023, a Lei 14.536, que regulamenta o trabalho de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e de Agentes de Combate às Endemias (ACE) como profissionais de saúde. A mudança responde ainda a uma reinvindicação antiga da categoria: acumular até dois cargos públicos, desde que não haja conflito de horário. “Atualmente, temos vários agentes comunitários e de endemias que exercem outros cargos, na maioria, auxiliares de enfermagem, que estavam enfrentando processos administrativos para optarem em qual cargo iriam permanecer. Isso porque nossa profissão carecia de uma regulamentação. A lei veio para sanar esta dificuldade”, explica Ilda Correia, presidente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes e Combate às Endemias (Conacs).

A decisão atual é fruto de longa mobilização. O Projeto de Lei 1.802, de 2019 – que deu origem à lei que acaba de ser promulgada - acrescentou um parágrafo à Lei 11.350, aprovada em 2006, que estabelecia o vínculo dos agentes comunitários direto com estados e municípios, via CLT, e sua formação inicial e continuada, mantendo o que já era previsto na lei anterior. “Essa decisão é o reconhecimento desses agentes como profissionais de saúde. Somos uma categoria muitas vezes desvalorizada por outras dentro da área de saúde. Em vários lugares do país, por exemplo, na época da Covid-19, não queriam vacinar com prioridade os agentes porque eles não eram considerados profissionais de saúde. Então, essa lei vem ratificar o papel desses profissionais que nasceram dentro do SUS, são exclusivos do SUS e trabalham para o SUS. Ela também nos dá um assento no controle social como profissional, já que até então temos assento como usuários do SUS”, explica o vice-presidente do Sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde do Município do Rio de Janeiro, Wagner Souza.

Formação

A qualificação profissional dos agentes é outro ponto crucial para fortalecer os trabalhadores enquanto categoria profissional. Para a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Angélica Fonseca, é fundamental que as formações contribuam com discussões sobre o perfil profissional, tentando compreender que esse perfil garantirá um trabalho educativo e com alguma autonomia. “O foco é articular conhecimentos que são de base social e humana na formação desses agentes, que são educadores que trabalham nos territórios com promoção e prevenção em saúde, ao mesmo tempo em que pudessem repensar atribuições que contribuíssem para aumentar a resolutividade na Atenção Primária”, afirma.

O foco é articular conhecimentos que são de base social e humana na formação desses agentes, que são educadores que trabalham nos territórios com promoção e prevenção em saúde, ao mesmo tempo em que pudessem repensar atribuições que contribuíssem para aumentar a resolutividade na Atenção Primária

“A formação dos agentes é uma luta antiga da nossa categoria. Entendemos que o curso é importantíssimo para a atuação dos agentes, ampliando seu conhecimento e tornando esse profissional crítico. Eu me formei na EPSJV, em 2011, e percebi que a formação faz com que vejamos o cidadão como um todo, ampliando o olhar do ACS para si, para a população e para o mundo”, ressalta Wagner.

Importância

Atualmente, no Brasil, existem cerca de 400 mil agentes comunitários de saúde e de combate às endemias, segundo o Ministério da Saúde. Em 2020, eles somavam 324 mil, entre 265 mil ACS com atuação na Estratégia Saúde da Família, prevenindo doenças e atuando na promoção da saúde, e 61 mil profissionais de combate às endemias focados na vigilância epidemiológica e ambiental, prevenindo e controlando doenças, além de atuar na promoção da saúde. Um trabalho essencial para a Atenção Primária em Saúde, percebido ainda com mais atenção por populações mais pobres ou moradoras de regiões periféricas. Ilda conta que esses profissionais são, muitas vezes, a única presença do Sistema Único de Saúde (SUS) em algumas localidades, levando informações e ações educativas. “Nas situações mais complicadas também acabamos socorrendo famílias de grande vulnerabilidade e extrema pobreza”, conta.

Nós temos um papel muito político também. Na maioria dos locais mais pobres ou periféricos, nós somos o único serviço público que chega até eles, com um diferencial: estamos dentro da casa dessas pessoas, em contato permanente

O vice-presidente do Sindacs ressalta a importância dos agentes no ‘empoderamento’ de moradores para que eles possam cobrar direitos. “Nós temos um papel muito político também. Na maioria dos locais mais pobres ou periféricos, nós somos o único serviço público que chega até eles, com um diferencial: estamos dentro da casa dessas pessoas, em contato permanente. Criamos um vínculo que é muito importante, porque através dele nós trabalhamos diversos determinantes de saúde com essas populações. São os agentes comunitários que veem, no dia a dia, as questões socioambientais ou socioeconômicas. Nós também somos moradores dos locais onde atuamos, o que é muito diferente de realizar somente uma consulta”, observa.

