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Trabalho e formação na saúde indígena

Quem são os profissionais que fazem o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena funcionar
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 21/11/2019 09h25 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Aproximadamente 14 mil trabalhadores atuam hoje no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Pouco mais da metade, 56%, são indígenas. Esses são alguns dos dados de um relatório divulgado pelo governo federal no início deste ano, ainda na gestão de Marco Antonio Toccolini na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Os dados se referem a 2018, quando, segundo o Ministério da Saúde, o Subsistema contava com mais de 800 equipes multiprofissionais vinculadas aos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) espalhados pelo país.

O documento aponta ainda que todas as equipes contam com pelo menos um agente indígena de saúde. Os AIS, como são conhecidos, somavam aproximadamente 4 mil trabalhadores. Como principal integrante indígena das equipes, os agentes despontam como elementos-chave para a efetivação do que a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas chama de ‘atenção à saúde diferenciada’, que leve em consideração as especificidades culturais e epidemiológicas dos povos indígenas. Em geral indicados para o cargo pelas comunidades onde residem, os AIS têm como uma de suas responsabilidades fazer a ponte entre a medicina tradicional praticada pelo seu povo e o saber científico da medicina ocidental.

Na estrutura dos Dseis, os agentes ficam lotados nos postos de saúde presentes nas aldeias e têm uma atuação parecida com a dos agentes comunitários de saúde, sendo encarregados de fazer visitas periódicas aos domicílios para acompanhar o quadro sanitário da população, além de realizar ações de promoção e prevenção da saúde. Nivaldo Ferreira, que trabalha há quatro anos como AIS em uma aldeia vinculada ao Dsei Manaus, relata que a medição da pressão e a dispensação de medicamentos para pacientes com hipertensão são hoje as principais atividades desenvolvidas por ele. “Temos muita gente hipertensa que vai até o posto atrás de medicamento. A gente ‘tira’ a pressão e passa as informações para a enfermeira”, revela.

Médico, dentista, enfermeiro e técnico ou auxiliar de enfermagem são os profissionais que, além dos AIS, compõem as equipes multiprofissionais de saúde indígena. A esse núcleo mínimo podem se somar técnicos ou auxiliares de saúde bucal, nutricionistas, microscopistas e também os Aisan, o agentes indígenas de saneamento. De acordo com o Ministério, há cerca de 1,7 mil desses profissionais contratados. Aos Aisan cabe acompanhar o controle da qualidade da água e desenvolver ações de educação ambiental nas comunidades. Assim como os AIS, eles também ficam nos postos de saúde das aldeias.

Os demais profissionais da equipe ficam nos chamados polos-base, que podem estar localizados tanto em um município próximo quanto em uma aldeia. Eles funcionam como unidades básicas de saúde. É dali que as equipes partem para cumprir uma agenda de visitação às comunidades. No caso do polo-base de Borba, ao qual está vinculada a aldeia onde Nivaldo Ferreira mora e trabalha, cerca de 20 comunidades são atendidas por uma equipe multiprofissional. “Eles vão à minha aldeia uma vez por mês. No restante do tempo, o contato é por telefone”, conta. No posto de saúde local, atuam, além dele, outra AIS, um agente indígena de saneamento e também um microscopista, profissional importante no contexto amazônico para, por exemplo, identificar os casos de malária.

A rede de serviços de um Dsei ....conta ainda com as Casas de Apoio à Saúde do Índio, que oferecem hospedagem aos usuários encaminhados para atendimento em serviços de média e alta complexidade. Atualmente existem 66 Casas do tipo no Brasil, localizadas em municípios que são referência para os distritos sanitários. Esses locais devem oferecer ainda assistência de enfermagem, marcação de consultas, exames ou internação, bem como o acompanhamento do usuário indígena até que ele possa voltar à sua aldeia. 

Os indígenas têm uma presença considerável também em outras categorias profissionais. Segundo o levantamento do Ministério, 250 auxiliares ou técnicos de saúde bucal, que representam 56% do total do Subsistema, são indígenas. E cerca de 30% dos técnicos ou auxiliares de enfermagem também são indígenas, o equivalente a 1,1 mil trabalhadores.

Já entre os profissionais de nível superior, a participação indígena é bem menos significativa: entre os enfermeiros, são 150 em um universo de 1,8 mil trabalhadores. Apenas 35 dos 500 cirurgiões-dentistas em atuação no Subsistema são indígenas. Há 12 nutricionistas, de um total de 150. Entre os médicos, são apenas 16 dos 543 profissionais das equipes. “A presença de profissionais indígenas potencializa a promoção da atenção à saúde de maneira participativa e diferenciada, contudo ainda permanece o desafio de ampliar a participação indígena entre as categorias profissionais de nível superior”, reconhece o Ministério, no levantamento.


