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Tempos sombrios

Na última palestra do Abrascão, a ativista estadunidense Monica Simpson falou sobre as ameaças aos direitos reprodutivos e sexuais sob o governo Trump e antes dele
EPSJV - EPSJV/Fiocruz | 30/07/2018 15h24 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Foto: George Magaraia / Abrasco

Na semana anterior ao 12o Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. uma notícia revoltou militantes feministas e dos direitos humanos, embora não tenha chegado a romper essa bolha. Graças à divulgação de uma palestra voltada para instituições que abrigam menores de idade vinculadas ao município de Porto Alegre, a imprensa local descobriu que o Ministério Público, a prefeitura e dois hospitais tinham assinado um termo de cooperação com a multinacional Bayer para que o SIU (sistema intrauterino), um método contraceptivo de longa duração, fosse implantado em cem adolescentes.

Para quem não acha a notícia nada demais - ou como a promotora de Justiça da Infância e da Juventude Cinara Vianna Dutra Braga, responsável pela fiscalização dos jovens inseridos no sistema público de abrigos, considera a parceria "importante" para prevenir gravidez na adolescência -, o recado dado na última palestra do Abrascão por Monica Simpson, diretora-executiva da ONG Sister Song, que luta há 19 anos por justiça reprodutiva organizando mulheres negras, latinas, asiáticas, indígenas e LGBQT, foi contundente: "Conversar sobre isso a partir de uma perspectiva racial, etnicamente informada, é fundamental. Nos Estados Unidos também acontece, as mulheres são coagidas e não têm a oportunidade de entender a extensão da coisa. Só algumas comunidades são escolhidas para que esse tipo de método seja aplicado, e vocês sabem quais são: as de cor, as pobres, as mais vulneráveis. Por que será? Isso é parte central da conversa. A supremacia branca se revela nos processos de tomada de decisão nas políticas públicas, e esse é mais um exemplo de como essas políticas podem ser construídas deste ângulo racista, coercitivo".

Justiça reprodutiva

O assunto da palestra foram os direitos reprodutivos no governo de Donald Trump, definido por Monica como a "administração que criou os tempos mais ameaçadores que vimos em décadas no país". Para ela, é "estratégico" que as várias organizações e entidades que lutam pela justiça reprodutiva, lá e aqui, procurem dialogar e ter mais sinergia sobre o que está acontecendo nas comunidades. "Sou ativista, sempre estive na rua, fazendo muito barulho. Temos que lutar por liberdade, por justiça e vai ser necessário todas nós para chegar ao outro lado", incentivou.

Embora as coisas por lá estejam "muito, mas muito ruins", vem de décadas a opressão sentidas por mulheres "de cor", termo que abrange as etnias não brancas nos Estados Unidos. "Não começou com Trump o controle e exploração dos nossos corpos, sexualidade e trabalho", afirmou, traçando uma linha do tempo com múltiplos exemplos, tendo como marco zero a escravidão, que marcou para sempre os negros, passando pelo colonialismo, que dizimou as populações indígenas, relegadas à marginalidade e expulsão de suas terras. "Podemos falar sobre limitações na imigração para mulheres que procuram refúgio e recomeço e são restritas de muitos jeitos de criar famílias e fazer escolhas. Podemos falar sobre a esterilização de negras, pois nunca fomos vistas como a população que eles queriam que crescesse. Foi um jeito de controle populacional na comunidade", listou. Monica mencionou o pouco conhecido experimento de Tuskegee, conduzido no Alabama pelo Departamento de Saúde dos EUA entre 1932 e 1972, período no qual o governo acompanhou cerca de 600 homens com sífilis e comparou suas condições de saúde com um grupo de 200 indivíduos saudáveis, mas sem nunca pedir o consentimento, nem sequer informar os doentes sobre seu diagnóstico, e muito menos oferecer tratamento da doença. "E também podemos falar dos LGBTQ, que têm que lidar com muita coisa doida, e têm constantemente seus corpos sob ataque, vilanizados, criminalizados", acrescentou.

Monica contou que todas essas formas de opressão deram o pontapé para que as mulheres começassem a conversar para lutar contra isso. Houve uma aproximação entre comunidades negras e comunidades latinas, de modo que suas pautas também fossem apresentadas e defendidas em conjunto, e não separadamente como acontecia no início do movimento pelos direitos civis naquele país.

Foi aí que surgiu o conceito de "justiça reprodutiva", vinculado à guinada promovida pela ideia de "justiça ambiental", que buscou demonstrar através de dados epidemiológicos como as comunidades vulneráveis (negras, latinas, indígenas, asiáticas) eram mais impactadas do que as brancas, mesmo num contexto igual de pobreza. Assim, mostrou como lixões, aterros, depósitos tóxicos, indústrias poluentes iam parar ao lado dessas comunidades de cor, ou como seus impactos eram mais sentidos por ela.