Pandemia

Segundo o 3º Boletim da Pesquisa Monitoramento da Saúde dos ACS, produzido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio em 2021, “a falta de coordenação nacional do enfrentamento à pandemia de Covid-19 no SUS foi percebida por agentes de saúde inclusive pelas diversas, desiguais e divergentes respostas institucionais. Os profissionais entrevistados para o Boletim também se referiram à ausência de medidas de proteção territorial de forma mais ampla". Ainda no documento, é afirmado que “na ausência de informação e formação dos trabalhadores, assim como na distribuição insuficiente e inadequada de EPIs relatada pelos agentes comunitários, não foram incomuns depoimentos sobre o adoecimento dos trabalhadores da Estratégia Saúde da Família e a não recomposição da força de trabalho, tornando o desfalque das equipes parte da realidade cotidiana”.

Wagner também conta que os profissionais viveram os dois lados da pandemia: como profissionais de saúde e moradores. “Foi um período muito impactante, inclusive para a nossa saúde mental. Tivemos que entrar na justiça, como Sindicato, para garantir os EPIs, porque a gente não tinha direito por não estarmos ‘na linha de frente’. Mas somos nós que recebemos todos os pacientes, como não somos linha de frente?”, questiona. O vice-presidente conta de que forma atuaram. “Nós orientávamos a população sobre contágio, prevenção, essas informações, e fizemos ponte entre ONGs e instituições locais para ajudar moradores que não tinham o que comer. Também recebemos álcool em gel e sabonete, porque nem isso a gente tinha para trabalhar”, diz.

A presidente do Conacs concorda. “Nós atuamos como grandes guerreiros, pois enfrentamos, sem o mínimo de condições, sem conhecimento de causa e sem assistência dos gestores, mas estávamos lá: apavorados, com medo de nos contaminar e até morrer, como muitos que perdemos, mas continuamos trabalhando, usando nossas estratégias para tentar acalmar a população e, mais tarde, convencê-los a tomar as vacinas, usar máscara e se proteger. Foi difícil, mas vencemos a fase mais crítica”.

Desvalorização

Angélica explica que, com a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2017, foi estabelecida a possibilidade de se compor equipes de saúde com menos ACS. “Isso produziu um movimento que foi levando a uma nova concepção da Atenção Primária e se distanciando do modelo da Estratégia Saúde da Família, que teria no agente comunitário um trabalhador fundamental para garantir a presença no território. Do ponto de vista de um olhar para a Atenção, não é só o olhar para esses agentes, é essa acentuação, onde se abdica de seu papel comunitário, do papel de mobilizador social desses profissionais e o acentua como um auxiliar de algumas poucas atividades de cunho burocrático”, afirma. A decisão da PNAB foi alterada com a Lei ‘Ruth Brilhante’ (nº 13.595/2018), que tornou essencial e obrigatória a presença de agentes comunitários de saúde na estrutura da Atenção Básica e de agentes de combate às endemias na estrutura de vigilância epidemiológica e ambiental.

Para Wagner Souza, a precarização do vínculo do trabalho e a contratação via Organizações Sociais (OS) é uma questão relevante nas condições de trabalhos dos agentes. “Esse vínculo via OS é precário porque os governos podem resolver trocar ou demitir os profissionais, de acordo com seu interesse”, explica.

Garantias

Em setembro de 2022, a Emenda Constitucional (EC 120) elevou o piso salarial de ACS e ACE. Segundo a presidente do Conacs, a decisão foi consequência de muita articulação e demorou 11 anos para ser aprovada. “Graças ao nosso trabalho e empenho, aprovamos a emenda com aplicabilidade imediata. Aprovamos no dia 5 de maio, foi promulgada no dia 6 de maio, e, em junho de 2023, já recebemos com retroatividade. O valor do piso, não inferior a dois salários mínimos, com reajustes anuais em janeiro, representou uma grande valorização”, ressalta Ilda.

Apesar dos avanços, ainda há muito o que conquistar. “Nossa prioridade para 2023 é regulamentar a aposentadoria especial e dar dignidade aos muitos que estão em condições para aposentar. Garantir a regulamentação da insalubridade desses profissionais também se faz necessário. Tanto a aposentadoria especial, quanto a insalubridade já estão no texto da EC 120, porém precisam de regulamentação em lei e esta será nossa prioridade agora”, conclui Ilda.