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Tem Estado (e servidores) demais no Brasil?

Em tempos de crise sanitária, volta o debate sobre o custo dos servidores. Pesquisas, no entanto, apresentam números que mostram um retrato diferente da máquina pública no Brasil
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 23/03/2020 14h46 - Atualizado em 01/07/2022 09h43
Governo entrega o Plano Mais Brasil no Senado Foto: Roque de Sá/ABr

“Os assalariados do setor privado, que não têm estabilidade no emprego, abrirão mão de parte do salário em troca do emprego. Enquanto os servidores, estáveis, continuarão intocáveis”. A ‘denúncia’ foi feita em editorial d’O Globo publicado na última sexta-feira (20 de março). O que o jornal chama de “abrir mão do salário” se refere, na verdade, a um anúncio do governo federal de que autorizaria que empregadores reduzissem a jornada e salário dos trabalhadores sob o argumento de evitar demissões em massa durante a epidemia de coronavírus. De lá para cá, o governo já substituiu essa proposta por uma Medida Provisória (nº 927) que ia além. “Em pleno contexto de tríplice crise - sanitária, econômica e política, a MP nº 927 lança os trabalhadores e as trabalhadoras à própria sorte”, analisa a nota emitida pela  Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Diante da forte reação negativa, em menos de 24 horas o governo revogou o artigo mais criticado, que permitia que empregados formais fiqueficassem até quatro meses sem receber salário durante a crise sanitária.

Mas o fato é que a referência legal do editorial do Globo é outra, anterior à pandemia: “É preciso que o Congresso aprove já a PEC Emergencial, para permitir a correção desta injustiça, agora devido a uma séria crise humanitária no Brasil”, diz o texto, defendendo a Proposta de Emenda Constitucional 186, que faz parte do Plano Mais Brasil, um pacote de medidas apresentado pelo ministro da Economia Paulo Guedes no final de 2019 e que conta ainda com outras duas PECs (nº 187, dos Fundos, e 188, do Pacto Federativo). No mesmo dia do editorial, a nova CNN Brasil informou, sem muitos detalhes, que o Congresso começava a discutir uma proposta de corte de até 20% do salário dos servidores durante a epidemia. Em reportagem publicada no dia 25, O Globo afirmou ter tido acesso à minuta da nova PEC que, entre outras medidas justificadas pela necessidade de economia para enfrentamento da epidemia, reduziria em 25% o salário e jornada dos servidores.Qualquer semelhança com o chamado 'pacote do Guedes', que já tramita no Congresso desde novembro do ano passado, antes de o Covid 19 chegar ao Brasil, não é mera coincidência. 

Reportagem publicada na última edição da Revista Poli aborda o pacote das três PECs, apresenta os números sobre o funcionalismo no Brasil e discute os impactos dessas medidas sobre as áreas de saúde e educação. Confira.

O real tamanho da ‘máquina’ pública

Diferente das declarações que viram manchetes de jornais e memes nas redes sociais, nos textos oficiais o governo tem economizado nos números sobre a situação do funcionalismo público no Brasil. Observando-se a justificativa das três propostas apresentadas ao Congresso, o máximo que se encontra, na PEC 186, é a informação de que o pagamento de pessoal é “a maior despesa primária dos entes da federação, à exceção da União, cuja maior despesa é de benefícios previdenciários”. E o próprio texto reconhece, na sequência, que essa “magnitude reflete, em grande medida, a prestação de serviços à população, sendo relevantes os servidores públicos nas áreas de segurança, saúde e educação”. Já na apresentação oficial do Ministério, há um único slide sobre o tema, apontando que, em 2018, a despesa do governo com a “máquina” do Estado representou 49,2% do Produto Interno Bruto (PIB).

Não faltam, no entanto, pesquisas que questionam esse diagnóstico. Dialogando diretamente com as propostas do Plano Mais Brasil, a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público, com apoio de várias entidades, acaba de publicar um estudo sobre ‘O lugar do funcionalismo estadual e municipal no setor público nacional’, abrangendo o período de 1986 a 2017. Lançada antes dessas propostas, mas com dados ainda mais detalhados, a pesquisa ‘Três décadas de funcionalismo brasileiro’, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que abrange o mesmo período, também traz um retrato revelador do serviço público no Brasil.