Na justiça reprodutiva, disse, o foco está na falta de escolha que recai sobre as mulheres de cor e as pessoas LGBTQ. "Escolha é privilégio", diz o lema. "Foi possível conversar com mais gente a partir desse conceito", contou.

Em 1994, no contexto de uma reforma no sistema de saúde voltada para as mulheres, um manifesto foi publicado em jornais de grande circulação. Ele avisava aos políticos que, daquela vez, eles não teriam como deixar de ouvir o que os grupos marginalizados pensavam e queriam, nem poderiam excluir da agenda o debate sobre o aborto. Foi o pontapé para que o Congresso se visse obrigado a chamar mulheres de cor para as audiências públicas.

Pouco tempo depois, em 1997, a organização nacional Sister Song foi criada justamente para traçar uma agenda comum em torno do conceito da justiça reprodutiva. "Indígenas, asiáticas, negras, latinas se uniram. 'Eles' podem não entender ou querer ouvir uma única perspectiva, mas juntas conseguimos ser ouvidas", disse Monica, para quem o conceito da justiça reprodutiva tem quatro pilares: todos os indivíduos têm o direito humano de decidir se e quando terão filhos e as condições em que isso vai se dar; decidir não ter filhos, e quais são as opções contraceptivas, assim como as opções de interrupção da gestação; a maternidade e a paternidade devem ser exercidos com o devido suporte social em ambientes e comunidades saudáveis, sem o temor de violência individual ou governamental; e que os corpos devem ter autonomia sobre todas as formas de opressão reprodutiva.

Início dos retrocessos

Em 2010, porém, o movimento por justiça reprodutiva viu surgir uma miríade de medidas de todos os níveis de governo que violavam esses princípios. O período ficou conhecido como "War on Women", ou Guerra às Mulheres. "Estados onde o aborto é legal, por exemplo, começaram a exigir que antes de realizar o procedimento as mulheres fossem submetidas a uma ultrassonografia a fim de que ouvissem as batidas cardíacas dos fetos", expôs Monica. Os limites para a realização do procedimento, que variam entre 14 e 12 semanas, foram reduzidos para dez semanas em outros estados.  Políticas voltadas para o planejamento familiar sofreram cortes. "Em vários lugares do país, grupos conservadores colocaram propagandas em outdoor dizendo que 'o lugar mais perigoso para uma criança negra era o útero da mãe'", tentando, a um só tempo, reforçar a imagem negativa que o aborto já tem, colando o procedimento com um grupo étnico.

A era Trump

E foi nesse contexto de conservadorismo musculoso que o candidato do Partido Republicano, Donald Trump, assumiu a presidência dos Estados Unidos em 2017. "Na campanha, ele dizia que as mulheres que abortam precisam ser punidas. Defendia que os valores cristãos são indistinguíveis dos valores americanos... É um tempo assustador para ser mulher, para ser mulher negra, para ser lésbica – só não é assustador ser homem branco neste momento", disse Monica.

Tudo pode piorar com a indicação de Trump para a Suprema Corte dos Estados Unidos feita no início do mês. O juiz federal Brett Kavanaugh foi o escolhido e um critério-chave para a indicação foi justamente sua posição contrária ao aborto. Recentemente, Kavanaugh votou contra a concessão de permissão de aborto para uma imigrante sem documentos que estava em um centro de detenção. Caso aprovado pelo Senado, Kavanaugh desequilibrará o tribunal para a direita: a Corte terá cinco membros conservadores e quatro progressistas. "Perdemos o juiz que equilibrava e sabemos que isso pode ter sérias implicações sobre os direitos reprodutivos e sexuais", disse Monica.

Outro ataque a um dos princípios da justiça reprodutiva virou escândalo mundial: a política anti-imigração que separou crianças de seus pais, colocando-as em estruturas ultrassegregadas dentro de abrigos. "A separação das famílias imigrantes é real", falou ela.

Monica também destacou os indicadores de saúde dos EUA. Segundo ela, a mortalidade infantil está crescendo por lá. "Era de se supor que o país mais industrializado do mundo conseguisse garantir a queda nesse indicador. Mas enquanto a tendência é de diminuição em vários outros países, nos Estados Unidos há mais crianças morrendo porque o acesso à saúde é um entrave", avaliou. Ela também informou que as mulheres negras morrem quatro vezes mais do que as brancas no parto e que é comum que as gestantes do sistema prisional deem a luz com as mãos acorrentadas à cama.

O combate a tudo isso tem se dado por meio de muitas ações diretas. Uma delas aconteceu em Nova Iorque, quando as militantes colocaram abaixo uma estátua de J. Marion Sims em abril. A figura histórica homenageada em pedra era um senhor de escravos conhecido por experimentos médicos em mulheres negras sem o uso de anestesia. Mas embora fundamental, esse tipo de ação local é muito pouco diante do desafio, reconheceu Monica. "E é por isso que é importante estarmos no Abrascão. Agora que estamos numa crise completa, temos que ser muito estratégicos. Construir alianças, e aprender uns com os outros", disse.