Mais Médicos: ponto de inflexão

Essa é uma questão particularmente relevante no caso do Subsistema, tendo em vista que, historicamente, um dos principais gargalos para sua efetivação tem sido a dificuldade de fixação de profissionais, principalmente os médicos. Nesse sentido, tanto o documento da Sesai quanto representantes do movimento indígena e pesquisadores da área destacam a importância do Programa Mais Médicos, iniciado em 2013, para o provimento nos Dseis. “Médico era uma figura rara no subsistema de saúde indígena antes do programa”, diz a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Ana Lúcia Pontes. “Trabalhar em área indígena segue uma lógica diferente, principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste”, explica ela, que relata que, em alguns casos, esses profissionais precisam ficar 20, 30 ou até 45 dias em área indígena. “São longos períodos sem voltar para casa”, observa.

De acordo com o documento divulgado pela Sesai no início do ano, dos 543 médicos em atuação na saúde indígena até 2018, 372 eram provenientes do programa, ou 68% do total. O impacto pode ser medido pelo salto no número de atendimentos médicos no período. Em 2014, foram 61,9 mil, enquanto em 2018 essa cifra mais que triplicou, chegando a 222,5 mil.

Entretanto, o fim do convênio entre Cuba e Brasil em 2018 deixou vazios assistenciais que persistiram mesmo após a abertura de um edital para substituição dos cubanos por médicos brasileiros, ainda no governo Michel Temer. Segundo levantamento de 2017 da Organização Pan-americana de Saúde (Opas), parceira do governo federal no Mais Médicos, 289 cubanos atuavam na saúde indígena naquele ano. “O impacto da saída deles foi enorme”, diz Paulo Tupiniquim, coordenador-geral da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e representante da entidade no conselho distrital do Dsei Minas Gerais e Espírito Santo. “Aqui tínhamos oito cubanos pelo Mais Médicos. Até hoje algumas aldeias estão descobertas porque abriram para os médicos brasileiros, mas como é uma área de difícil acesso, alguns não aceitaram”, aponta.


Regulamentação em pauta no Congresso

A alta rotatividade de profissionais não indígenas no Subsistema faz com que, ainda hoje, os AIS e Aisan sejam os únicos trabalhadores da saúde atuando com regularidade em muitas aldeias. Sua existência remonta à década de 1980, quando justamente por conta da irregularidade na oferta de serviços de saúde e da falta de profissionais, universidades, ONGs e entidades religiosas ouviram as reivindicações das aldeias e começaram a capacitar pessoas para atuar na atenção primária à saúde como voluntários em suas comunidades. E mesmo hoje, 20 anos após a implantação do Subsistema e a incorporação formal dos agentes nas equipes multiprofissionais, ainda há muita indefinição quanto a suas atribuições.

Um projeto de lei apresentado em junho deste ano pela deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR), a primeira mulher indígena eleita para o Congresso Nacional, pode trazer avanços nesse sentido. O PL 3.514 ainda aguarda a designação de um relator na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. O texto regulamenta as profissões de AIS e Aisan, estabelece requisitos mínimos para seu exercício e define as atribuições de cada um no âmbito do Subsistema. Joênia argumenta que o reconhecimento das categorias profissionais é importante para consolidar a atuação dos agentes e qualificar as suas condições de trabalho e formação. “A regulamentação atende a uma reivindicação do movimento indígena construída pelas conferências de saúde indígena em vários níveis”, destaca a deputada federal. E completa: “São profissões estratégicas que devem ser melhor incorporadas ao Subsistema. A falta de regulamentação restringe o reconhecimento do seu trabalho e até mesmo os resultados da sua atuação dentro da comunidade”.

Do ponto de vista da formação, o PL exige que os agentes tenham concluído ou estejam cursando o ensino fundamental, além da conclusão do curso de qualificação dos AIS e Aisan. E estabelece um prazo de três anos para agentes em atividade que não tenham a formação.

Divulgação


Formação ainda incipiente

O PL se refere ao curso de qualificação e capacitação para agentes indígenas de saúde e de saneamento, formação que começou a ser construída em 2013, a partir de oficinas promovidas pelo Ministério da Saúde envolvendo pesquisadores, agentes indígenas de todo o país e as Escolas Técnicas do SUS. A perspectiva era de que fosse oferecida para todos os agentes indígenas vinculados aos 34 Dseis.