Juntando o vínculo com municípios, estados e União, o Brasil tem hoje 11,7 milhões de servidores públicos, segundo esses estudos. Em 1986, eram 5 milhões, o que significa um aumento de 130% em 31 anos. É comum se considerar que esse foi um aumento substantivo já que, no mesmo período, a população brasileira cresceu bem menos. O que essas pesquisas apontam, no entanto, é que a comparação mais adequada deve ser em relação à população economicamente ativa do país a cada ano. Isso significa considerar que, nesse período, a demanda por produtos e serviços aumentou e, portanto, todo o mercado de trabalho, que inclui o setor privado, também cresceu – mais precisamente 97%, de acordo com o estudo do  Ipea, assinado pelos pesquisadores Erivelton Guedes e Felix Lopez, este último também autor da publicação da Frente Parlamentar junto com Braulio Cerqueira e José Celso Cardoso Jr. A pesquisa do Ipea deixa claro que, embora tenha crescido em número absoluto, na maior parte desse período o percentual de servidores em relação ao total de vínculos existentes se manteve estável. A curva se modifica a partir de 2015, quando a crise econômica afeta diretamente o mercado de trabalho privado, gerando a perda de mais de 10 milhões de postos. Nesse intervalo, segundo o estudo do Ipea – que inclui civis e militares –, a quantidade de servidores públicos no mercado de trabalho brasileiro subiu de 15,3% em 1986 para 17,3% em 2017. “Esses números globais apontam uma expansão em ritmo similar entre os vínculos de trabalho nos setores público e privado”, conclui o texto.

Também na comparação com outros países o tamanho do funcionalismo brasileiro não se destaca. O relatório do Banco Mundial que trata do tema, ‘Gestão de Pessoas e Folha de Pagamentos no Setor Público: o que os dados dizem’, informa que a relação entre o número de servidores e o total da população é bem menor por aqui do que a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): 5,6% contra 9,5%. O presidente do Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), Rudinei Marques, ressalta que, no nível federal, houve inclusive redução do número de servidores civis: eram 651 mil em 1991 e hoje são 600 mil. Desses, de acordo com os cálculos da entidade, 20% estão em abono permanência, ou seja, já podem se aposentar, mas optam por continuar trabalhando, em troca da devolução do que pagariam como contribuição previdenciária. Ele acredita que se esse pacote de

 medidas for aprovado, haverá uma corrida desses servidores para a aposentadoria, o que poderia gerar a perda imediata de 120 mil trabalhadores. Se sobre esse número ainda incidir o corte de 25% da carga horária previsto nas PECs, na prática será como se reduzisse para 360 mil o volume de servidores federais. “Isso anuncia um apagão no serviço público”, opina.

A pergunta sobre quanto isso custa para os cofres públicos também aponta para uma guerrilha de números. Na polêmica fala em que chamou os servidores de “parasitas”, o ministro da economia Paulo Guedes afirmou que “o governo gasta 90% da receita com salário”. Checagem feita pela Agência Lupa a partir dos relatórios resumidos de execução orçamentária, do Tesouro Nacional, mostra que, na última década, o gasto do governo federal com servidores variou entre 30,6% e 38,6% da Receita Corrente Líquida. Se a referência for a receita tributária, que é muito menor, esse número sobe para 57%. Já se se considerar a receita total, bruta, ele cai para 12%.

Já o estudo da Frente Parlamentar calculou o consumo dos governos nos três níveis da federação a partir das “contas nacionais publicadas pelo IBGE” e chegou a 20% do PIB. O texto lembra ainda que mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI) calculou a despesa brasileira com pessoal em 38,1% do PIB em 2018, portanto bem abaixo dos 49,2% que vêm sendo divulgados pelo governo. “Todos nós queremos um serviço público mais eficiente, que atenda bem o cidadão, onde os servidores públicos ganhem salários justos. Ninguém é a favor de parasita, marajá, vagabundo. Mas não é isso que realmente está por trás [dessas propostas]. Trata-se de um processo de desmanche do Estado brasileiro, do pouco que se conseguiu construir”, opina Luiz Alberto dos Santos, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

A reportagem entrou em contato com o Ministério da Economia, via assessoria de imprensa, para esclarecer os cálculos utilizados e questionar sobre os impactos do pacote nas políticas de saúde e educação, mas a resposta foi de que, como as perguntas abrangiam diferentes áreas técnicas da Pasta, não seria possível responder no prazo estabelecido, mesmo após prorrogação da data.

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