No entanto, foi apenas no final do primeiro semestre de 2018 que isso começou a ser colocado em prática. Foi quando teve início a formação dos AIS e Aisan no estado do Amazonas. Realizada em parceria entre a Universidade Federal do Amazonas e a Escola de Saúde Francisca Saavedra, unidade do Centro Tecnológico do Amazonas (Cetam) designada como Escola Técnica do SUS desde 2004, a formação conta com financiamento do Ministério da Saúde. A expectativa é concluir a formação de 1.260 AIS e 233 Aisan ainda este ano. Todos os estudantes são trabalhadores dos sete Dseis circunscritos ao Amazonas: Manaus, Alto Rio Negro, Médio Rio Purus, Médio Rio Solimões, Parintins, Vale do Javari e Alto Solimões. A formação tem uma carga horária de 500 horas, no caso dos AIS, e de 450 horas, no caso dos Aisan. O Dsei Cuiabá também tinha perspectivas de iniciar a qualificação em 2019, numa parceria com a Universidade Federal de São Paulo e a Escola de Saúde Pública do Mato Grosso, também integrante da Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS). Mas até o fechamento desta edição, a coordenação do curso ainda aguardava dotação orçamentária da Sesai para dar início às aulas.

A falta de uma formação na área é um dos principais obstáculos que Nivaldo Ferreira identifica no cotidiano. Ele relata que começou aprendendo na prática o que faz um AIS, a partir das conversas com parentes com experiência na função. Segundo ele, que é um dos 275 agentes indígenas do Dsei Manaus em formação, o curso lhe deu mais segurança nas visitas que faz a 70 domicílios. “Aprendemos a lidar com situações difíceis, como doenças mais graves, que a gente muitas vezes não sabia como acudir”, afirma.

Avaliação semelhante tem Oséas Cordeiro, que há três anos trabalha como Aisan também no Dsei Manaus, mas no polo-base de Murutinga. Segundo ele, grande parte da comunidade não possui coleta de esgoto ou destinação adequada de resíduos sólidos e em algumas áreas não há água encanada. “Com o curso sinto que posso contribuir mais com a minha comunidade, identificando os problemas e dando soluções para ajudar a, pelo menos, reduzir os problemas que existem por falta de saneamento”, aponta. 

Formação pioneira no Alto Rio Negro

Em abril de 2020 completam-se cinco anos da conclusão de uma experiência pioneira, pela qual a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em parceria com a Fiocruz Amazônia, a secretaria municipal de Educação de São Gabriel da Cachoeira (AM) e a secretaria estadual de Educação do Amazonas, titulou 139 estudantes como técnicos em agente indígena de saúde. Ao mesmo tempo em que preparou profissionais para a atuação no Subsistema, o curso – que nasceu de uma demanda apresentada pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) ao Conselho Distrital de Saúde Indígena – também enfrentou o desafio de elevar a escolaridade dos estudantes ao ensino médio.

Para contar essa história, os pesquisadores Sully Sampaio e Luiza Garnelo, da Fiocruz Amazônia, e Ana Lúcia Pontes, que hoje está na Ensp/Fiocruz mas na época da realização do curso era professora da EPSJV, lançaram em setembro o livro ‘Atenção diferenciada: a formação técnica de agentes indígenas de saúde no Alto Rio Negro’. “Existe um senso comum de que é impossível elevar escolaridade e dar formação técnica para indígenas. O livro questiona essa perspectiva”, diz Ana Lúcia.

O curso teve início em 2009 e foi dividido em três etapas formativas, com um total de 3.240 horas de aulas, incluindo a elevação da escolaridade, os conteúdos teóricos e a prática profissional, realizada nas comunidades durante o intervalo entre as etapas de formação. “O curso permitiu propor a reorganização do trabalho do agente indígena na comunidade e na equipe, com indicações de rotinas de trabalho para visitas domiciliares, procurando definir com maior clareza a complementaridade de papéis entre ele, o enfermeiro, o médico e o odontólogo”, explica Ana Lúcia, que espera que a publicação subsidie experiências que pensem a profissionalização como formação técnica, bem como ajude a dar impulso ao debate sobre a urgência da regulamentação do trabalho dos agentes que hoje acontece no Congresso a partir da apresentação do PL 3.514/19.

A formação técnica em saúde permanece sendo uma demanda do movimento indígena. Exemplo disso é o pedido feito por uma associação indígena Ianomâmi durante a devolutiva de um trabalho de pesquisa coordenado pelo pesquisador da Ensp/Fiocruz Paulo Basta no norte do Amazonas, que identificou a contaminação pelo mercúrio em indígenas das aldeias de Maturacá e Ariabu. Os indígenas solicitaram a oferta de um curso técnico na área da saúde voltado para as populações da região, demanda que chegou à EPSJV por meio da professora-pesquisadora da instituição Ana Cláudia Vasconcellos, que integrou a equipe da Fundação no trabalho de pesquisa realizado na região. Segundo ela, a ideia, ainda em discussão, é oferecer um curso técnico de vigilância em saúde voltado para os indígenas. “Como a EPSJV já tem expertise na oferta desse curso, estamos analisando a possibilidade de estruturar uma formação nessa área para os indígenas”, pontua Ana Cláudia. E completa: “É um curso muito pertinente, especialmente em terras indígenas, porque é focado no território que, no caso da população indígena, é algo totalmente ligado a sua saúde”.